quarta-feira, 15 de setembro de 2021

O monstro da casa de janelas vermelhas

                

          Eram outros tempos!   A família de Rosalina estava de mudança   para a fazenda Barreiro, o seu primeiro pedaço de chão.  As terras foram  vendidas a um preço bem abaixo do mercado porque os antigos proprietários eram supersticiosos e acreditavam que o monstro que guardava o tesouro enterrado debaixo do assoalho da sala da casa  não os queria lá   porque não os deixava dormir  a noite.  De meia-noite às cincos horas da manhã, cancelas, porteiras, portas abriam e fecham incessantemente,  e  o som ensurdecedor de gritos de dor e de correntes sendo arrastadas,  obrigava os moradores a irem repousar com os animais no estábulo. Outro mistério que os intrigava era a  cor das janelas: vermelho sangue.   E inúmeras foram as tentativas de  pintá-las, não importava a cor utilizada, ao primeiro raio de sol,  o vermelho parecia ainda mais vivo. Era assustador!   Não havia explicação científica para o fenômeno, e o que a ciência não explica o povo se encarrega de fazê-lo, à sua maneira e muitas  histórias  eram contadas, mas não intimidaram João Francisco  Silveira e ele fechou  o negócio; era uma oportunidade única,  bom preço, terra boa, própria para a agricultura e criação de gado leiteiro. A  casa  era bem  grande, com  beira e eira,  quatro quartos, sala de visita, sala de jantar, cozinha, dispensa, quarto de despejo,  varanda e  alpendre, era bem velha, já tinha mais de cento e cinquenta anos, porém, atendia as necessidades da família que apesar de ser composta apenas de três  pessoas, precisava de  espaço para trabalhadores nos dias de marcação de gado, plantio,  colheita e visita de parentes. Ele estava satisfeito com o negócio e  a sua senhora, apavorada, já prevendo as dificuldades que enfrentaria na nova morada. Quanto  à filha do casal, em sua ingenuidade, estava ansiosa  para encontrar o tesouro enterrado e enfim, poder se cobrir de jóias como uma princesa dos contos de fadas.

          Naqueles idos tempos, na zona rural, o transporte mais seguro para fazer uma mudança era o carro de boi. Amigos e vizinhos foram chamado  e enquanto desmontavam móveis e embalavam os pertences, a matriarca da família seguiu  na frente, partiu logo ao amanhecer,  de charrete,  em sua companhia, ia a filha e a cunhada, para  limpar a casa, que já  estava desabitada há uns dois anos. Temerosas, as  duas mulheres ao adentrar  a casa, rezaram o terço, lavaram paredes e pisos com sal grosso, e plantam  no jardim, arruda,  espada de São Jorge, guiné, comigo ninguém. Também colocaram em todos os cômodo da casa, uma imagem de Nossa Senhora Aparecida  para reforçar  a proteção. Não esqueceram o casal de gatos, e dois cestinhos confortáveis foram colocados na sala, para que os bichanos  absorvessem as energias negativas do ambiente. Ao entardecer, os homens  chegaram, lamparinas e velas foram acessas e  foi um alvoroço. Na cozinha, as mulheres preparavam a comida   enquanto os homens se encarregavam de  botar tudo no lugar e cuidar dos animais que estavam  cansados da viagem e assim foi até  a  estrela d’alva desaparecer  do céu. Os primeiros raios de sol aqueceram os  homens na estrada em retorno ao lar e  a família, enfim, pode repousar um pouco. Dormiram até o meio-dia, acordaram  com os cachorros latindo,  pareciam estar acuando  algum animal embaixo do assoalho. Sem demonstrar temor, João Francisco pegou a espingarda e foi ver do  que se tratava enquanto sua esposa passava as contas do rosário com  os dedos trêmulos  implorando  por proteção divina. Rosalina observava tudo com a curiosidade peculiar de toda criança, porém, não arriscava a  perguntar  o que estava acontecendo porque já sabia a resposta: - quieta, isto não é assunto para menina da sua idade. - O patriarca da família   foi em busca do inimigo, mas nada encontrou, concluiu que poderia ter sido um rato ou uma cobra que atiçara a cachorrada,  disparou uma vez para dispersá-los e retornou a sua sesta;   o dia transcorreu  sem maiores novidades  e na hora de irem dormir, a matriarca sugeriu que Rosalina dormisse com  o casal alegando  ser a primeira noite na casa e era melhor que todos estivessem juntos. Não foi necessário mais argumentos porque  não encontrou oposição da parte de seu esposo. Foi uma noite tranquila e ao amanhecer, o casal concluiu que as histórias não passavam de lendas rurais ou de intrigas dos inimigos para desvalorizar a propriedade.

