Assediada
Era uma noite
qualquer da primavera de 1979. O ar estava parado, porém o frescor
característico da estação entrava pela
janela e apesar da temperatura amena Rosalina sentia o suor escorrer
pelo seu rosto; o coração batia apressado e suas mãos tremiam de nervoso, temia
que algo pudesse sair errado. Apesar de ter planejado este momento por mais de uma década, em seu
íntimo ela sabia que a distância entre o
sonho e a ação vai para mais de mil léguas. Também
tinha ciência que o caminho a ser percorrido
era desconhecido e haveria muitos a obstáculo a vencer, mas lhe faltava a
percepção do julgamento moral que enfrentavam ás moças solteiras quando deixavam a casa paterna e da dificuldade que
é arcar com os custos de moradia e alimentação; até então, vivera sobre a
tutela de seus pais. Pela ajuda na lavoura, recebia um quarto do salário mínimo para gastos
pessoais com coisas tipicamente
femininas e nunca ajudara com um centavo nas despesas de casa. Como o plano
de partir era antigo, ela economizara o
máximo que pôde até juntar a quantia necessária para cobrir
as despesas essenciais durante o
período de busca de uma colocação no mercado de
trabalho, que ela calculou de no
máximo, sessenta dias. Sentia medo do
novo e de uma possível reação violenta de seu pai quando ele soubesse que a
partida era definitiva. Ele poderia dar
queixa à Polícia e ser levada de volta
ao lar não lhe soava nada animador. Nem
queria imaginar como seria a sua
vida depois porque os costumes eram outros e a honra de uma família era um
valor inestimável e importante nas relações sociais e comerciais. Melhor seria
que todos acreditassem que ela estaria
vivendo na capital, sob a proteção de sua madrinha. Arrumara uma mala básica sob os olhares vigilantes de suas irmãs e
quando ouviu-as ressonarem tranquilas em seus leitos, aproveitara a claridade
do luar para incluir todos os seus
pertences e esconder bem as suas economias para evitar surpresas desagradáveis
como assaltos. O mais prudente
seria reparti-la nos bolsos das calças, dentro das meias
e emba’ixo das palmilhas dos sapatos. Em sua bolsa, somente o necessário para o transporte, um copo de água e um pão na
chapa. Ninguém sabia o real motivo de sua partida, se soubessem que ia em busca de um sonho
inacessível a uma garota roceira que cursou apenas a oitava série, em uma
escola pública da periferia e aprovada com as notas mínimas. Ela era considerada
uma aluna fraca pelo corpo docente, e sempre precisou da misericórdia de um
ponto ou mais para não ser reprovada,
isto graças ao seu comportamento exemplar em sala de aula, abria a boca
somente para responder a chamada. Se seus genitores descobrissem o seu segredo e com a sabedoria
peculiar das pessoas simples e mais velhas, tentariam dissuadi-la
de ingressar em alguma carreira artística e mais provável que com uma vara de bambu. Rosalina nascera em uma
tradicional família de sitiantes, que nunca conhecera outra atividade a não ser
a lida campeira no cuidado com o gado e plantação. Não
possuíam o domínio da forma culta
da língua materna, tinham as mãos calejadas, a pele queimada
pelo sol e o andar curvado. Eram pessoas trabalhadoras e honradas, mas
faltavam-lhes elegância e boas maneiras
à mesa e malícia no trato com negócios e
estranhos, havia dificuldades até no diálogo
entre os parentes; executavam as
tarefas como os antepassados, os mais
novos aprendiam pela observação, questionamentos e explicações eram
desnecessárias e provavelmente porque
sempre fora assim, consequentemente,
Rosalina não desenvolveu a habilidade de
elaborar perguntas e manter um diálogo
longo, desconhecia o que era direitos
humanos e trabalhistas, apenas cumpria com a sua obrigação. A sua percepção de
um mundo novo além do horizonte se deu quando passou a frequentar a biblioteca da
escola e teve acesso as revistas
como Claudia, Grande Hotel,
Capricho, Vogue, Sétimo Céu e outras e
desde então, emergiu das profundezas de seu coração, um desejo imenso de ver a sua foto nas páginas das revistas e
admirada por todos, principalmente pelos seus pais que pareciam não enxerga-la
como pessoa, apenas como o máquina programada para o trabalho. Da boca
deles nunca saia um elogio ou um
agradecimento pelas inúmeras tarefas executadas do nascer ao pôr-do-sol,
enquanto suas irmãs, principalmente a mais velha, ficava com a
responsabilidade de serviços mais leves. Ela estava envelhecendo rápido
devido as longas horas expostas ao sol
ardente na labuta diária na lavoura e
sem protetor solar, que não era conhecido
em sua região naquela época. Sequer tinha um chapéu ou mesmo um lenço
para proteger os seus longos cabelos ruivos, sempre trançados para evitar acidentes durante as tarefas mais
perigosas como fazer ração para o gado, soltos, alguns fios poderiam serem
pegos pelo motor e ela ser escalpelada.
É sabido que a distância entre o sonho e a
realidade é grande e até inacessível
para aqueles que não tem contato com
pessoas do meio e desconhecem o mercado
de atuação e as habilidades necessárias para a profissão, que no caso de modelo
que ser fotogênica é essencial como
também, fazer cursos para corrigir a postura, aprender poses e expressões
faciais para fotografia, e de como comportar-se
em uma entrevista, looks para
portfólio, técnicas para se portar adequadamente em frente a uma câmera,
enquadramentos, iluminação, cuidados básicos com a pele, dentes, cabelos. Mas quem desconhece
o perigo não o teme, e confiante que uma vida
glamourosa esperava por ela, aproveitada
a claridade do luar para terminar de arrumar a mala, não desejava que
suas irmãs percebesse que a partida era
definitiva. Rosalina completara 21
anos de idade a menos de um mês, mas
aparentava ter uns 25 ou mais e
acreditava piamente que em pouco tempo a vida de privação e incompreensão seria
apenas uma lembrança; e na primeira visita à família, todo ficariam encantados
com a sua beleza e saldo da conta bancaria. Rosalina era uma exceção,
ela não partia em busca de trabalho para saciar a fome, mas
em busca de um sonho e para realiza-lo seria necessário submeter-se a qualquer
ocupação desde que dentro da Lei de Deus e dos homens, portando, o que ela não
poderia era ter problemas com a polícia.
“O trabalho dignifica o homem” expressão que ouvia desde menina, seja limpando o chão, atendendo balcão, em um
escritório, o importante era
receber o salário. Muita coisa irá mudar, passará a usar
roupas e sapatos novos, um prazer que nunca teve, sempre usara a roupa
da irmã mais velha e lavará os cabelos com xampu e enxágua-los com creme rinse, irão ficar
sedosos, macios e brilhantes; esse luxo não faz parte dos cuidados pessoas da
população campesina , o costume é fazer
a higiene do corpo e dos cabelos com sabão de
óleo de coco babaçu, fabricado em casa, um costume bem antigo. Enquanto
os objetos pessoais vão sendo apertados na mala, os novos hábitos vão sendo desenhados na mente
da jovem que almeja conhecer uma nova
maneira de viver, experimentar novos sabores gastronômicos, fazer amizades com
pessoas interessantes, frequentar lugares elegantes e ser admirada e respeitada
que não a chamarão de lunática porque gosta
de folhear revistas, jornais e de
ler romances. Rosalina sempre desejou
conversar com a família sobre
sentimentos e as poucas tentativas que fez as feridas demoraram para cicatriz tão grande foi a
zombaria. O que fora a sua vida até hoje? Trabalho silencioso e ouvido atento
as severas críticas maternas que nunca estava satisfeita com os
resultados, por mais que se esforce, sempre havia uma reclamação finalizada com: “ você não faz
nada direito, não aprende nunca. Que
castigo meu Deus, ter uma filha assim.” E nunca completava a frase e menos ainda apontava a falha e orientava-a a como
executar a tarefa corretamente. Rosalina não tinha consciência que não desejava
partir e que iria embora em busca de reconhecimento como ser humano e que
dinheiro e prestígio podiam camuflar, amenizar, mas não a findar com a sua dor existencial e carência
afetiva.
No céu a lua segue o seu curso a iluminar
a paisagem que adquiri uma
aparência mágica entre a escuridão
e claridade e os olhos de Rosalina percorrem os campos a despedir-se do pedaço
de chão onde nasceu e cresceu. O desejo
de partir em busca de uma realização profissional é grande como é a dor de abandonar tudo aquilo que
lhe é familiar, bom seria se
não fosse necessário abrir mão de
nada nesta vida. Mas a vida é feita de escolhas e ela escolheu seguir o caminho
que pedia o seu coração. Abandonar a terra natal não é fácil para ninguém
porque cada pessoa em sua pequenez compõe
a alma do lugar com o seu jeito peculiar de falar e ver mundo, de seu
trabalho, expressão cultural e suas memórias que se confundem com a história da
região, daqueles que vieram antes e deram identidade ao local. O assovio do
vento, as floradas dos ipês, a safra de araticum e pequi com seus sabores e
cheiros peculiares, o cacarejar das galinhas, o aboio dos vaqueiros, o uivo do
lobo guará, o tilintar das enxadas e o coro
das mulheres em suas ladainhas
noturnas são o coração a pulsar do lugar, é a vida em toda a
sua plenitude que está sempre em
transformação, a que se dá o nome de
progresso que assusta os mais conservadores
e encantam os progressistas, enquanto que os velhos matutos, estão
sempre a recordar como eram as coisas
nos idos tempos de sua infância, os jovens caipiras anseiam por
novidades. Esta memória é necessária para que nasça na alma da nova geração o
sentimento de pertencimento, pois é o conhecimento do passado que possibilita a
pessoa saber quem é no presente e lhe proporciona as ferramentas necessárias
para projetar o futuro com precisão.
