domingo, 28 de julho de 2019

Transporte clandestino



          Economia é a palavra que está presente na boca de todos os trabalhadores brasileiros, e foi pensando em economizar alguns reais que Charlene  optou em viajar  em um ônibus fretado  para a capital com o objetivo de participar de um congresso. Uma colega do curso  responsabilizou-se pela organização do transporte  e a já veterana  em excursões  não se preocupou  com o fato da organizadora não ter-lhe pedido o número dos documentos para a lista da viagem, por acreditar que havia solicitado—os  junto à secretaria. Tudo parecia bem e ela  estava ansiosa para ampliar o seu leque de amizades e conhecimento, ficou feliz com a carona que a deixou no  posto de gasolina  às cinco horas da manhã,  onde esperaria  a turma e  lá ficou quase a congelar de frio e medo até a chegada  dos colegas, que felizmente, não demoraram.
          Charlene não se preocupou quando um ônibus com propaganda de um grupo étnico parou no posto, pensou que fosse  abastecer, porém, ouviu os gritos dos colegas  chamando-a para que não atrasasse a  partida. Adentrou e logo a primeira preocupação:  não havia cinto de segurança e as janelas  estavam emperradas e  pela fresta, um vento frio soprava  que fez  sofrer todos os passageiros até chegarem  ao  destino comum, com uma hora de antecedência, o que a fez pensar que o motorista adiantou a viagem para  fugir da fiscalização  em rodovias, que acontece principalmente, em horário comercial. Agradeceu ao santo  padroeiro dos motoristas, São Cristóvão, por  terem  chegados sãos e salvos e quando pensou, que finalmente poderia se aquecer um pouco, a entrada não foi permitida porque  a orientação era que os participantes somente  poderiam  dirigir-se ao anfiteatro no horário marcado na ficha de inscrição e, assim, em  uma temperatura de 10º Celsius, neblina e vento,  durante uma hora, todos os congressistas permaneceram de pé, na calçada. Após o suplicio, felizmente foram recebidos com um farto  e saboroso lanche, palestras interessantes e assim findaram as horas e chegou o momento de retornar.
          Ao ver o ônibus, Charlene sentiu um arrepio de medo,  mentalmente, pediu a proteção de São Cristóvão e Nossa Senhora da Guia e sem disposição para sofrer com o vento  que atingia  principalmente os últimos assentos, alegou ser a primeira a descer e para agilizar, ficou acertado que iria na primeira poltrona. Apesar do cansaço, não conseguiu sequer dar cochilo  com medo de algum acidente porque o motorista dirigia, fumava e  falava  ao celular, consultava  o  whatsApp, retornava mensagens, fazia ultrapassagem perigosas, em curvas acentuadas e para  piorar a situação, foi avisada que seria deixada em outro ponto,  em outro bairro, junto a outra colega que se prontificou a ficar com ela até a chegada do  motorista do aplicativo e, claro, a economia  com a carona da manhã, foi para pagar a corrida, que ficou bem mais cara. Já quentinha em sua cama, Charlene, mais uma  vez agradeceu aos  santos protetores e jurou  nunca mais viajar  com os colegas de turma.

terça-feira, 23 de julho de 2019

Complexo de Cassandra



        A questão de credibilidade de uma pessoa é um mistério! Existem aqueles que  contam mentiras  diariamente e são levadas a sério pelo círculo de amizade e convivência, mesmo os fatos provando que  não há vestígios de verdades em suas falas; em contrapartida, há aquelas que  são sérias e verdadeiras, porém, desacreditadas por todos e não  há comprovação científica ou do curso diário da vida que faça com que  estas infelizes  tenham credibilidade.
        Cientes de seu valor, estes arautos do deserto, aprendem desde a mais tenra infância a lidar com o descaso  dos outros e não levam a sério o menosprezo de suas  ideias porque acreditam que de uma maneira ou outra a sua semente vai  germinar,  mesmo que a  gloria mundana seja atribuída a outros, eles sabem que a vitória é sua como bem ilustra o  hábito de  copos retornáveis para o lanche da tarde do Clube de Mães de uma cidade do interior de São Paulo.
        Atenta às questões ambientais e do longo período da  decomposição do plástico na natureza, Andreara decidiu levar  o seu copo retornável  pelo desejo de fazer a sua parte e para estimular as colegas, todas já sexagenárias. Ao ver que  não houve adesão ao seu exemplo, postou  no grupo   informações precisas sobre os riscos do material descartável e de sua pegada hídrica que é alta. Mesmo sem seguidora, continuou a fazer a sua parte e aos mais chegados, emprestava um copo retornável.
        Com tristeza no coração porque é  uma pesquisadora séria, Andreara convive com o seu complexo de Cassandra  desde a infância, se não  é levada a sério pela argumentação, ela tenta pelo exemplo, porque os “exemplos falam mais que as palavras” diz um velho adágio popular, e para a sua surpresa,  em uma tarde como as outras, a coordenadora do  Clube de Mães, propôs ao grupo que todas levassem o seu copo retornável e  houve adesão maciça  à novidade. Seu coração se rejubilou de alegria porque  seu objetivo fora alcançado, ao contrário de Cassandra de Tróia  que viu sua cidade e seu povo serem destruídos porque ninguém acreditou em suas  profecias e conselhos.