          A primeira semana na fazenda não foi fácil, uma verdadeira romaria de vizinhos, com o pretexto de  levar  uma quitanda,  oferecer ajuda e amizade, e claro, alertá-los sobre o perigo de continuar na casa, o melhor seria que construísse outra, lá para as bandas do riacho,  e narravam à sua maneira, a tragédia que envolveu os primeiros proprietários,quando estes foram expulsos da região, acusados de envolvimentos com feitiçaria e segundo os mais antigos, o que agravou a situação foi o fato de terem criado um monstro para proteger o  seu tesouro, pois não acreditavam na honestidade dos homens, assim dizia o povo. No dia  em que a família foi expulsa,  o ancião amaldiçoou a casa  e ordenou  à sua cria, o monstro invisível, que  pintasse a janela com o sangue das vítimas inocentes que  tombaram  em decorrência da violenta desocupação, principalmente, que as mantivesse sempre com esta cor para que a  injustiça,  a qual foram alvo, jamais fosse esquecida. Também lhe ordenou  que nunca permitisse que algum aventureiro se apossasse de seu tesouro, que  estava destinado aos seus  descendentes da sétima geração. Assim dizia o povo, finalizavam  a narração. Rosalina não sentia medo  das histórias contadas pelos vizinhos, e a cada nova versão do fato, sua curiosidade aumentava, mas a mãe não lhe tirava os olhos e ela não podia investigar.  Por prudência ou   por falta de tempo, não se sabe, fato é que  os novos moradores não se aventuraram a procurar o tesouro nem a  pintar as janelas com outra cor e assim se transcorrem duas colheitas do algodoeiro na mais perfeita  harmonia. As  visitas diminuíram e a vida seguia o seu curso até o dia do vendaval que destelhou a casa, arrancou  as janelas e muitos outros estragos, então,  João Francisco decidiu que o melhor seria  uma reforma completa, contratou mão de obra especializada, comprou material  e deu início a reforma.

          Os trabalhos iam bem,   sem nenhum imprevisto  ou acontecimento sobrenatural, o medo desapareceu e em seu lugar surgiu  à ganância e o desejo de  enriquecimento rápido, os trabalhadores não pensavam em outra coisa, senão no tesouro enterrado e aproveitando o dia em que  os proprietários foram a  cidade comprar matérias que faltavam e mantimentos, eles deixaram o trabalho de lado, arrancaram as taboas do assoalho da casa, e puseram-se a cavar freneticamente com a força que somente uma ambição desenfreada é capaz de proporcionar. Após uns sete minutos de trabalho,  ouviu-se o primeiro grito de dor. O chefe dos trabalhadores parecia ter enlouquecido,  lutava com  um inimigo invisível, implorava que parassem de surrá-lo; quando     marcas de chibata surgiam em seus braços e rosto, sem que ninguém visse o seu algoz é que perceberam a gravidade da situação e  decidiram  socorro, porém, foram igualmente açoitados, e por mais que se esforçassem, não conseguiam  abandonarem o local.  O medo,  o susto  e as dores não os permitiam raciocinar e elaborar uma estratégia para fugir; até   o Afonso, que se dizia  ateu, clamou pela  ajuda divina e ela veio  pela boca do mais velho do grupo, que propôs  deixar tudo como estava e   partirem o mais rápido possível. Quando  bateram  o último prego no assoalho arrombado, o castigo cessou,  eles  pegaram suas ferramentas com a promessa de nunca mais retornarem, mas um corpo  mole, grande e invisível os impedia de avançar e por mais esforço que fizessem, não conseguiam dar um passo adiante, pareciam estar cercados. Apavorados com impossibilidade  de deixar o locar,  gritaram, esbravejaram, chutaram o imperceptível, imploraram e nada, clamaram providências divinas, mas nenhuma ajuda veio do céu. Após horas de esforços inúteis, optaram por retomar o trabalho  para que o patrão  não  percebesse  que tentaram encontrar o  tesouro escondido e os levassem as autoridades e   trabalharam  arduamente até o por do sol e aparentemente, esqueceram o assunto.

          Apesar dos protesto da esposa, João Francisco optou por   pintar a casa em estilo colonial, paredes brancas e janelas azuis. Os profissionais contratados recusaram   o serviço alegando alergia à tinta, inexperiência, entre outras desculpas esfarrapadas, que pudessem encobrir o temor  de novamente, provocar a ira do monstro invisível. Sem a mão de obra necessária, João Francisco  se  encarregou  da pintura deixando as janelas por último, que foram pintadas de azuis e azuis amanheceram. A notícia se espalhou rápido. A vizinhança  esqueceu os seus afazeres e marchou para uma visita especulativa e como fato não explicado é fato comentado, não demorou a que rumores sobre o fim da maldição  fosse o assunto mais discutido nas rodas de mexericos o que reacendeu o desejo  de uma verdadeira caça ao tesouro.  Um grupo de homens com espírito  aventureiro e pouca coragem, foram ao cartório certificar-se   que a atual  família não  era  a herdeira. Não foi difícil averiguar que  o nome  do construtor da casa era: João Pedro  Emiroglu e sem uma pesquisa  genealógica profunda, concluíram que os Silveiras não eram  descendentes do  primeiro proprietário, - “ era sim, o fim da maldição,” e sorriam satisfeitos, os vizinhos gananciosos.