A memória ancestral e as técnicas adquiridas pelos antepassados são os
alicerces e não há dúvida de que humanidade caminha sob os trilhos dos que vieram antes,
acrescentando e transformando algo que já existia como a título de exemplo, nas artes. Primeiro veio
a descoberta da pintura, depois a fotografia apropriou-se de algumas regras
básicas já conhecidas pelos pintores,
depois veio o cinema e deu movimento a estas
imagens, mais tarde, acrescentou-se as falas. Assim tudo parecia perfeito, mas depois veio a televisão
e nem de casa o público precisava sair, o entretenimento adentrava nos lares e
a radionovela ganhou imagens. A energia
elétrica era um luxo para os citadinos, no
campo apenas o desejo de ver imagens e o som eficiente dos rádios de pilha, a
esperança de desfrutar destas novidades
floresce no coração de Rosalina, quem
sabe ser uma atriz de radionovela ou da televisão, tudo é possível. Desta gleba
deseja levar o belo, o silêncio dos prados quebrado pelo chilrear
dos pássaros, o ritmo compassado do caminhar do gado ao entardecer rumo ao curral em busca de sal, a
magia do orvalho ao amanhecer, mas também deseja deixar e apagar do seu coração a dor de não se sentir amada pelos seus genitores, de
ser rejeitada pelas irmãs que a chamavam de vaca malhada em virtude de suas
sardas, de ser uma estranha na própria terra e que tanto ama. Ter nascido
ruiva em uma família de morenos não foi
um privilégio, e sim, um castigo, a
situação se agravou após a morte do avô que, lembrava a todos os indiscretos
que ela herdara os cabelos dourados do patriarca da família, o velho Scott, o escocês que
no início do século XIX, chegara
aquela região para trabalhar na lavoura, não fez fortuna mas deixou
descendentes trabalhadores e apegados a
terra. Um lapso de culpa atinge o
coração da jovem: abandonar mais de um
século de tradição não seria uma ofensa ao seu tataravô? Seu pensamento é desviado
por uma lufada de vento que bate a janela e ela teme que o barulho desperte suas irmãs, assim, abandona
os devaneios, fecha a mala, acerta o relógio e recolhe-se ao seu leito. Tem um sono
agitado pelo medo de perder a hora e também, pela expectativa de uma nova vida,
na qual lhe falta a técnica e o conhecimento para subir os primeiros degraus da escada da fama, ela não sabe que está mais para dar um passo no escuro a beira de um precipícios que
brilhar sob as luzes da ribalta. Em
sua bagagem ela guardou um bem
precisos: A esperança...
Romper os laços de afeto com a terra
natal e com os membros da família e comunidade é doloroso e com a firme
convicção em dias melhores,
Rosalina parte sozinha, sem despedidas, sem apoio levando consigo os
valores de sua família: honestidade,
apreço ao trabalho e a crença que a cada amanhecer a vida renova-se, isto é o
seu bem maior: acreditar! Ela não conhece os perigos a que estão expostas as moças sozinhas, na capital; quem não conhece
os perigos não os teme, mas a prudência é uma virtude que nunca deve ser
esquecida e por esta razão não há de esquecer o sábio conselho de sua mãe “
ver, ouvir e calar”, isto a ajudará a não entrar em nenhuma confusão; apesar da
distância, o respeito aos ensinamentos paternos deverão ser seguidos, porque o
seu pai, um homem rude e severo, nunca
perdeu uma oportunidade de lembrar a sua prole que jamais as buscaria na
Delegacia de Polícia, não criaria neto
filho de mãe solteira e menos ainda daria
assistência em casos de doenças sexualmente transmissíveis, como a
sífilis e hanseníase, que naquela época e região ainda eram bastante comuns.
Ela tinha bem claro em sua mente, a importância da obediência filial, amava seu
pai e não desejava romper definitivamente
este laço, famosa e com dinheiro, sua fuga seria perdoada, mas solteira,
doente e com um filho nos braços,
ninguém lhe estenderia a mão, nem mesmo as cafetinas das casas de tolerância
acolheriam uma moça nestas condições, disto ela tinha certeza. Com os
valores aprendidos em casa como balizas
em sua nova jornada, coragem e disposição para trabalhar, Rosalina acreditava
que conseguiria ingressar com facilidade na carreira artista, ela desconhecia a força
do popular “Q.I,” (quem indica) tão necessário no mercado de trabalho
e, nas condições dela, talvez seria de pouca utilidade porque já constava com
22 anos de idade, desconhecia as regras
da linguagem dramática, não sabia dançar, no canto era desafinada e somada a falta de
habilidades artística, ainda era tímida e sua dicção precisava ser trabalhada
por uma fonoaudióloga.
Para
a jovem sonhadora, o ato de
fechar a mala simbolizava o prenúncio de
uma nova vida e do adeus as lembranças
dolorosas e constrangedoras, as quais ela não tinha ciência que tratava-se de
um crime denominado abuso sexual, e mesmo se soubesse, quem acreditaria que o seu tio materno, já deslizou sua mão
por baixo de seu vestido, tocou os seus seios e indagou se ela permitia que
seus namoradinhos desfrutassem de suas delícias. Ela sabia da gravidade do ato,
mas preferiu calar-se porque tinha a firme convicção que seria chamada de
mentirosa e talvez até levasse uma surra pela difamação do parente, já que a
sua alcunha era “ cabeças nas nuvens”.Em sua região, o incesto era uma prática condenada não somente pelo pecado, perante a Santa
Madre Igreja Católica Apostólica Romana, mas também pela possibilidade de gerar
uma criança com uma deficiência física
ou mental. Com relação ao episodio com o tio, Rosalina sentia-se aliviada, com a sua partida, uma tragédia iria ser
evitada. Apesar das mulheres mais velhas de sua família não falarem sobre a sexualidade
feminina ela lia em revistas e observava a copulação entre os
animais do sítio e sabia que o macho persiste até conseguir acasalar e o tio iria lutar até
conseguir o seu objetivo. Ela nunca havia namorado, não por falta de
pretendentes, mas porque sempre desejou partir e não queria cair na cilada da paixão, como acontecera com várias moças das redondezas que acabaram casando às pressas para que
ninguém percebesse que havia uma criança a caminho.
Rosalina desceu do ônibus um pouco
tonta, e com dores nas pernas, nunca havia permanecido tanto tempo dentro de um
veículo em movimento, era a primeira vez que ia a capital e ficou estupefata
com o burburinho e tamanho do Terminal Rodoviário e seu
coração rejubilou-se quando viu a sua prima a esperá-la na plataforma de
desembarque, sozinha, ela não saberia
sequer encontrar a saída e as surpresas estavam só começando.Tudo era
novidade, a escada rolante, o transporte
coletivo, o agito das ruas, a
diversidade do comércio, arquitetura moderna com seus altos edifícios, as
longas distâncias a indiferença entre as pessoas, e os batedores
de carteiras, mas ela não poder perder tempo apreciando o novo, precisa prestar
atenção no trajeto, anotar os pontos de referências, nomes das ruas para aprender a andar sozinha porque sua prima trabalhava e não poderia
servir-lhe de guia. Nem sempre a
realidade condiz com o sonho e a expectativa
de uma vida melhor sem o apoio
financeiro e emocional dos pais não é
fácil e Rosalina teve ciência disto
assim que adentrou em sua nova morada:
um barracão em uma favela, sem
móveis, apenas um colchão de solteiro e um fogão de duas
boas. Roupas e mantimentos ficavam em caixas de papelão que atraiam baratas em
abundância e para completar o quadro a prima confessou que estava grávida de
três meses de um aventureiro casado
que afirmou que não iria assumir a
criança para não ter problemas com o sogro.
Apesar da pobreza nunca experimentada por ela antes, já que no sítio
sempre faltou dinheiro, mas em
contrapartida, sempre havia abundância de alimentos porque além da horta, cultivavam para as
despesas, arroz, feijão, milho, mandioca e diversas árvores frutíferas, sem falar na criação de
porcos, galinha e algumas vacas leiteiras. Diante desta nova realidade,
a moça não esmoreceu, e aceitou de bom grado a sugestão de prima de que
ela cuidasse da casa e do bebê porque ela já tinha emprego com carteira registrada e arcaria com as
despesas da casa e do aluguel, ambas estavam no mesmo barco, sem poder
regressarem ao conforto da casa paterna,
então o melhor a fazer era uma apoiar a outra, a prima não sabia do sonho
de Rosalina tornar-me uma modelo ou uma
atriz famosa e mais uma vez ela preferiu calar-se e concordou, aproveitaria o
tempo de espera para a chegada da criança para conhecer a cidade, a biblioteca
municipal e descobrir uma maneira de
entrar em contato com o mundo artístico.
