Eu sou Anastácia. Nascida em uma família de evangélicos fervorosos, cujos
nomes eram predominantes bíblicos; um dia, questionei meus pais a razão pela
qual escolheram este nome pitoresco para mim, que me causava desgosto, porque
era vítima constante de bullyng na
escola. Com toda a paciência que é peculiar aos pais, quando estes são obrigados a responder perguntas
inesperadas, disseram que era uma homenagem a Anastácia Romanova, filha do czar Nicolau II da Rússia e da Czarina Alexandra Feodorovna, os últimos
governantes autocráticos da Rússia Imperial. Mas ter nome uma nobre não fez de
mim uma pessoa forte e determinada, capaz de lutar pelos seus objetivos. Um dos
meus piores defeitos, o qual luto com ele há sete décadas, é a minha
imbecilidade de oferecer ajuda material e conselhos para que as pessoas direcionem suas vidas da melhor forma
possível. Foi necessário anos dobrando o joelho no altar, pedindo a Deus
uma luz para que eu percebesse o papel ridículo que fiz durante tantos anos, e,
infelizmente, continuo fazendo! Uma pessoa que sequer conseguiu comprar um carro, engatar um namoro sério
e até o que é peculiar a toda mulher: a
maternidade! Eu não fui capaz sequer de
gerar um filho e vivo tentando
ensinar às jovens mães como cuidar de sua prole. Que credibilidade tenho eu?
Não sou pediatra, enfermeira, psicóloga, pedagoga especializada em educação
infantil; nem sequer, especialista formada pela internet em cursos grátis. Meu
tempo on-line é perdido assistindo post de imbecilidades. Não consigo
concentrar em algo mais produtivo como uma palestra, um texto científico e de autores de credibilidade internacional,
pesquisadores das grandes universidades.
Devo ser tão pedante porque
nenhum familiar ou amiga, deu-me a cria para eu batizar. Faz algum tempo que percebi que a minha aparente generosidade não
é sincera, é a maneira que eu encontrei para não admitir que sou uma
incompetente e covarde, que não tenho a coragem necessária para enfrentar as
dificuldades inerentes à vida, e uso a solidariedade como muleta para amparar
as minhas derrotas, já que estava
dedicando os meus esforços em ajuda
a terceiros e, portanto, sem tempo e dinheiro para seguir meu
caminho. A mais cretina de todas as desculpas para não assumir que não
tenho garra, que sou covarde e temo constantemente o fracasso e a derrota.
A minha intromissão na vida alheia
começou cedo. Aos dezoito anos saí de casa em busca do sonho de ser uma modelo
rica e famosa. Sem apoio de meus genitores,
tive que arrumar um emprego em um salão de beleza, como manicura, para
arcar com os custos de moradia e alimentação. Como vivia obcecada pela
possibilidade de uma vida glamourosa, não
terminei o ensino médio, e sempre
fui aprovada graças a misericórdia dos professores do ensino fundamental,
já que por força da pressão de meus país
eu não podia faltar às aulas e não dava trabalho em sala de aula, mas a
cobrança veio rápido, tive dificuldade em encontrar trabalho bem remunerado e,
ao invés de retomar os estudos com seriedade, dediquei meu tempo livre e os
minguados trocados em intromissão na vida de uma colega de trabalho, que soube
bem tirar proveito da situação, não a culpo, porque eu que ofereci ajuda, ela nunca me pediu
nada. Ela engravidou solteira, foi abandonada pela família e também, pelo pai
da criança, que apenas pagava o aluguel para ela. Após a licença maternidade ela
foi demitida e que eu fiz? Propus a
ela ajuda mútua. Eu iria morar na casa
dela, assim eu economizaria o dinheiro do aluguel e a ajudaria nas despesas da
casa e com a criança. Ela aceitou e minha vida se resumia em trabalhar, pagar contas de luz, água e
mercado, sem lazer, sem dinheiro e tempo
para procurar cursos
profissionais, e assim os anos iam passando, eu ficando mais velha e a
possibilidade de ser uma modelo famosa
cada dia mais distante. E nesta vida, trabalho e casa, dez anos se passaram, ela
conheceu um homem de outro estado, foi embora com ele e nunca mais deu notícias. Eu fique sozinha,
sem condições de arcar com a despesa do
aluguel e chorando de saudade da criança, a quem eu havia apegado muito. Aparentemente havia aprendido a lição e fui
estudar e correr atrás do sonho responsável por eu ter abandonado meus pais.