          Para  roubarem o tesouro, era preciso afastar  a família, no mínimo, durante três dias. Dividiram-se  em dois grupos. Um formado pelos homens mais fortes e valentes  responsáveis pela caçada, que se ofereceriam para cuidar dos animais durante a ausência das famílias viajantes, e  o outro, dos   amáveis e festeiros, que  entreteriam  os Silveiras, o que não foi difícil porque  Zé Agripino tinha um filho  em idade de casar,  e o mais rápido que pode, providenciou uma noiva em um arraial distante, a um dia de viagem, e convidou João Francisco e a senhora para padrinhos, deixando claro que não aceitariam um NÂO como resposta. Tradicionalmente os casamentos se realizam na casa da família noiva, e  a véspera do enlace, metade da vizinhança partiu em seus  lentos carros de boi. Com o êxito do plano, o grupo dos  “valentes”, marchou  em busca de riqueza fácil.

          Cegados pela cobiça,  ignoraram o  retorno da cor vermelhas as janelas, como a alertá-los do perigo iminente e avançaram determinados a encontrar  o tesouro enterrado há  quase  dois séculos. Foram recebidos pelos dois cachorros perdigueiros, que agiam como verdadeiros cães de guarda. Á medida que iam se aproximando da porta da sala,  o barulho  dos cães ia ficando ensurdecedor, parecia uma verdadeira matilha  enfrentando uma fera perigosa. Nada disso os intimidou e  o  no instante em que o   Senhor Tião, o  chefe do grupo, pegou as ferramentas para tentar arrombar a fechadura, foram jogados a uns dez metros de distância, porém, não se renderam tentaram  novamente, e mais uma vez tiveram seu propósito frustrado. Na  sétima tentativa, não conseguiram mais avançar, pareciam cercados por milhares de    animais invisíveis que rosnavam furiosamente, impedindo-os de retomar o seu intento ou as suas casas.  A situação inusitada perdurou até a hora mágica do crepúsculo, quando um silêncio sepulcral caiu sobre  o local.  Cansados, sedentos e famintos,  conseguiram retornaram aos seus lares  e  pelo caminho,  discutiam  uma nova estratégia para vencer o inimigo invisível.

          Na alvorada do segundo  dia de tentativa de caça ao tesouro, os ambiciosos chegaram ao local  carregando não somente as ferramentas necessárias ao trabalho,  mas todos os amuletos de proteção encontrados em seus lares, nem a água benta da bisavó fora esquecida. Confiantes em seus patuás, não recuaram  diante do enorme monstro vermelho,  de mais de  setenta metros de comprimento, com aparência de uma cobra  píton-reticulada, que protegia a casa. Determinados a  conseguirem o tesouro a qualquer custo, decidiram que  atacariam  com as picaretas ao mesmo tempo  e assim, reduziriam a estranha criatura a mil pedacinhos em frações de segundos. Ledo engano!  Já no primeiro ataque, os homens perceberem que a luta não seria fácil, pois   eles sentiam as dores  decorrentes dos golpes; além de não conseguirem o seu intento, porque  o corpo da criatura parecia ser de fumaça, se viram obrigados  não só a recuar, mas também,  a  esquecer do tesouro. Para não admitir a derrota  perante os outros companheiros, alegariam que desistiram do plano   em respeito a um dos  Mandamentos da Lei de Deus “Não roubar”  e que temiam as chamas eternas do fogo do inferno.

          A família retornou  e encontrou  a casa branca  de  janelas azuis,  bastante empoeirada e  o cheiro de mofo era forte. A poeira sob os móveis, o odor desagradável, característico de ambiente sem ventilação, irritou a matriarca e junto com a filha, iniciaram uma faxina pesada e João Francisco, com receio que lhe incumbisse de algum reparo, alegou precisar vistoriar a propriedade para ver se  tudo estava em ordem e partiu para a lida no campo.  Rosalina ajudava no que podia, era  apenas uma criança de sete anos, enquanto trabalhava, pensava nas  histórias  sobre o tesouro e em como encontrá-lo. A água acabou e sua  mãe precisou ir  a nascente  para reabastecer  os potes, então, ela aproveitou para iniciar a sua busca. Não foi difícil, uma taboa do assoalho estava solta e assim que a retirou, surgiu em sua frente, um simpático e sorridente  monstrinho vermelho,  parecido com um  filhote de pítion-reticulada, que  se propôs ajudá-la. Ele sequer esperou que a criança se recuperasse  do susto decorrente do encontro inusitado, e já lhe indicou o local exato onde ela devia cavar. Ela pegou a picareta do pai e  começou a trabalhar. A terra estava dura,  suas mãos ficaram cheias de bolhas de água, o suor  escorria em seu rosto, mas uma força sobrenatural  a fazia prosseguir, e mais rápido do que o esperado, ela encontrou um pequeno  cofre,  retirou-o cuidadosamente, depois cobriu o buraco com  a terra, despediu-se do monstrinho que  a agradeceu por  tê-lo libertado da difícil missão  que lhe fora atribuída pelo seu criador e desapareceu no ar como fumaça.