Rosalina procurou adaptar-se à nova realidade da favela: esgoto a céu
aberto, ruas sem calçamento, som alto, briga entre familiares e vizinhos e a
presença constante da Polícia Militar;
nos momento de maior tensão, firmava o pensamento e repetia a si mesma que era
apenas uma fase ruim e que iria passar,
em breve, estaria morando em um lugar melhor e com mais comida na despensa; acostumada a colher fruta do pé,
sempre que sentia vontade entre os intervalos das refeições, agora não havia
sequer um pedaço de pão amanhecido e a fome corroia o seu estômago mas ela resistia, sabia que não podia voltar
e nem abandonar o seu sonho acalentando
a tanto tempo. Em uma manhã fria, já com seis meses de gravidez, a prima sentiu
dores na barriga enquanto se arrumava para o trabalho e não
podia faltar, preocupada, Rosalina decidiu acompanhá-la. No
ônibus, durante o trajeto a situação agravou-se e uma senhora orientou as
jovens inexperientes a procurarem uma maternidade porque a criança iria nascer
em breve, o que elas não sabiam é que era um aborto espontâneo. Com a perda do bebê,
ela precisava conseguir um trabalho para se manter e ajudar nas despesas da casa; Sem
dinheiro para a condução, ela saia de manhã, dirigia-se a biblioteca
municipal que disponibilizava o jornal
do dia para as pessoas e sem perda de tempo lia o caderno de
classificados em busca de uma vaga de balconista, recepcionista,
babá,ascensorista, qualquer ocupação que ela
acreditava que fosse capaz de executar, mas ela não tinha
registro em carteira, carta de referência e nem experiência. Com o estômago a reclamar alimento, sede,
dores nos pés, ela ia aos endereços anunciados, preenchia fichas e nunca
chegava um telegrama convocando para uma entrevista. Os dias pareciam iguais e
a busca por uma ocupação estava bem mais difícil do que o esperado. Além da
leitura dos classificados, percorria as ruas do centro lendo os cartazes dos
plaqueiros, entrando nos comércios e
indagando se não havia vagas, sempre ouvindo não e promessas das agências de
emprego para aguardar. Somada a esta
maratona diária, limpava a casa, cozinhava, lavava e passava as roupas de ambas
e quando pedia dinheiro a prima para comprar fichas telefônicas para saber como
chegar a algum endereço ou pedir uma informação sobre trabalho,
invariavelmente ouvia que ela precisava
economizar porque o dinheiro mal dava
para o supermercado, aluguel, já que a luz e
água eram gatos. Ela precisa urgente de
um trabalho para a sua
sobrevivência e também para renovar o
seu guarda-roupa, pois sempre usara as roupas das irmãs mais velhas compradas
por um preço simbólico e já estavam bem gastas.
O que estava ruim ficou um pouco
pior quando a sua prima arrumou um namorado, um
homem uns quinze anos mais velho
que ela, desempregado que vivia de pequenos trabalhos temporários e o
levou para morar com elas. Ele chegou apenas com um colchão e sem nenhum
dinheiro no bolso, uma situação constrangedora porque dormiam os três no mesmo
quarto. O desespero crescia a cada dia,
não podia voltar ao lar humilhada,
pedindo perdão aos pais por ter fugido de casa e caso conseguisse o perdão
paterno, que futuro teria ela? Quem iria acreditar em sua história de que saíra
de casa em busca de trabalho e que a sua virgindade estava preservada? Nenhum
rapaz casaria com ela, as primas e amigas afastariam para não ficarem faladas e
não mais poderia andar sozinha porque
sempre haveria um homem a sondar a possibilidade de conseguir desfrutar
do prazer carnal, para a comunidade rural , ela seria uma mulher desonrada e
desprezada, e na cidade, o máximo que conseguira seria um emprego para ganhar
meio salário mínimo e amargar o remorso de
não ter tentado o suficiente. Ela não podia esmorecer. Tinha que lutar
até exaurir todas as suas forças. Apesar dos esforços diários, a tão almejada
oportunidade não aparecia e voltar para casa antes da prima era um suplício porque o namorado já tentara
tocar-lhe os seios e ela temia que o pior poderia acontecer. E se ela
engravidasse do homem da mulher que a acolhera em seu lar, desempregada, sem
dinheiro e sozinha em uma cidade grande?
Sem filhos já estava difícil
conseguir um trabalho imagine uma mãe
solteira, refletia desesperada. Frente a esta dura realidade, procurava não
pensar em seu sonho profissional e
investir todas as suas energias em
busca de qualquer trabalho,
desde que fosse honrado, que pudesse
dizer com orgulho que era ascensorista no edifício tal, ou balconista na loja
X. A exemplos dos camponeses que em tempos de secas prolongadas lutam
até esgotarem todas as
possibilidades para impedir o gado de morrer
de fome ou de sede, Rosalina saia, todas
as manhãs, de segunda –feira a sexta-feira,
enfrentando chuva e sol ardente em sua jornada infrutífera, a perambular
pelo centro da cidade, de porta em porta a preencher ficha de solicitação de
emprego, e numa tarde fria um fio de
esperança nasceu em seu coração ao ler um anúncio que admitia moças sem
experiência e não perdeu tempo, pediu o
endereço ao plaqueiro e com alegria preencheu a ficha e seu coração
bateu forte quando a recepcionista pediu
que aguardasse na sala ao lado para ser chamada para a entrevista. Parecia
um sonho e os minutos pareciam horas.
Rosalina estava eufórica! Pela
primeira teria a oportunidade de
explicar ao entrevistador que apesar de não ter registro em carteira,
tinha disposição para aprender e valores
sólidos como pontualidade, perseverança, honestidade, que não tinha medo de
serviço e que desde criança ajudava os pais na lida diária. Ela não sabe quanto tempo esperou e quando
finalmente, a porta abriu, saiu uma jovem que pediu que ela entrasse. – Preciso
falar pausadamente e sem gaguejar,
pensou. Foi recebida por um senhor moreno e
sério e que trajava um terno de linho amarelo, fato que chamou a sua
atenção, pois em sua região, em eventos sociais, a preferência masculina era por trajes de
cores sóbrias, como o preto, azul escuro e marrom e cinza, em frações de
segundo veio a sua mente o casamento de
Afonsina, que o noivo usou um traje
xadrez e a sua avó paterna chamou todas as netas e orientou-as que quando
fossem casar, que não deixe a escolha do terno somente na responsabilidade do
noivo. Mas isso foi há uns cinco anos, talvez a moda na capital seja outra, mas o que realmente
importava era a vaga, ele poderia estar até de bermuda. Imersa em suas
reflexões, não deu atenção ao olhar devorador dele e com dificuldade conseguiu cumprimentá-lo. Não
foi como ela esperava, ele apenas disse para ela pedir à recepcionista que
agendasse a entrevista para o outro dia ás
onze horas. Decepcionada ela não questionou porque lhe faltou coragem e
palavras mas cumpriu a ordem. Talvez este fosse o jeito dele trabalhar e
a esperança de um encaminhamento para uma vaga renasceu em seu coração e aproveitou o resto do dia para dar uma volta
no parque municipal, renovar as energias porque a sua hora havia chegado, assim
acreditava a inocente jovem.
O silêncio era uma característica de
Rosalina e ela nada disse à prima sobre a entrevista, porém, arrumou-se com
mais esmero e um pouco antes das onze
horas, ela já havia informado seu nome à recepcionista e feliz, aguardava na
sala de espera, acreditava que não iria demorar porque não havia ninguém em sua
frente. O relógio da parede marcou onze horas e vinte minutos, a recepcionista
saiu para o almoço sem nada lhe dizer e
fechou a porta da recepção. De repente, a porta da sala de entrevistas
abriu e o mesmo senhor, com o mesmo terno amarelo disse para ela entrar, com as pernas trêmulas ela acatou
a ordem. Ele não indicou a cadeira para ela sentar, como de praxe, fechou a porta, encostou-a na
parede e começou a beijar o seu rosto, pescoço, boca, enquanto sua mão
desabotoava a sua blusa, e quando
desnudou-lhe os seios, apertava-os com tanta força que lágrimas de dor
brotaram em seus olhos assustados diante da situação inusitada. Ele continuou
seguindo seus impulsos sexuais, desceu
suavemente a mão pelo corpo da jovem,
levantou sua saia e sua não acariciou por um longo tempo suas partes íntimas e
já saciado, sentou a jovem no sofá, deitou em seu colo, acariciou-lhe os seios
e mamou por um longo tempo com a serenidade de um bebê. Neste tempo, nenhuma
palavra foi dita e a jovem permaneceu
estática, sem nenhuma reação enquanto ele desfrutava de seu corpo à sua maneira.
Em sua região, nunca soube de um patrão
tivesse agido assim com uma trabalhadora, também não havia na região nenhuma mãe solteira, as que
cederam a tão falada prova de amor,
casaram rápido graças ao acordo
firmado pelos pais de ambos. A vida no campo enfrenta perigos constantes com
animais peçonhentos e selvagens, e desde a
mais tenra idade, as crianças
aprendem com agir quando se vêem
frente a frente a frente com o inimigo e
por analogia instintiva, ela percebeu que não havia como lutar. Ela não tinha
forças para imobilizá-lo. Não havia mais ninguém na agência, gritar seria
inútil, quem iria ouvir o seu chamado? Fugir não seria
fácil, a
porta da recepção poderia estar trancada,
e a tentativa de fuga poderia despertar a iria de seu algoz e acontecer uma tragédia. O que a teria
salvado da situação seria a argumentação,
mas a voz desapareceu e não conseguiu sequer esboçar um gemido de
dor ou um pedido de clemência. Desesperada,
com medo que o ato sexual fosse consumado, firmou o pensamento em Deus e
pediu-lhe que a salvasse do perigo iminente; uma gravidez era a última coisa que poderia lhe acontecer.
Embora gostasse de crianças, filhos são presentes divinos e promessas de continuidade da vida, mas precisam ser
alimentados e cuidados, sem dinheiro,
sem emprego, seria mais uma tragédia. Se Deus ouviu o clamor ou não, nunca saberemos,
fato é que saciado, ele levantou, tirou
um lenço do bolso, secou o suor que lhe escorria pelas frontes e disse
que ela podia ir. Perplexa, aliviada e grata por não ter acontecido o pior,
Rosalina não disse nada, se recompôs e
como um zumbi, percorreu por horas as ruas da cidade até conseguir forças para
voltar para casa. Se ao menos ela
tivesse alguém para falar sobre o
ocorrido e aliviar a tensão e assim, não viu outra alternativa senão calar. Em
sua família, nunca lhe foi dada atenção, qualquer incômodo físico ou emocional
era interpretado como preguiça, um jeito
de furtar-se do trabalho. Ademais, sempre teve fama de mentirosa pela sua
maneira peculiar de ver o mundo, com
mais leveza e cores belas. Suas conversas profundas sempre eram com os animais do
sítio, mas agora, sequer tinha um gatinho. - Que decadência! Sequer posso
alimentar um bichinho de estimação. E assim, concluiu que o melhor era não comentar nada com a prima e agradecer a Deus por estar viva e sem carregar
em seu ventre, uma vida inocente. Ela
queria apenas uma oportunidade de trabalho!