terça-feira, 16 de julho de 2019

Retornar ao lar


          Com o passar dos anos e a  inevitável perda de parentes e amigos, faz nascer  no coração das ovelhas desgarradas da família, um desejo imenso de retornar aos antigos caminhos trilhados  segurando a mão protetora dos pais. Após  mais de trinta  anos de ausência, rever os familiares  causa  calafrios. O cheiro da terra, o frescor dos ventos, o sol escaldante, continuam os mesmos, isto é uma verdade incontestável, mas e  as  pessoas? Quem são elas hoje? Certamente, não são as mesmas que estão  nas  lembranças permeadas de afeto e saudade.
          Pensar em rever à terra natal veem a tona as iguarias do passado. O cheiro do alho, do torresmo,  e do  indiscreto bolo de  casca de  laranja,  cujo aroma anunciava a toda  vizinha que a mesa  do café da tarde era farta.  Não há como lutar contra a invasão dos cheiros e sabores do passado, e também  da gentileza dos anfitriões  insistindo para comer mais um pedaço porque "saco vazio não para de pé" diziam  sorrindo.
          O tempo passa para todos e nos anos de árdua luta pela sobrevivência as relações familiares são negligenciadas, e quando, finalmente, a pessoa sai do  mercado de trabalho e sem  condições financeiras para  investir em novos cursos, viagens internacionais, inevitavelmente,  desejam voltar às origens, não pela hospedagem grátis, mas porque finalmente entendem que nada é mais importante do que  as relações parentais  e afeto é necessário em todas as fases da vida; também porque o melhor lugar para o repouso  eterno do corpo cansado é o lugar onde a vida começou.


segunda-feira, 1 de julho de 2019

Verdade Nossa de cada dia


          Século XXI, época  da ostentação! Esta é uma ótima constatação porque  as pessoas não expõem as mazelas diárias nas redes sociais, e menos ainda, a mídia mostra  a realidade do dia-a-dia do trabalhador brasileiro e consequentemente, a verdade da atual condição  de vida do povo   não é conhecida e fica-se a impressão de que está tudo bem e que as necessidades básicas, segundo a pirâmide de Maslow, estão supridas, porém, isto não é verdade já que  não são divulgadas no popular whatsApp. Os usuários do aplicativo optam pelas postagens de festas e dos raros momentos de aparente  fartura e alegria, já que as viagens e comemorações são resultados de  rigorosos remanejamentos e cortes no orçamento doméstico.
          Para Maslow, a primeira necessidade básica  é a fisiológica, e nem mesmo esta, todos podem desfruta-la com dignidade. Os habitantes dos  grandes centros urbanos respiram ar poluído  que a médio e longo prazo minam a  saúde e  diminui a expectativa de vida. Centenas de milhares de brasileiros não  dispõem água potável, saneamento básico e condições para a aquisição de  materiais de higiene pessoal, limpeza doméstica e condições dignas para repouso, sofrendo com o calor no verão; os que são agraciados com energia elétrica, não podem ligar o ventilador em razão do alto valor da conta de luz. Também sofrem com frio no inverno já que não possuem  roupas de cama adequadas à estação e agasalhos. A dona de casa, no quesito alimentação, é exímia malabarista: percorre feiras, supermercados e sacolões diariamente, e caminhando, em busca  de ofertas,  para conseguir botar comida  na mesa, nunca o que precisa, o que deseja, mas o que  o seu parco recurso lhe permite. Não  recebendo os nutrientes necessários, o  corpo adoece e dá-se o início de um  outro martírio: procurar  atendimento médico gratuito e rezar para que não precise de cirurgia  tão demorado é para consegui-la que não raro, quando a família  recebe o telefonema  convocando para os exames de risco cirúrgico,  o que tem a apresentar é o atestado de óbito e avisar que pode  liberar a vaga para outro paciente e torcer para que ele possa beneficiar-se do seu direito constitucional a saúde.  A necessidade inata de reprodução é um martírio porque  a gestante, parturiente e lactante não recebem os  cuidados necessários e a taxa de mortalidade materna é alta e de bebês também.
          A segunda necessidade básica da pirâmide é a  segurança. Viver no Brasil é muito perigo. A criminalidade deixou de ser  privilégios das grandes cidades e adentrou ao interior e zona rural.  Distante está o tempo em que as pessoas dormiam  com a janela aberta para  que a brisa noturna   refrescasse o  quarto. É perigoso estar em casa,  no trajeto do trabalho, escola e lazer. Nem mesmo  no interior das igrejas, a casa de Deus, os fiéis podem relaxar, já que elas também  estão na mira dos meliantes e eles levam tudo que possa ser trocado por droga, fazem a limpa na igreja e nos  devotos.  Não raro, os jornais noticiam assalto em hospitais levam os pertences dos acompanhantes, profissionais de plantão, nem mesmo os recém nascidos escapam e são  arrancados dos braços  maternos  e comercializados inescrupulosamente pelos traficantes de seres humanos. Violam  túmulos em busca de alianças, roupas do defunto, caixão, arcadas dentárias e ás vezes, até o defunto é levado para serem comercializadas no mercado negro.
          De acordo com Maslow, a terceira necessidades são as sociais, o pertencimento  e relacionamento  entre familiares, amigos, colegas de escola, trabalho e namoro, porém,  não é tão fácil mantê-las porque gera um  alto custo, produção pessoal, transporte,  ingressos de eventos culturais, consumação em bares e restaurantes e quem anda sempre no vermelho, a única saída é reduzir a  convivência à mensagens repetitivas de whatsApp e demais redes sociais.
          A quarta necessidade é um privilégio de poucos. A  massa de trabalhadores mal remunerados, que enfrentam até quatro horas de trânsito todo dia  para conseguir chegar ao posto de trabalho e exercer a função em condições precárias, não têm força para sonhar com status e estima.
          A quinta necessidade autorrealização!   Gerações e gerações sonham, trabalham para alcançá-la, porém ela é como o horizonte, sempre distante, por mais que você caminhe nunca  terá o prazer de encontrá-lo.