          Rosalina não conseguiu abrir o cofre e  com medo da reação  da mãe que temia os mistérios do universo, escondeu-o  em seu quarto e  retornou aos seus afazeres  com a inocência de um bebê  em um sono profundo. O dia transcorreu sem outra novidade. Após o jantar, enquanto a mãe lavava a louça, a pequena, com a desculpa que vira  um bicho em seu quarto, pediu ao pai que fosse  retirá-lo. Ele não negou e adentrou  ao recinto    pronto para lutar contra qualquer inimigo para proteger a filha. A criança confessou que mentira  em relação a bicho, queria apenas contar-lhe o que havia acontecido em sua ausência, não esqueceu um só detalhe. João Francisco   fez que acreditou, acariciou-lhe os cabelos e disse  estar orgulhoso de ser pai de uma criança tão criativa, mas que já era hora dela dormir. Antes que o  seu genitor se retirasse, Rosalina  retirou  o cofre de seu esconderijo e  com as mãos trêmulas de emoção e curiosidade,  entregou-o ao pai. Estava trancado e eles não tinham a chave, mas  o matuto,  acostumado a resolver todos os problemas da propriedade, vasculhou a sua caixa de ferramenta e  após infrutíferas tentativas  conseguiu abri-lo. Em seu interior não havia  a riqueza esperada - O que  é isso papai, indagou a criança. – É um grande achado! O diário de João Pedro Emiroglu explicou o pai e ordenou que chamasse a mãe urgente. A esposa chegou irritada e  perguntou do que se tratava.  Ao ver o diário o ar lhe faltou, e quase  desfaleceu. As histórias da família  passaram em sua mente como um filme. Não pode  ser! Então  é verdade! Dizia a si mesma.  O marido a acomodou e indagou a razão de tamanha surpresa ao ver o diário.  -Eu  e minha filha somos descendentes do feiticeiro construtor desta casa onde moramos! Sou filha de  uma Emiroglu, fui registrada apenas com o nome paterno de  “Pereira” que posteriormente, com o casamento fora trocado para “Silveira.”     

           O diário,   descrevia a aventura  dos Emiroglus, a partir do momento em que foram obrigados a  deixar a Turquia em virtude de perseguições políticas; os perigos  durante a viagem a bordo  de um navio cargueiro,as dificuldades  na convivência com o povo de outra cultura, que falavam outra língua, os preconceitos enfrentados, as batalhas travadas para conseguirem as terras,  e principalmente,  o  imenso desejo de  que  a saga da família  exilada  não se perdesse nas brumas do tempo. Consultaram o parente mais velho da  Senhora,  e juntos, fizeram a árvore genealógica da família e  concluíram que Rosalina, era sim, a primeira descendente  da 7ª sétima geração do  imigrante João Pedro Emiroglu e  arquitetaram um plano  para  atender o pedido do  patriarca  Emiroglu:

-   A partir da filha, toda criança teria  nome composto, sendo o segundo, “Emiroglu”. Apesar de  já ter completado sete anos de idade, ainda não fora registrada em cartório,  e seria registrada como Rosalina Emiroglu da Silveira;

-  Fariam um testamento doando a terra onde viviam aos seus descendentes e que estas somente poderiam ser vendidas pelos  descendentes da 70ª geração de Emiroglu;

- As janelas  seriam sempre pintadas  de vermelho sangue;

- Manteriam viva a lenda do monstro acrescentando sempre um novo episódio horripilante a cada 25 anos;

- A história da trágica desocupação deveria  ser fielmente repassada, de geração a geração; coube a João Francisco  a responsabilidade de pesquisar a versão oficial da tragédia;

-  A cada nova geração, um membro se responsabilizaria pela escrita de um diário, que após a sua morte, deveria ser enterrado junto ao primeiro;

- Como não encontraram a fórmula usada por João Pedro que possibilitou a criação do monstro, usariam  de toda a tecnologia  existente para   assombrar  os hóspedes, sempre na última noite  em que dormiriam na fazenda e assim, manteriam viva as lendas, afastariam possíveis compradores e invasores de terra;

- Todos manteriam em segredo o plano.