Em sua peregrinação pela cidade em
busca de trabalho, este assédio sexual foi um caso isolado e ela continuou a
ouvir a frase padrão das recepcionistas das agências de emprego, “ È só aguardar,
assim que surgir vagas, entraremos em contato.” Nestes
idos tempos, rara era uma casa que tinha telefone e o que Rosalina não sabia, é que nenhuma
empresa iria enviar telegrama para uma
candidata como ela, sem experiência, ela dependia da sorte, de ir ao local certo, na hora certa. Dois meses se passaram e finalmente,
ela conseguiu um trabalho e seu contentamento foi maior ao saber que era uma
empresa familiar e que não fechava para almoço, não haveria riscos de passar por situações
críticas pensou aliviada. A demissão da
jovem titular da vaga estava condicionada ao treinamento da nova funcionária, e
ela o fez com muita paciência e dedicação, isso foi fator essencial para que
Rosalina conseguisse o trabalho. Recebia apenas um salário mínimo, sem nenhum
benefício, mas com registro em carteira. Parecia
um sonho! Agora poderia ajudar nas despesas de casa, renovar o guarda roupa,
comprar o jornal e retomar a sua busca
rumo ao estrelado.
Rosalina estava feliz, mas nem tudo eram flores, o namorado da
prima, irritado com as constantes recusas da jovem diante de suas investidas,
pediu que ela deixasse a casa e se não o
fizesse dentro de um mês ela iria arrepender-se profundamente. Temerosa, ela
conversou com as colegas de trabalho e
consegui alugar um barraco nos fundos da casa da mãe de uma delas, e o melhor,
apenas três quilômetros do trabalho, em dias de sol, poderia ir caminhando e
economizar o dinheiro da passagem. O inconveniente era que os proprietários eram bastantes ruidosos, a
lavanderia era comunitária. Rosalina fez um crediário, comprou um fogão e um
colchão, o básico para conseguir viver e agradeceu a Deus por poder dormir tranquila, sem o risco de ser
molestada. Com o tempo as coisas iriam melhor
Pesquisar a transição do governo militar.
Ignorando a dor nos pés decorrente
dos sapatos apertados, ela caminha até o
trabalho e com o dinheiro economizado, pagava
as contas de luz, água e comprava o jornal de domingo com olho nos classificados em busca de
oportunidade no meio das artes. O pouco que sobrava, escondia em um buraco da
parede para futuramente
renovar o guarda-roupa e
apresentar-se melhor em sua nova
jornada. As coisas pareciam caminhar em
direção aos seus objetivos. Estava trabalhando, morando sozinha e agora, por
meio das colegas, descobria uma escola de estética próximo a loja que
recrutava modelos voluntárias para as
alunas e ela não perdeu essa oportunidade
de cuidar da pele. Sofreu um pouco com a inexperiência das futuras
depiladoras e manicuras, mas mesmo assim, ela agradecia a oportunidade por ela
não tinha condição de procurar profissionais competentes. Embora sempre
faminta, estava feliz e acreditava que
estava aos poucos, vencendo os obstáculos impostos pela vida, mas em seu
novo caminhar, espinhos maiores ainda iriam cobrir a sua estrada e ferir o seu
corpo e a sua alma. Ás segundas- feira,
sempre que se encontra sozinha no escritório, entrava em contato com os
anunciantes e marcava horário sempre
após o expediente ou horário de almoço e lá ia ela com o estômago corroído pela
fome em busca de um sonho. Fazia apenas uma refeição ao dia que consistia
em arroz, ovo frito, uma rodela de
tomate e uma folha de alface, o mais barato que existia na redondeza.
Apesar de estar morando na capital,
Rosalinha não desenvolveu a habilidade
de fazer perguntas, assim, não dispunha
de informações precisas para
ingressar na carreira de modelo e
mantinha a sua dinâmica aos domingos,
comprar o jornal de maior circulação, ler os classificados de emprego, sem uma explicação plausível, confiava na
seriedade dos anúncios, assim como os
apostadores de casas lotéricas, nada questionam e acredita em um prêmio
que nunca chega. Em sua ingenuidade, ela
sequer cogitava a possibilidade de que uma empresa que anunciava em um veículo de
comunicação de credibilidade
pudesse abusar da inocência de um
candidato e nem a prática lhe mostrou
que a postura das agencias “caça
–níquel” não era tão sérias como ela imaginava.
Ela perdeu a conta de quanto
dinheiro gastou em taxas de inscrição e material de divulgação. Não ouviu um não e o pior, nenhuma alma misericordiosa orientou-a, que primeiro ela deveria estudar,
fazer cursos na área, para aprimorar o
talento que ela acreditava ter, cuidar da aparência, pelo contrário, elogiavam
os seus cabelos ruivos, quebradiços, diziam que era o seu diferencial, mas a
palavra final é do cliente, diziam. O investimento em material fotográfico pesava no orçamento, cada agência exigia um
padrão diferente e lá ia mais dinheiro. Ela desconhecia estas artinhas dos
empresários para arrancar dinheiro dos ingênuos aspirantes ao mundo do
glamour.
E a vida de Rosalina transformou-se
em círculo vicioso, gastava dinheiro em pagamento de taxa de inscrição e
material de divulgação, consequentemente, faltava para uma alimentação adequada
e cuidado físicos, importantíssimo para
quem pretende viver da imagem. Demorou, mas finalmente ela acordou parcialmente para a realidade e decidiu que
continuaria a olhar os classificados em
busca de algo mais acessível. Em domingo frio e chuvoso um anúncio chamou a sua
atenção, o de uma agência de modelo que selecionava moças sem experiências e
que não cobrava taxa de agenciamento e book, porém, cada candidata teria que vender dez ingressos
de um desfile produzido pela própria
agência, e no ato da entrega do dinheiro fariam as fotos de trabalho. E mais
uma vez, munida apenas com a sua
inseparável companheira, a
esperança e com os ingressos em mãos,
iniciou uma planilha de gastos para ver
onde poderia cortar e economizar para
comprar os ingressos porque não podia contar com o auxílio de parentes e
amigos como é de praxe na vida de
artistas iniciantes que não pertencem ao meio artístico. Assim, Rosalina se viu
obrigada a lançar mão de suas economias
e abdicar do almoço no restaurante
popular e do transporte; naqueles idos
tempos em que as empresas não eram obrigadas a fornecer vale transporte e
alimentação; ir ao trabalho caminhando com a marmita no bolso representava uma boa
economia. Do seu salário mínimo, ela separou a quantia exata para as despesas
essenciais de aluguel, água, luz, supermercado e ainda teve que preparar um cardápio rigoroso e durante quinze dias, o seu
café da manhã era um pão francês com um copo de água com açúcar e no almoço, arroz, feijão e polenta que ela
devorava rapidamente para que as
colegas não percebessem a carestia que enfrentava e no jantar, apenas polenta porque o fubá era o
mais barato dos três ingredientes.
Foram quinze dias difíceis! Rosalina
estava sempre com fome, perdeu peso, mas
conseguiu o dinheiro para pagar
os ingressos e com um brilho verde de
esperança em seu olhar, no seu horário de almoço, correu até a
agência para efetuar o pagamento e
marcar as fotos. O Selecionador conferiu o dinheiro, anotou o seu nome e pediu
que retornasse no outro dia às 19 horas e levasse trajes de banho. A peça
faltava em seu guarda-roupa e sem dinheiro
para comprar uma nova, sem a menor ideia
da importância da produção em um ensaio fotográfico, improvisou com o que
tinha, um velho colan, atualmente conhecido como body, em voga na época. Era uma
quarta-feira fria de inverno, cansada, faminta, sem dinheiro para a condução, subiu a Rua do
Ouvidor a passos rápidos, foram mais de 40 minutos de caminhada, porém, chegou
no horário marcado, e foi recebida pelo selecionador/fotógrafo que já havia percebido a sua inexperiência e
sequer a orientou a pentear os cabelos
secos e quebradiços, passar um batom. Era uma agência sem estrutura,
daquelas chamadas pelos profissionais experientes de “caça níquel e sexo fácil”
da qual eles mantinham distâncias, mas para a sonhadora Rosalina, era a sua chance, assim, deixou-se guiar pelo fotógrafo, que direcionava-a para
que fosse retirando a roupa e quando já estava com o sei0s desnudos, ele deixou
de lado o seu instrumento de trabalho e
começou a acariciar-lhe os seios, enquanto beija o seu pescoço e murmurava promessas
vãs de fazê-la brilhar nas passarelas e
capas de revistas conhecidas. Perplexa com o rumo que as coisas tomaram e como
era de sua natureza, não gritou e nem lutou para desvencilhar dele, tampouco
correspondeu às suas carícias. Por proteção divina ou pela inércia da jovem, ele não seguiu adiante com seus carinhos e disse apenas que ela
retornasse dentro de dois dias para ver a prova das fotos.
Se sua razão não estivesse ofuscada
pelo desejo de iniciar uma nova etapa
profissional, Rosalina teria percebido que estava trilhando o caminho da humilhação e perda de tempo e em sua
ingenuidade, ela voltou para casa acompanhada de suas amigas inseparáveis: a fome e a esperança!