Mudei para um barracão, cujo aluguel
era mais barato e bem próximo da estação do Trem urbano. Consegui um emprego
melhor, passei a frequentar as oficinas
de teatro e dança oferecidas gratuitamente pela prefeitura, na esperança de
desenvolver a expressão corporal para melhor ser fotografada, e finalmente, ser
capa de revista de moda e mais uma vez, não fui adiante com o meu propósito de
vida. Meu radar rapidamente sintonizou um desvio e lá fui eu, toda generosa,
oferecer ajuda, frisando: ninguém pediu. Eu que fui, mais uma vez intrometer na vida alheia. A filha de uma vizinha, portadora de doença mental, vivia bem, na medida do
possível, mas a xereta aqui, acreditou que podia fazer alguma coisa para melhorar a vida dela, e como ela tinha
habilidades para o artesanato, o que
eu fiz? Passei a comprar materiais para
ela. Ela iniciou a produção de artefatos
que tiveram grande aceitação. Acredito
que eu ofereci matéria prima durante uns oito anos. Eu nunca cobrei e nem
ela ofereceu para pagar. Fiquei
desempregada e parei com as compras. Nem ela e nem família me estenderam a mão. Passei fome, frio,
estive para ser despejada, mas consegui
um novo trabalho, mudei novamente e voltei ao mercado de trabalho, com
um baixo salário que mal cobria as despesas essências de moradia, alimentação e remédios, pois já estava
ficando velha. Finalmente a aposentadoria chegou, sem razão para comemorar
porque é somente um salário mínimo. Com ela veio o vazio existencial. Sem dinheiro para o lazer merecido após ter trabalhado
40 anos, com um imenso desejo de uma vida divertida, de estudar, participar de eventos
culturais, palestras, saraus, que somente o dinheiro pode proporcionar, porque
mesmo sendo gratuito, tem-se o custo do transporte urbano e, mais uma vez
farejei uma nova muleta: Duas jovens, com os mesmos sonhos que um dia eu tive, ávidas
por realizá-los em tempo hábil porque o tempo é implacável com todos e eu estou
repetindo com elas, que já deixaram claro que aceitam de bom grado, apenas o
meu dinheiro e serviços grátis, e quanto
a minha presença, quanto mais longe melhor, sequer respondem mensagem de whatsApp,
quando não há um favor a pedir. Mas
hoje, último dia do mês de
fevereiro, deste ano bissexto, eu juro para mim, que vou parar,
definitivamente de usar a generosidade
como muleta para eu não fazer as coisas
que realmente gosto, comer os alimentos que aprecio. Meu sonho profissional
ficou em passado distante e o de construir uma família também, isto é fato e eu
preciso aceitá-lo. Pela expectativa de vida das mulheres brasileiras de 79 anos de idade, restam-me apenas nove e
estes, quero vivê-los intensamente, aproveitar casa instante, ouvir mais, falar
menos, e principalmente, não intrometer na vida alheia.
Como estão as pessoas que usei como muletas para disfarçar o meu medo
de lutar pelo meus ideais? Elas sim, foram inteligentes, souberam aproveitar a
oportunidade que a vida ofereceu. Pelas redes sociais acompanho o sucesso
delas. A colega do salão de beleza, continua casada e financeiramente bem, vive
postando fotos de viagem ao exterior, em
visita a filha que trabalha e
reside em Bruxelas. A
jovem doente mental, com o apoio familiar na administração de seu
pequeno ateliê, comprou casa e seus produtos estão em feiras, exposições de artesanatos. E eu?
Por ter preocupado mais com a vida do outro do que da minha, vivo sozinha em um
barracão, sempre a lamentar as grandes
oportunidades que a vida proporcionou-me e eu não soube aproveitá-las.
Anastácia
K. Q. da Silva