Enfim, João Pedro Emiroglu pôde descansar em paz! A terra que ele tanto amou   e pela qual tanto lutou, permaneceria na família  por  mais 70 gerações. Lá do céu, abençoou os seus descendentes!

 

 

         

terça-feira, 14 de setembro de 2021

Nonagenária em quarentena

 

             O vento do sul soprou  forte no  final do inverno de 2021. A frente fria  subiu a serra do mar, chegou à terra da garoa e com ela uma chuva mansa e contínua  que favorecia a  introspecção. – “Não basta   refletir, é preciso registrar os últimos acontecimentos para a posteridade, ” - suspirou a anciã solitária, enquanto  a mão  trêmula segurava a caneta que deixava  marcas azuis na alvura do papel.

As janelas foram fechadas  às pressas  e em pouco minutos  gotas de água tamborilavam nas vidraças. Rosalina  observava as formas abstratas nas vidraças e  não podia deixar de se preocupar com a falta de ventilação no interior da residência  porque propicia a proliferação de ácaros, fungos, mofos, estes velhos  intrusos já tão conhecidos dos brasileiros  que  não pedem  licença  para entrar e exigem  muito trabalho e determinação para serem exterminados;  para completar o clube dos intrusos, em meados do verão de 2020, desembarcou em terras brasileiras, com  visto de permanência definitivo, o coronavírus. O peso dos anos exauriram as suas forças e a  diarista fora dispensada logo no início da pandemia. Já ia para mais de um ano sem uma  faxina rigorosa, e agora,  com a combinação de frio, umidade e sem circulação do ar, correria o risco de contrair uma doença respiratória e covid-19,  pois a vacina não garante 100% de proteção. Não sabia ao certo como estava sua saúde porque seguiu a risca as orientações do governo e dos profissionais de saúde durante a quarentena: “fique em casa” e mesmo se estivesse liberada para sair, de nada adiantaria, os Postos de Saúde podem ser focos de disseminação de doenças. Acreditava ser  mais seguro permanecer  reclusa,  utilizando o serviço de delivery, a arriscar-se nas ruas  cruzando com pessoas irresponsáveis, que não tem amor a vida  e  não fazem uso da barreira de proteção física – a máscara- ao  transitar pela cidade. Uma mudança repentina de hábitos pode ocasionar problemas de saúde  inesperados, principalmente em pessoas como ela, que  tinha vida ativa antes da pandemia. Apesar da idade avançada, fazia hidroginástica duas vezes por semana,  frequentava bailes  vespertinos aos sábados, trabalhava como voluntária na Pastoral da Criança aos domingos e ainda tinha tempo e disposição para um café com as amigas,  fazer compras em liquidações e as tarefas obrigatórias como supermercado e feiras livres. À noite, ouvidos atento à novela enquanto as mãos ágeis  tricotavam  bonitas peças destinadas a presentear as crianças do Orfanato Mãe Amorosa. Era uma rotina  pesada,  despertava com os passarinhos e  recolhia  aos seus aposentos após a última novela da TV aberta e antes de entregar-se aos braços de morfeu, lia  duas páginas da Bíblica Sagrada. De repente tudo mudou. Ela se viu confinada em um apartamento  com vista para o muro de uma fábrica abandonada,  e  as palavras de ordem do governador a martelar em sua cabeça: “  fique em casa, use máscara,  lave as mãos,  use álcool em gel.”  O que ela podia fazer para aliviar a tensão diante de tantas incertezas? Agarrar-se às agulhas, tricotar e tricotar; levantava do sofá somente para  os cuidados com  a alimentação. Lá pelo 233º dia de quarentena, as agulhas já  eram as suas melhores amigas e  queixava-se do calor  intenso que sentia nas pernas, do formigamento que subia da perna a virilha, inchaço e manchas vermelhas na pele. Obviamente  o par de agulhas  trabalhava indiferente aos queixumes da dona  e ela concluiu que era necessário procurar um especialista.  Optou por  consultar um  angiologista  em uma clínica popular próximo a sua residência, o que evitaria ter que usar transporte público, onde o  risco de contaminação comunitária era grande em decorrência da aglomeração de pessoas oriundas de diversas partes da cidade, da falta de ventilação no  interior do veículo e, principalmente, da possibilidade de alguém   tossir  ou espirrar e o coronavírus furar o bloqueio e ir acomodar-se  justamente em suas narinas ou garganta, - sempre há o risco, pequeno, mas é uma possibilidade, refletia.