Sentia a necessidade de falar com
alguém para aliviar a angústia que já
não cabia em seu peito. Conversar com quem? Não era prudente conversar com as
colegas de trabalho sobre o seu sonho profissional
acalentado há tantos anos, expor os seus sentimentos, isto seria bom, mas
aprendera desde criança a discrição para evitar a zombaria dos outros. Agora,
seus assuntos eram repetitivos e giram
em torno das mazelas do dia a dia do pobre, como o alto preço do aluguel, produtos alimentícios e condução. Se tivesse
televisão, poderia conversar sobre as novelas, se tivesse condições para frequentar a vida noturna, poderia discorrer sobre os
melhores barzinhos, filmes e peças de teatro. A sua vida se resumia em
trabalho, banca de jornal e a leitura
dos classificados, sequer lia os outros cadernos para ampliar a sua visão de mundo, se o tivesse feito, teria percebido que o
conhecimento é o melhor conselheiro. Passado os dois dias, após o expediente,
retornou à agência e foi recebida pelo fotógrafo que lhe informou que as fotos
não ficaram boas e que ela voltasse em dois meses, para pegar
mais dez ingressos, para ganhar outra sessão de fotos. Em um lapso de
lucidez, Rosalina levantou, pegou sua bolsa e saiu sem se despedir. Lágrimas de
desilusão rolavam silenciosas em seu
rosto e passos lentos a levavam para
casa. Precisa dormir para esquecer a fome,
a tristeza e a sensação de fracasso. Estava cansada e só, como sempre
esteve, mesmo quando morava com a sua família.
Desejou aconchegar-se no colo de
sua avó, como quando era criança. Era tudo que ela precisa um colo e alguém que lhe afagasse os cabelos e dissesse
que o amanhã seria diferente e
melhor do que o hoje.
Rosalina acordou atrasada e cansada, parecia que o peso do mundo
desabara sobre os seus ombros, mas não podia fraquejar, precisava trabalhar.
Para saciar a sua fome, ela dispunha apenas de um pão velho, e desejou uma xícara de café para aquecer-lhe
o corpo e alma, mas teve que se contentar com um copo de água doce (água com
açúcar). Sem dinheiro para a condução, foi caminhado até o trabalho, e entre um
passo e outro, pensava na dureza da
vida, não tinha lembranças de quando começou
na lida: primeiro ajudando com os irmãos menores, alimentos as aves
domésticas, cães e gatos, depois já adolescente foi assumindo outras
tarefas que exigiam mais destreza como lidar com o gado leiteiro e na
lavoura. Agora, na cidade, a dureza era a mesma, sempre a obedecer e ter que
entregar o serviço na hora certa. Ela
acreditava ser uma moça trabalhadeira e
não entendia porque ninguém lhe dava uma oportunidade, queriam apenas desfrutar
de seu corpo. À jovem, faltava-lhe malícia,
conhecimento e a ciência de seu despreparo para exercer qualquer função na
carreira artística. Nem sequer tinha clareza do que desejava: ser atriz de
cinema, teatro, televisão ou modelo fotográfico, mas o sonho crescia na mesma proporção
que a sua ingenuidade e mesmo antes de chegar à loja, já havia traçado um novo plano de ação para economizar. Compraria
o jornal somente no primeiro domingo do mês e
um dia, ela pensou mais uma vez que a sua grande oportunidade tinha
chegado. Apresentou – se na agência, uma
simpática recepcionista orientou-a sobre as fotos, perguntou-lhe se ela já tinha um fotógrafo, como disse que não,
ela lhe entregou o cartão de uma
fotógrafa que trabalhada para a agência.
Rosalina respirou aliviada porque
pressentiu que desta vez não seria assediada. Agradeceu à jovem e saiu em
direção a uma banca de jornal para comprar fichas telefônicas; contatou a
profissional e agendou o ensaio para um
domingo de manhã e pela primeira vez, em sua busca infrutífera recebeu uma orientação. Sim, a fotógrafa sugeriu que no dia, levasse três trajes diferentes: um de
noite, esportivo e casual. Por desconhecimento e também por não Tê-los, em sua
mochila constava somente, além das roupas, somente um batom e um lápis para os
olhos de qualidade duvidosa. Nem sapatos
e nem adereços faziam parte da bagagem, o que não desmotivou a fotógrafa que
deu o seu melhor, orientou-a em como
melhor utilizar a sua parca produção, ajeitou os seus cabelos ruivos e maltratados, procurou os melhores ângulos e pela primeira
vez, Rosalina sentiu-se respeitada e o resultado foi positivo. As fotos ficaram
lindas! Assim que as teve em suas mãos,
um leve tremor percorreu o seu
corpo, nem parecia ela. Desejou ter dinheiro
para revelar mais fotos, além daquelas
que deveriam ser entres à agência, para mostrá-las aos familiares, que sempre a
chamavam de feia e atrapalhada. E se as
colegas de trabalho a vissem assim, tão bela, talvez zombassem menos do seu jeito interiorano de
ser. Mas era apenas mais um desejo avisou-lhe a “prudência”,
assim, guardou esta alegria em seu coração e a esperança em uma carreira
promissora ganhou mais força e ela não perdeu tempo, dirigiu-se à agência,
entregou as fotos, preencheu a ficha, informou o telefone do seu trabalho para
contato, por sorte, a responsabilidade
do atendimento telefônico era dela, assim, ninguém descobriria o seu sonho
secreto.
Os dias foram passando e quando a esperança já estava a findar,
quase no final do expediente, ao atender o telefone teve uma agradável
surpresa. Era a recepcionista da agência
pedindo que ela se apresentasse
às19 horas, para fazer um teste para um
comercial. Ela concordou de imediato e não quis adentrar no assunto para não
levantar suspeitas já que o patrão estava perto. No horário combinado, com o coração quase a
saltar pela boca, lá estava a ingênua aspirante
ao sucesso, sim ao sucesso imaginário, no qual ela ganharia muito dinheiro, e com certeza, seria respeitada e admirada
pelos seus familiares, porque amada por seus genitores, ela já não tinha mais esta ilusão, desde que
se entendia por gente, sempre ouvira de sua mãe, que fora castiga por
Deus, ao dar à luz uma criança ruiva e
sardenta, feia por natureza, e que se
ela na tivesse nascido em casa, com certeza
cogitaria a possibilidade de ter sido trocada na maternidade. Não ter
traços físicos e comportamentais
reconhecidos pela mãe,é uma dor que uma filha carrega por toda a vida, e este não
reconhecido, talvez tenha sido o
responsável pelo desejo insano de Rosalina de
fazer sucesso em uma carreira artística,
vontade esta que lhe ofuscava a razão e foi com o coração transbordando de
alegria que adentrou a agência de
modelo, e lá encontrou somente o sorridente
e bem trajado selecionador, que a convidou a ir ao seu apartamento para
fazer um teste para uma comercial de
camisolas para um motel e fotos para uma
revista masculina. Ávida pela possibilidade de fazer sucesso, ganhar dinheiro e
enfim, ser reconhecida pela família, não atentou ao fato de que caso a sua
família tomassem conhecimento deste tipo de trabalho, ela não mais seria vista
em sua região como uma moça
honrada, e não conversou sobre o
contrato porque simplesmente desconhecia esta formalidade que resguarda ambas as partes, tampou questionou
se ele tinha um estúdio em seu
apartamento já que sequer conhecia a
palavra “ estúdio”. Não falaram durante o trajeto e Rosalina
observava atentamente as ruas e os
prédios para saber voltar, costume
adquirido no tempo em que trabalhava na lida campeira em que marcar pontos de
referências é o que garante o caminho de volta para casa sem maiores tropeços e um encontro inesperado com
uma onça pintada, e tranquila entrou no
apartamento de um desconhecido e que fechou a porta, e não a convidou a sentar, aproximou-se dela e com uma voz
rouca perguntou se ela ia “transar gostoso com ele”. Surpresa com a pergunta, ela pediu para ensaiar o comercial e foi prontamente
atendida Ele pediu que ela tirasse a roupa com delicadeza e sensualidade,
depois deitasse no sofá com um olhar de desejo, a esperar o marido, que seria
representado por ele; mais uma vez ela
se viu nua nos braços de um desconhecido
e assustada, não conseguiu interpretar uma esposa fogosa e apaixonada,
não correspondeu aos carinhos do selecionador, que se irritou e pediu que ela
se vestisse e fosse embora porque ela era “muito fria” para realizar
o trabalho. Envergonhada, frustrada pela perda da oportunidade, ela não
contestou e nem pediu uma segunda oportunidade,
apenas cumpriu a ordem e saiu apressada à procura de um ponto de ônibus
para voltar para casa ,e pela primeira
vez, pensou em desistir da carreira artística.
Encerrada a jornada diária de
trabalho, voltar para casa é bom somente para aquelas pessoas afortunadas que
tem alguém a esperá-las e comida na mesa.
Para Rosalina, que gastava os seus parcos recursos erroneamente
na tentativa de ingressar em outra
carreira, o que a obrigava a fazer somente suas refeições ao dia era
doloroso o retorno ao lar. Para não sentir o cheiro da comida alheia, após o
trabalho, ficava vagando pelas ruas da
cidade olhar a vitrines e em dias chuvosos, ficava sentada no ponto de ônibus
esperando o passar das horas. Ela preferia chegar a casa quando todos já
estivessem recolhidos, o banheiro já
estaria liberado e com o corpo cansado, o sono não tardava a chegar. E numa
destas andanças sem destino, foi abordada por um senhor educado e bem trajado,
que lhe indagou se não deseja ingressar
na carreira de modelo. A pergunta foi a faísca que precisava para
reacender a chama apagada decorrente da
última experiência, mas por prudência, não demonstrou interesse, disse que era uma moça feia e que não nascera para isso, também estava satisfeita com o seu trabalho. Ele teceu-lhe vários elogios e o fato de ser
ruiva já era um bom diferencial completou e convidou-a a ir ao seu escritório
para conhecer o trabalho
dele. Com o discernimento
ofuscado pelo desejo de ver o seu
rosto na capa das revistas da moda, a
inocente jovem concordou. De fato, ele lhe entregou várias revistas e disse que
ele era o editor chefe, por desconhecer as atribuições do cargo, nada
questionou, mas pensou que fosse algo importante e nada mais disseram. Ela se
envolveu com as revistas e seus devaneios, ele com a sua malícia e seu desejo.
Ele não resistiu! Levantou, chegou por trás, começou a beijar-lhe o pescoço
enquanto as mãos impetuosas procuram os
seios da jovem, que não manifestou nenhuma reação, não correspondeu aos carinhos, tampouco
repeliu-o e continuou a folhear as revistas como se nada estivesse
acontecendo. Mas esta não foi uma boa
estratégia porque o suposto respeitável senhor sentiu-se rejeitado e enfurecido, bradou que
a atitude dela ela inaceitável, uma
desfeita, que nenhuma mulher não podia
fazer isso com um homem. Rosalina percebeu o perigo e ela sentiu o sangue gelar
nas veias. Fugir ou lutar? Disfarçadamente, olhou
em direção a saída, a chave estava na porta, ela tinha uma única chance
de escapar e não iria perdê-la. Com uma rapidez inacreditável, pegou a bolsa e
correu até a porta, e sem olhar para
trás, desceu rapidamente pelas escadas e
quando o seu pé pisou firme na calçada,
respirou aliviada e seguiu rápido
em direção ao ponto de ônibus, sempre a
observar se ele não estava por perto. ~
Sem perceber, Rosalina pagava
um preço alto por ter rompido com
as tradições familiares de trabalho no
campo, casamento e cuidado com a prole. Ao almejar um estilo de vida
conhecido por meio de revistas,
este sonho trancado em uma gaveta secreta de seu coração
parecia-lhe a cada dia mais pesado, mas ela não conseguia
libertá-lo, tornara-se prisioneira de um
desejo e não conhecia ninguém para
partilhar a sua angústia e direcionar o
seu caminhar por uma estrada menos
íngreme e com poucas pedras e quiçá alguma árvore frondosa para que pudesse descansar.
Abençoada seria se conseguisse abrir o seu coração com uma pessoa realista que
lhe retirasse a venda dos olhos para que enxergasse o abismo
que a esperava ao final de sua
jornada. Sentia-se como um animal abandonado à própria sorte.Será
que Rosalina almeja muito da vida? Ela deseja apenas ser admirada pelo seu
talento, amada pelos pais, respeitada
pelos superiores e colegas de trabalho, e o mais importante: sentir-se gente,
conversar com as pessoas, não apenas acatar ordens sem questioná-las. - Pessoas
elegantes e famosas conversar sobre o
quê? Suspirava a jovem. Sua condição
financeira não lhe permitia sequer possuir uma televisão ou um simples rádio de
pilha. O jornal que compra uma vez ao mês, lia apenas o caderno de
classificados e especificamente a sessão
de empregos, e, se conseguisse sair do
círculo vicioso em que se encontrava e
aventurar-se à leitura do jornal, de pouco adiantaria porque cursara somente as
séries iniciais do ensino fundamental em uma classe multisseriada, com uma
professora negligente, que bordou o
enxoval de casamento durante as aulas, assim, sua leitura era mecânica e em
seus poucos anos nos bancos escolares, não desenvolveu a habilidade de
interpretação de textos. Às vezes, após
percorrer os classificados, seus olhos pousavam no caderno de cultura e as peças em cartaz
chamavam a sua atenção. Nunca fora ao teatro e na escola, uma única vez, a
professora ensaiou um texto para o dia das mães. Foram muito aplaudidos, mas o
público era somente de mães e a sua não
estava presente. A sensação de aplausos fora boa, mesmo ciente que não
eram a ela dirigidos, cada genitora
vibrava com o desempenho de seu rebento,
mas ela estava sozinha. Talvez, em decorrência
desta experiência, em que não foi criticada pelos familiares é que tenha nascido o desejo
de atuar. Outra experiência marcante foi vivenciada em sua adolescência, quando
em companhia de sua madrinha, assistiu um filme do Mazzaropi, gostou muito e sonhava em contracenar com
ele, era a personagem perfeita, ninguém iria incomodar com o seu sotaque
caipira, pelo contrario, seria o seu diferencial.
Resoluta, continuou sua
saga em busca de vagas para atriz
iniciante. Meses se passaram e um dia, eis que mais uma vez acreditou que tinha
acertado os números da mega-sena: o
anúncio procurava mulheres para figuração no cinema, e em comerciais de televisão e o
melhor, não exigia experiência. Embora não soubesse o que era figuração e não
possuía dicionário, e o Google, nem em sonhos existia, concluiu que era uma
atividade fácil e ela teria condição de executar com capricho e precisão, como
em seu emprego, onde nunca fora chamada a atenção por um deslize. Ela precisava
do trabalho e procurava executa-lo com
primor. Marcou o teste para sábado,
após o expediente e apresentou-se cheia
de expectativas, fora a última a ser chamada. E mais uma vez se viu sozinha em
uma agência, ela e o selecionador e como
não sabia portar-se e menos ainda conversar sobre a vaga, limitava-se a
seguir as orientações do fotógrafo
e este não lhe guiava em palavras, mas a colocava na pose desejada
enquanto despia-a suavemente, após
fotografar varias vezes suas partes íntimas, ela a deitou de costas, acomodou
suas pernas bem abertas sobre as almofadas,
orientou-a a fechar os olhos e acariciar os próprios seios e ao som do click da
câmara fotográfica, ela seguia sem questionamentos as orientações.
Estranhamente não sentia medo, apenas um prazer até então desconhecido, de repente, não ouviu mais o click, nem a voz
a orientá-la, apenas o silêncio, não
teve coragem para abrir os olhos,
continuava a sua autocarícia quando sentiu o peso do corpo dele sobre o seu, as
mãos firmes dele, afastaram as delas e
ele começou a beija-la furiosamente, a sugar-lhe os seios sofregamente.
Quando ela percebeu que o ato sexual
estava para ser consumado, lembrou da voz firme de seu pai a dizer-lhe que
jamais aceitaria um neto fora do casamento e um fio de coragem e lucidez surgiu do nada e ela pediu pelo amor de Deus
que parasse porque ela poderia
engravidar e um bebê, era o que menos ela desejava no momento. Tranquilamente, ele lhe perguntou se
o que a impedia de desfrutar a plenitude
do momento era somente um filho não planejado e ela respondeu que sim pois não
querida e não podia ser mãe porque não tinha condições financeiras para
criá-lo. Ele não disse mais nada, apenas
a virou de costas, levantou seu quadro até a altura do dele e a penetrou afoitamente. A dor ela terrível! Ela implorou
que ele parasse. Ele ignorou os apelos da jovem, e inútil foram as tentativas de desvencilhar .
Saciado, ele sentou no tapete, ajeitou as almofadas em suas costas e exigiu que
ela deitasse de costas em seu colo. – Seja uma boa menina, gritar é inútil,
estamos sozinhos, não há ninguém para atender o seu lamento e eu fico violento
quando uma mulher não obedece as minhas
ordens, disse ele com um tom firme de voz. Temendo algo pior, ela obedeceu, suas nádegas ficaram vermelhas
em decorrências das palmadas, apesar da dor, ela não emitiu um gemido e nem
pediu clemência. Cansado da diversão,
ele mordeu suas costas, coxas, seios, barriga, enfim, todas as partes de seu
corpo que ficavam cobertas pelas roupas, saciado de seu brinquedo, a empurrou e
ordenou que se vestisse que ele a
levaria até o ponto de ônibus. Com medo
de algo mais pudesse acontecer, ela recusou a oferta e ele não insistiu.
Assustada, envergonhada com o corpo dolorido
voltou para casa. Tomou um banho demorado para aliviar a dor pois não tinha condições de procurar
atendimento, revirou a bolsa e não encontrou sequer um comprimido de cibalena,
apesar de não ter almoçado, não sentia fome e deitou na esperança de dormir,
depois cuidaria da roupa que ficara manchada de sangue. Estava só,
terrivelmente só, sentia que precisava do conforto e segurança de um colo
materno. Tinha ciência de que nestas
circunstâncias, sua mãe jamais a acolheria, pelo contrário, daria –
lhe um surra de mangueira e a proibiria
até de sonhar com a experiência traumática.
Rosalina despertou com um raio de sol a aquecer-lhe as
faces, espreguiçou e sentiu dores em todo o corpo,
não era um pesadelo. Aconteceu
mesmo! Observou as manchas roxas em seu
corpo e tudo que podia fazer era esperar o processo natural de cura do corpo,
quanto a sua alma, estava ferida para
sempre. Na década de 1980, não se falava
em assédio sexual em ambientes de trabalho,
e quando acontecia um estupro em alguma empresa, a culpa sempre recaia sobre a mulher, que
segundo diziam, “não se soube dar o respeito.” Rosalina sentia-se suja e
insignificante, e tudo suportou em um silêncio sepulcral e dedicou-se
apenas em exercer o seu trabalho
com esmero, era tudo que lhe restava, e ela dependia dele para comer. Os
frágeis vínculos familiares estavam
praticamente rompidos e durante uns noves meses, suas vida se resumiu apenas em
trabalho e casa, não tinha vontade de
nada, andava cabisbaixa, sentia como se todos soubessem que ela fora usada
inescrupulosamente por um homem, que perdera a sua honra e um vazio imenso
invadiu o seu coração. Quando tira o
sonho de uma pessoa, não lhe resta mais
nada. As
chagas de seu coração ainda estavam abertas quando um novo golpe e bem
mais duro se abateu sobre ela.Seu patrão falecera e os herdeiros não
quiseram manter o negócio, todos os
funcionários foram demitidos. Mais uma vez teria que lutar contra o fantasma do
desemprego em plena crise que se abatera sobre o país durante o governo do
Presidente José Sarney, uma época de penúria e
incertezas.