            Para a consulta médica, Rosalina preparou-se como um soldado quando ia para a trincheira, nos idos tempos em que a espada e braços fortes determinavam o vencedor de uma batalha, nenhum detalhe foi esquecido. Optou por usar um vestido de mangas longas  para a proteção de seus braços,  um sapato confortável, duas máscaras  no rosto e mais duas de reserva  e o álcool gel na bolsa. Deixou tudo preparado para a sua volta,  sandálias na entrada, a porta do banheiro aberta,  para que não fosse necessário tocar a maçaneta ao adentrar para lavar as mãos e tomar banho. Temerosa, porém resoluta, enfrentou seus medos e  seguiu para a clínica; ficou satisfeita com a limpeza e organização. Não demorou nem dez minutos e foi chamada pela   jovem médica, que parecia  ter medo da paciente,   a olhou dos pés a cabeça e  prontamente   diagnosticou–a: era  luxação e  que ela precisava repousar. Com mais de nove décadas de vida,  a paciente  percebeu que a profissional não tinha  interesse em atendê-la, queria apenas o dinheiro da consulta e livrar-se dela o mais rápido possível.  Nesta circunstância, ser educada é difícil, mas a  anciã não se deu por vencida,  sentou-se confortavelmente na cadeira, passou álcool gel nas  mãos e pulsos, olhou firmemente  nos olhos da doutora e disse bem séria: Se eu tivesse alguma suspeita de  luxação, eu procuraria um ortopedista. Se a procurei é porque acredito que uma profissional com a sua especialidade possa   investigar, diagnosticar  e prescrever o tratamento adequado. Sem graça, a jovem seguiu o protocolo convencional de atendimento e completou: - para  que a  senhora fique tranquila, pedirei o exame, que é feito  aqui.  Em menos de uma hora, estava a nonagenária  de volta ao consultório e  finalmente, diagnosticada corretamente.  Princípio de trombose, nada muito grave, medicação correta e exercícios físicos acompanhados por especialista, seria o ideal, mas na impossibilidade de arcar com os custos,  uma caminhada diária será o suficiente  concluiu a doutora. Um pouco desconfiada, mas com medo de contrair a Covid-19, frequentando vários consultórios médicos, passou  em uma farmácia, comprou os medicamentos e retornou ao lar caminhando.

            Tanto tempo enclausurada,  ao ser  vista pelas vizinhas, não foi tão fácil assim, chegar em casa, todas queriam saber o que havia acontecido, tinha que ser grave, para ter-se arriscado em  uma consulta e quando desvencilhava de uma, já tinha duas acenando e a última, foi Helena,  que também conhecia a dor da perda do esposo e do único filho e as dificuldades de viver sozinha    com  idade avançada e  com todas as mazelas  características da  ironicamente chamada de    “ Melhor Idade”, que com certeza é uma invenção de algum jovem que desconhece  o sofrimento que é conviver com a perda diária de vitalidade, já não se sente com intensidade os aromas e sabores, audição e visão cada dia mais fracas  e as mãos já não conseguem perceber todas as texturas e ainda ter que suportar as dores ocasionadas pelo desgaste natural do corpo somados a isso, o peso das lembranças de magoas e arrependimentos do passado. Conversa vai, conversa vem, Helena chegou a sábia conclusão, que ambas eram um “peso morto” para a terra  porque estavam somente usufruindo de seus frutos sem dar nada  em troca, sem ter um descendente para  continuar  as tradições, lavrar a terra  e ainda  onerando os cofres públicos, com a aposentadoria, saúde, transporte e lazer. A lei natural é nascer, crescer, reproduzir, cuidar da prole, transmitir os conhecimentos adquiridos dos ancestrais e partir  para  “a cidade dos pés juntos”. Morrer é preciso, finalizou a amiga. Rosalina não queria despedir-se  do mundo e não tinha  pressa para ir ao encontro de seus bisavós, avós, pais, tios, primos, sobrinhos, marido, filho e amigos de infância, escola e trabalho. Estava só, reconhecia, mas ciente que um dia irá repousar eternamente em cova escura, adiar  este momento é o mais prudente, assim acreditava. Por volta das 18 horas, finalmente conseguiu chegar,  porém, não pode se jogar no sofá para descansar, havia um protocolo a seguir: Deixou os sapatos na entrada, lavou as mãos,  desinfetou  as maçanetas, bolsa, caixas de remédio e jogou no lixo a  nota fiscal e  sacolinha  plástica. Tudo limpo era a vez dos cuidados corporais,  tomou banho, lavou bem  os cabelos; a roupa que usara e  também as tolhas de rosto e banho  foram direto para a lavadora e não economizou no sabão em pó e menos ainda no desinfetante.

            Após a profilaxia de chegada da rua, enfim, pode  retomar o seu tricô e mal iniciou o diálogo com as agulhas, suas  inseparáveis parceiras   de trabalho, sentiu um incômodo  na garganta  e na sequência, a primeira tosse seca, além de incontáveis espirros. Em outros tempos,  isto não a teria preocupado, culparia o ar condicionado  da clínica e a friagem  característica do entardecer  de inverno; um chá de alho bem quente resolveria o problema. - Estou  com Covid-19, gritou desesperada! O que fazer? Não há remédios  com eficácia cientificamente comprovada, tentar  a medicina popular poderá camuflar sintomas mais graves. Só tenho como alternativa, melhorar a imunidade à moda antiga pensou.  Foi dormir pensando em uma estratégia para evitar uma entubação, pouco provável, mas possível, mesmo tendo tomado as duas doses da vacina. Acordou exausta, tossindo e com febre. Desesperada, pegou o telefone e fez o pedido de remédio para vermes intestinais e   multivitamínico sênior. Precisava também, enriquecer a alimentação, assim, açougue, varejão, padaria, supermercados e casa de produtos naturais receberam  pedidos, mas  a quantidade de entregas chamou a atenção do porteiro,  que comunicou o  fato ao síndico, um jovem eficiente e prestativo.  A pobre anciã levou mais de três horas para higienizar  e guardar todas as compras e ao término da tarefa, já lhe doía todo o corpo e ela achou prudente tomar um banho quente e repousar, só que acabou cochilando. Lá pelas dezenove horas, a campainha tocou. Rosalina  acordou assustada, esqueceu que já estava de pijama e atendeu a porta. Era o síndico e sua solícita esposa. Ambos concluíram que ela não estava bem e decidiram levá-la  a UPA. A tosse,  os espirros e a dificuldade de movimentar-se, em decorrência do excesso de  trabalho, contradizia o que ela tentava explicar, que não tinha nada, acreditava ser apenas um  forte resfriado. Ao  passar pela triagem, a enfermeira concluiu que era sintoma de  Covid-19 e a encaminhou para o atendimento especializado. Sem esperar o resultado do exame, o médico diagnosticou com firmeza: é Covid. A pobre senhora retornou ao lar com  o kit-covid e a firme promessa de que  um funcionário do prédio iria pontualmente  levar-lhe a medicação, que ela deveria ficar em isolamento durante quinze dias  e qualquer coisa que precisasse, era só interfonar na portaria, que ele, síndico ou a esposa, iriam atendê-la o mais rápido possível, para que nada mal lhe acontecesse. Que ficasse tranquila, eles cuidariam dela, concluiu o síndico e a desesperada senhora,  não teve outra alternativa, a não ser agradecer tamanha generosidade e resignada, a pobre senhora se viu obrigada a  aceitar que estava com covid-19, apesar de sua longa experiência de vida dizer-lhe que era apenas um forte resfriado.

            Foram dias difíceis! A pontualidade britânica do funcionário  não lhe permitia sequer tricotar, - a senhora precisa repousar, dizia com firmeza  enquanto a acomodava em sua cama. Assim, Rosalina, a única descendente viva de Pedro Raizeiro, o melhor curandeiro da  região, foi submetida a um  rigoroso tratamento desnecessário, exposta  a curiosidade  pública, todos os conhecidos, pelo WhatsApp, indagavam sobre os sintomas e nunca ofereciam ajuda, visitas estavam proibidas, mas um regalo, para quebrar a monotonia até que iria bem, pensava a anciã, que se sentia como uma criança, a mercê das decisões dos adultos. Mas tudo passa e findo os quinze dias  de isolamento social, ela foi  aparentemente esquecida e não ficou triste, precisava retomar o seu tricô, e principalmente a sua cozinha, já estava cansada  do tempero da  comida da esposa do síndico.

            Aos poucos a vida voltava ao normal e com a flexibilização decretada pelo governador, Rosalina, que já estava incomodada com a sujeira do apartamento, decidiu entrar em contato com  a faxineira para que esta retornasse ao trabalho, acertaria uma vez ao mês, ambas com máscara e  assim estariam protegidas. Contatar a profissional não foi fácil, o número  do telefone já pertencia  a outra pessoa  e  ela foi obrigada  revirar gavetas em busca de agendas antigas, após horas de  busca incansável, encontrou o telefone  de uma vizinha, que a informou que a sua prestadora  de serviço havia  sido uma das centenas de milhares de  vítimas da Covid-19, fazia aproximadamente uns seis meses, toda a família fora contaminada mas somente ela chegou a óbito. Perplexa, deixou cair o telefone e recostou-se no sofá. Não podia acreditar! A senhora Penha, era uma mulher jovem, apenas 40 anos de idade, forte, trabalhadora. Se havia partido há seis meses, por que os familiares não a comunicaram? Rosalina precisou de um tempo para  ordenar as ideias e os sentimentos. Após  uma xícara de chá de  melissa e valeriana, com o coração mais tranquilo, recordou a última conversa que tivera com a falecida,  uns dias antes do início do  primeiro lockdown na cidade, quando a dispensou temporariamente, e para garantir a prioridade no dia da semana em que limpava o  apartamento, quando a vida voltasse ao normal, 30% do valor  da diária seria  depositado mensalmente na conta  corrente de seu esposo,  no quinto dia útil do mês, porém, na realidade, a verdade era outra, Rosalina previa as dificuldades que a profissional autônoma enfrentaria durante o período da quarentena, mas não queria  humilhá-la  com doações em dinheiro, em consideração aos anos de bons serviços prestados e  fez uso de  um argumento convincente para que ela aceitasse o trato –“Então, a verdade é uma só, o viúvo não  comunicou o falecimento para que eu continuasse  a efetuar o pagamento,  concluiu com tristeza.”