Rosalina fez as contas e constatou
que o dinheiro que recebera do fundo de
garantia a manteria no máximo, durante
quatro meses, o salário desemprego ainda
não havia sido criado. O medo de ser despejada, morar na rua e revirar lata de
lixo em busca de alimento ou
procurar um prostíbulo para
vender o seu corpo provocava-lhe
pesadelos. Urgia conseguir um
trabalho, não importava a função, desde que dentro das Leis de Deus e dos
homens. Após dois meses de exaustiva procura, apareceu uma oportunidade, melhor
do que ela esperava, uma vaga para babá de três crianças, exigia que dormisse
no emprego, meio salário mínimo, sem
registro em carteira, com uma folga mensal aos domingos, ou seja, apesar da
condição ser análoga a escravidão, a necessidade era tamanha que seu coração se
rejubilou com a possibilidade de ter uma
cama no quarto de empregada e um prato
de comida. Ela sabia que daria conta do serviço porque desde que se entendia
por gente, ajudava a mãe com os irmãos menores, mas, precisava de referências e
ela não tinha, ou melhor, sequer sabia o que era referências, procurou uma
ex-colega de trabalho que era mãe solteira, que sentiu pena dela e resolveu
ajudá-la e deu-lhe a carta de referencias, na qual constava que os anos em que
trabalham juntas na loja, como o tempo
em que cuidou de seus pequenos, sendo dispensada porque perdera o emprego; assim,
munida com uma nova carteira de trabalho, com dados falsos e com a falsa
referência apresentou-se à casa da
contratante e consegui o trabalho, porém, suas atribuições não era somente
cuidar das crianças , também deveria limpar a casa, lavar, passar e cozinhar,
feliz por ter um teto, ela não
questionou e feliz, agradeceu a oportunidade
e pensou que talvez, com um pouco de sorte, conquistaria
o carinho das crianças, enfim, conquistara os três Cs, casa, comida e carinho.
Rosalina experimentava um momento de
felicidade impar, não precisava
enfrentar chuva, sol, ônibus lotado para
chegar ao trabalho e o melhor, havia comida suficiente para todos e carne todos os dias. Já não pensava mais em ser uma
artista famosa. Sua labuta diária inicia-se às seis horas da manhã e termina às 23
horas, de segunda a segunda mas não se queixava. Amava as crianças e era amada por elas, não
poupava esforços e carinhos para deixar os pequerruchos felizes e bem cuidados,
o que despertou a ira da bisavó paterna, uma senhora rabugenta e bastante severa com as peraltices próprias
da infância, porém, fazia questão de
visitá-las no mínimo uma vez ao dia.
A vida parecia sorrir para Rosalina, ela tinha casa, comida e o
carinho das crianças e era invisível para a patroa porque as crianças estavam
bem cuidadas, casa arrumada e a comida
na mesa na hora certa e pela primeira vez, tinha dinheiro na carteira mas quem nasce com a sina de sofrer, pouco desfruta das alegrias deste
mundão de Deus.
Era o ano de 1986 e os brasileiros estavam eufóricos
com a proximidade do cometa Halley e quando as pessoas se
reuniam, ele era o assunto favorito, menos para Rosalina, cujos pensamentos
estavam voltados sempre para o cuidado
com as crianças o que aumentava a ira da
bisavó. Por ciúme ou pura maldade, a rabugenta Senhora denunciou a jovem ao
neto, alegando tê-la visto beijar o pênis do bisneto de dois anos, durante uma
troca de fraldas. A família ficou
alvoroçada, em prantos a jovem afirmava
que nunca havia feito aquilo, não
tinha uma testemunha de defesa
porque o menino ainda não falava. Era a
palavra dela contra a da matriarca da família. Foi escorraçada de casa, sem
carta de referência, sem direitos trabalhistas e com uma mala na mão vagou pelas ruas até encontrar uma banca de jornal
e abriu o caderno de classificados e encontrou
uma pensão popular e teria que dividir o quarto com mais cinco garotas.
Por sorte, eram moças sofridas como ela. Graças a generosidade das novas companheiras, estava novamente no mercado de trabalho recebendo um salário mínimo, vale transporte,
cozinha com marmiteiro elétrico e mais o registro em carteira. Apesar
do cansaço, estava contente e fazia de
tudo um pouco, sem se queixar.
Ajudava no caixa, reposição de mercadorias, limpeza da loja e
atendimento ao cliente, função que fora
contratada; poderia dizer que até estava feliz. A saudade das crianças era
grande, mas a dor da injustiça de que
fora vítima era maior e procurava não pensar sobre a trágico acontecimento,
focava no trabalho. Fez amizades com as colegas de trabalho e da pensão, saiam
para caminhar no parque, ir ao cinema,
as festas na igreja. Apesar da boa convivência nunca confidenciou as colegas a sua experiência nas agências de
modelo. As dores e humilhações passadas eram apenas uma vaga lembrança, como um
sonho ruim. Sua história era como a delas, saiu do interior com o intuito de
ganhar dinheiro para ajudar a família afirmava, e o sotaque confirmava que era
realmente, uma caipira. Um dia, como
outro qualquer, talvez influenciada
pelos filmes que assistia, o desejo de
estampar capas das revistas da moda retornou e com mais força. Discretamente, ela voltou a comprar o jornal e
a ler os classificados em busca de uma oportunidade.
Retomada às buscas por um lugar ao
sol, entusiasmou-se com um anúncio de uma seleção de jovens de ambos os sexos
para participação de um filme erótico. A
seleção aconteceria sábado às 13 horas,
por sorte, o local era próximo ao
seu trabalho.Tirou o uniforme, colocou um vestido verde com saia estilo cigana,
soltou os seu longos e maltratados cabelos ruivos, passou batom e lá se foi cheia de esperança. O trânsito
estava congestionado, chegou atrasada, os selecionadores já
haviam fechado a porta da
agência, mas decidiram atendê-la, na escada de emergência do prédio. Eram três rapazes aparentando uns vinte e pouco
anos e um senhor já se aproximando dos cinquenta anos de idade e que a devorava
com os olhos. Rosalina sentiu-se acuada,
e limitou-se a obedecer. Assim
que a porta corta foi fechada, o mais velho pediu que ela tirasse a calcinha e
levantasse a saia do vestido, mesmo
diante deste pedido absurdo e abusivo ela não protestou nem questionou, apenas
cumpriu a ordem. Ele sentou em um degrau abaixo do que ela estava, observou as
suas partes íntimas com a perícia de um médico durante um exame de corpo de
delito em vítimas de estupro. Constrangida, amedrontada, ela não esboçou
nenhuma reação, nem mesmo quando ele aconchegou sua cabeças entre suas pernas
trêmulas, e os três rapazes a tudo
observavam com uma naturalidade assustadora. Após o seu deleite, o selecionador
se levantou, retirou uns pelos pubianos
que ficaram em seus lábios e disse que ela tinha sido aprovada na primeira fase
do teste e que retornasse segunda-feira, para a segunda fase, viram as costas e
começaram a conversar animadamente sobre o jogo que iriam assistir. Rosalina
precisou de um tempo para se recuperar e quando a lucidez voltou, vestiu a calcinha e desceu os 12 lance de escada, não tinha coragem de
enfrentar o olhar das pessoas, imaginava que alguém pudesse ter presenciado a cena bizarra dela na escada, de certa forma, sendo desfrutada por quatro
homens. Uma vadia, era isto que ela era por se deixar dar o desfrute, levantar a saia para estranhos.
Traumatizada com mais uma experiência de assédio sexual, Rosalina
fez um juramento de que jamais participaria de seleção para atuar em filmes erótico.-Mas afinal, o que é mesmo
um filme erótico se perguntou? Mas pelo
tipo de teste usado no processo seletivo, não era papel para moças, como ela, oriunda de uma família honrada, refletia. Rosalina
Já era quase uma balzaquiana e então ela concluiu que o melhor seria desistir
da carreira artística, trabalhar com afinco para ser promovida a gerente de loja, comprar uma casinha da
Cohab e quem sabe, com um pouco de sorte, encontrar um bom rapaz, casar, ter
filhos e cuidar da família, como deve ser
a vida de uma mulher trabalhadora e decente, sem as ideias de viver em
um mundo que não lhe pertencia. Mas abandonar um costume de mais de sete anos
não é fácil e jovem continuava a comprar o jornal no último
domingo do mês e a ler o caderno de classificados com atenção especial na
sessão de empregos, mais por força do
hábito do que por um real interesse em
seguir adiante com o sonho juvenil.
Em um típico domingo de primavera, ela estava sozinha no quarto, as colegas tinham ido caminhar no parque e ela teve
tempo para olhar com atenção os anúncios e um chamou a sua atenção: um curso
grátis para modelos. Sorriu feliz! Estudar, era isto que ela deveria ter
feito logo no início de sua busca,
preparada, ela não teria passado por todos aqueles dissabores vexatórios. Tanto dinheiro gasto
com álbuns de fotografia, para terminar nua, nos braços de homens
desconhecidos. Desta vez seria
diferente, procuraria absorver todos os ensinamentos dos professores, como
estava de férias, teria tempo para estudar e o melhor, não teria que inventar
desculpas para as indiscretas colegas de quarto. Anotou com cuidado o local, dia e horário para fazer a matrícula e colocou o jornal
no lixo. No outro dia, assim que as colegas saíram para trabalhar, ela
procurou uma escola de cabeleireiros, aparou os cabelos, deu um banho de creme por
um preço simbólico, depois, procurou um salão de beleza popular, fez uma depilação completa, as sobrancelhas e as unhas dos pés e
das mãos. Sentia-se linda e confiante. Percorreu as lojas de ponta de estoque,
comprou um vestido de algodão rosa com detalhes brancos de uma marca
relativamente conhecida, encontrou uma sandália em oferta e com o restou algum
dinheiro, caminhou até a rua 25 de Março e comprou algumas bijuterias. Guardou
bem as suas compras, tomou banho e alegando indisposição foi para a
cama, não queria que ninguém percebesse que ela
estava bem cuidada. Rosalina chegou com meia hora de antecedência e
a fila era grande, dezenas de jovens,
com no máximo dezoito anos, esperavam ruidoso a abertura do portão da escola. As
meninas usavam roupas da moda e estavam bem maquiadas. Sentiu vergonha por
estar ali, parecia a tia deles. Apesar da sábia percepção de que
ali não era o seu lugar permaneceu silenciosa na fila, preencheu a
ficha como todos e sentou na última
cadeira da platéia, estava
tranquila, nenhum homem iria exigir que
ela tirasse a roupa na frente de menores de idade. O professor explanou sobre o programa de bolsa, a
importância do preparo físico da modelo, dos cuidados corporais, do mercado de trabalho e da possibilidade de uma carreira
internacional para aqueles que se
destacasse no grupo, frisou bem que
fosse persistentes e capazes de
renunciar as delicias da boa gastronomia. Depois orientou sobre a primeira fase do teste para concorrer a bolsa de 100% da
mensalidade, que consistia em um desfile individual no palco, várias pose para foto e seriam chamados pelo
nome e que estariam dispensados, após o teste; deveriam retornam em três dias
úteis para saber o resultado. Rosalina ficou apavorada. Nunca havia visto um
desfile e respirou aliviada quando percebeu que o professor chamava por
ordem alfabética. Ela observava os
candidatos para saber o que fazer,
quando fosse chamada. Ela foi a última, quando subiu ao palco, sentia-se como
um peixe tentando nadar em terra firme. Começou a suar frio ao perceber o
sorriso malicioso do professor. Com o rosto queimando de vergonha, desceu do
palco e seguiu em direção a porta, queria fugir dali o mais rápido possível, não ver ninguém nos
próximos dias. Tropeçou em um degrau e sentiu
que mãos firmes a amparavam. Era o professor, que sorriu e perguntou se
tudo estava bem, convidou-a a ir até a sala dele para tomar um copo de
água. Ela obedeceu sem questionar,
entraram ele fechou a porta, mas não
trancou o que a tranquilizou. Era uma sala modesta, continha apenas uma mesa com uma cadeira, uma
geladeira pequena, uma janela grande e
sem cortinas e um bonito tapete de arraiolo. Ele a convidou a sentar no chão,
ofereceu-lhe uma taça de champanhe. Esclareceu-lhe que a bolsa de estudo não era para a faixa etária dela, mas se ela
fosse generosa com ele, conseguiria uma
vaga na produção de desfiles. Ela ouvia
em silêncio, ele se aproximou, deitou-a
no chão e ela sentiu o seu hálito quente, suas mãos entre suas pernas. Rosalina não esboçou
nenhuma reação e ele a possuiu, provavelmente sobre os olhares curiosos dos
moradores do prédio, em frente a janela. Ela podia ter gritado, mas a voz não saiu, poderia lutar, mas as forças
a haviam abandonado, nada fez, permaneceu deitada, disponibilizando o seu
corpo e entregando sua virgindade a um estranho. Saciado, ele se recompôs
e saiu da sala levando a sua calcinha,
como se fosse um troféu. Envergonha e
com raiva por ter-se permitido ser usada
mais uma vez, contra a sua vontade, saiu rápido da escola, precisava
chegar na pensão antes das colegas; ao subir no ônibus, uma
rajada de vento levantou a saia do vestido e os passageiros que estavam na
fila, com certeza, viram que em seu vestuário faltava uma peça, ela não merecia
mais esta humilhação. Talvez fosse um aviso de seu anjo da guarda de que ela
estava trilhando o caminho errado, que seu destino não era fazer sucesso e ganhar dinheiro, mas
trabalhar duro e receber pouco por sua
força de trabalho, como todas as pessoas de sua família. Talvez
todos os seus fracassos e
humilhações fossem castigo de Deus por ela ter cobiçado o que não lhe pertencia
por direito: o estrelado. Enquanto enxugava uma lágrima que escorria
discretamente pela face, concluiu que o seu lugar era em uma loja, atrás de um
balcão, pobre, porém, honrada.
Rosalina estava sozinha na pensão de
moças. Tomou um banho demorado, lavou a
cabeça, vestiu uma camisola de algodão rosa e já puída pelos anos de uso e
deitou. Estava cansada! Refletia sobre o acontecido. O que seria dela, daqui
por diante? E se tivesse engravidado? Grávida de um desconhecido, seria demitida da loja,
expulsa da pensão por ser mau exemplo, e
seu destino seria a tão falada “
rua da Amargura” como também, poderia ter contraído HIV, o professor era bem magro. Quem daria
emprego ou casaria com uma jovem mãe solteira e doente? Ela se imagina esquelética e com um ventre volumoso, prestes
a dar a luz, em um leito da enfermaria de algum hospital de caridade.– Meu Deus!
Que tipo de mulher me tornei? Uma vadia, moça desonrada, cujo corpo fora desfrutado por vários homens, Lamentava. Enquanto ruminava as mazelas de sua vida,
adormeceu. Acordou com o falatório das colegas de quarto ávidas por saber o que
tinha acontecido para ela estar dormindo àquela hora. Alegou uma forte cólica
menstrual e permaneceu na cama, em
silêncio e em poucas horas, já dormia um sono profundo, e sonhou que
perambulava pelas ruas, com um filho nos braços a esmolar e revirar lixo em
busca de restos de comida. Acordou cansada e faminta, sentia-se suja e indigna
de conviver com as pessoas de bem. Seus
olhos percorreram as beliches, as
colegas dormiam profundamente. Levantou
com bastante cuidado para não desperta-las, não precisava acender a luz, a claridade da janela era suficiente para
encontrar o que procurava. Pegou suas
roupas novas, bijuterias e maquiagem, dirigiu-se ao banheiro. Tomou um banho
demorado, penteou os longos cabelos ruivos, se vestiu, passou batom, viu um
vidro de perfume esquecido por alguma pensionista e colocou um pouco de perfume atrás nas
orelhas, se olhou no espelho e pela primeira percebeu o quanto era bela: corpo proporcional com curvas perfeitas,
olhos cor de mel que combinavam com seus cabelos ruivos, e percebeu que as sardas, tão odiadas por sua
mãe, eram de fato, o seu charme peculiar. Mas de que lhe valeu a sua beleza
impar? Sentia-se vazia de sentimentos e
desejos. Em um pedaço de papel, escreveu algumas palavras, dobrou
cuidadosamente e guardou no sutiã. Na ponta dos pés, caminhou até a cozinha,
uma faca afiada estava esquecida na pia, como se esperasse por ela. Rosalina
tomou um copo de leite, pegou a faca e
saiu pela entrada de serviço e seguiu em direção a praça. A rua estava deserta e o silêncio da
noite não a assustava. Sentou na
grama próximo a uma jasmineiro, aspirou
o seu perfume, sentiu o frescor da brisa noturna tocar o seu rosto, observou a
vegetação umedecida pelo orvalho da
madrugada, a lua cheia a percorrer o céu sem nuvens, indiferente às
mazelas da humanidade, e como em um filme, reviu as cenas marcantes de sua vida
e tudo o que deixou para trás, para perseguir uma ilusão, reconheceu que fora
um erro, abandonar a pacata vida da roça, onde se vive seguindo o ritmo da natureza: tempo de preparar a terra,
plantar, cuidar e colher. E pela primeira vez, sentiu saudade do cheiro da
terra molhada nos dias temporais, do murmúrio das águas do rio que
serpenteava pelas terras de seus
antepassados, do mugido do gado no pasto, da solidariedade dos vizinhos nos
momentos difíceis. Reconheceu que o
seu sonho de adolescência, não era de
ser uma estrela do mundo da moda ou de cinema, mas apenas de se sentir amada
por pais. Em perseguição a esta carência, de forma errônea, foi se
distanciando de sua verdadeira essência, a de camponesa, que
necessitava da energia telúrica
para se sentir plena. Lágrimas silenciosas brotaram
generosamente em seus olhos. Sentiu saudade da beleza do pôr do sol de
sua terra natal, do mugido do gado, do gorjeio dos pássaros, da euforia de seus
familiares durante a colheita e da fé de
sua mãe em tempos de seca, pedindo a Deus que
fizesse chover para matar a sede da
plantação e não perder a safra. Desejou retornar ao lar. Mas não podia,
era uma jovem desonrada e sua presença faria com que seus pais nunca mais
pudessem andar de cabeça erguida. Por uma ilusão, perdera tudo, até a sua
dignidade. Observou o contraste do
vermelho de seu sangue com o verde da grama orvalhada. Pediu perdão a Deus pelo
pecado que acabara de cometer. Sentia-se leve e poderia dizer até feliz! Quando
a última gota de sangue caiu de seu
pulso, seu olhos fecharam-se para sempre, seu corpo tombou sobre a terra e a sua alma, enfim, se libertou das dores do mundo, distante, um galo cantou, chamando o amanhecer.