             A cada nova aurora, Rosalina parecia estar mais incomodada com  o pó acumulado e sem coragem para contratar outra profissional de limpeza,  com medo de  ser contaminada com a  variante “Delta”decidiu fazer o serviço. Tinha ciência que  levaria  no mínimo três dias, faltava-lhe o vigor dos quarenta anos e o  melhor seria começar pelos mais difíceis e  num piscar de olhos, elaborou a escala de serviço. Primeiro dia, cozinha e área de serviço, segundo dia, banheiro  e terceiro dia, quartos e sala, porém,  a empolgação não lhe permitiu recordar a forte alergia a ácaro. Enfrentou o trabalho pesado com a mesma alegria que uma criança desfruta    de um brinquedo novo. O cansaço  e as dores no corpo não  minaram o seu entusiasmo durante os dois primeiros dias, porém,  quando começou a limpar  guarda-roupa e estante,   percebeu que precisava  tomar um antialérgico,  mas eles estavam vencidos, ir até a farmácia atrasaria o serviço, pedir por delivery  era uma boa opção, porém, poderia  chamar a atenção do porteiro e correria o risco de  ser levada a UPA sem necessidade, assim, não viu outra alternativa a não ser continuar a tarefa, apesar do mal estar, mas esta, não foi uma boa opção!

            Rosalina acordou  com os olhos lacrimejantes,  dor na  garganta, tosse e falta de ar,  um pouco de febre,  dores generalizadas pelo corpo, em virtude do excesso de trabalho dos dias anteriores, mas isto não a preocupou, sabia que precisa  apenas da medicação rotineira e repouso. Tomou café da manhã e decidiu ir à farmácia, na volta passaria pelo varejão, compraria algumas frutas para que não levantasse suspeita de que não estava bem.  Assim pensou, assim o fez, porém, ao passar pela portaria, tropeçou, caiu e bateu com a cabeça no degrau  da escada, nada grave, não chegou a sangrar, mas ficou um pouco tonta e com confusão mental; o síndico foi chamado e a levou ao hospital mais próximo. Ao vê-la gemendo de dor, com dificuldade para respirar e tossindo muito e  tosse  seca,   o enfermeiro da sala de triagem,  encaminhou-a para a ala de Covid-19. Ela tentou explicar o ocorrido, mas não foi levada a sério pelos médicos, talvez  pela idade avançada,  eles  devem ter concluído que  paciente  estava  com alzheimer. Internaram-na em um quarto coletivo e mais uma vez a pobre senhora foi submetida ao tratamento para Covid-19. Implorou que lhe dessem um antialérgico, mas o pedido não foi atendido. Foram cinco dias de martírio e finalmente saiu  o resultado do teste, “negativo”, e ela recebeu alta. O retorno ao lar foi tranquilo. Saciada a curiosidade da vizinhança, ela pensou que enfim, retomaria a sua rotina, mas não foi bem assim.

 Rosalina acordou cansada, sentia que o ar lhe faltava,    a tosse seca a incomodava e tinha um pouco de febre. Reuniu forças e foi preparar o café da manhã e então percebeu que não sentia o cheiro e nem os sabores dos alimentos, desta vez sim, ela  havia contraído Covid-19, durante o período de internação.  Revoltada com as experiências anteriores,  decidiu não procurar ajuda médica, deixaria a natureza completar o ciclo nascimento/morte, já tinha sido abençoada por Deus com noventa anos de vida e bem vividos. Quando o seu corpo, em estado avançado decomposição, incomodasse os vizinhos, eles que tomassem  providências, porém, não morreria sem lutar. Lutaria à moda antiga:  água, comida, repouso e práticas medicinais  tradicionais. Não tinha descendentes,   a partilha de seus bens já estava em testamento, mas a experiência traumática com o coronavírus  e diagnósticos precipitados precisavam ser registrados  para a posteridade. Ela sentia  que tinha pouco tempo e suplicava ao Criador que  lhe permitisse a glória de colocar o ponto final em seu relato.  Gotas de chuva tamborilavam na janela criando   enigmáticas formas abstratas   indiferentes às dores  humanas

 

           

           

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

A partida de Dudu Braga, o Filho do Nosso Rei Roberto Carlos

                                Roberto Carlos II, Segundinho, Dudu Braga, não importa  como é chamado. Nós o amamos! È o filho do Rei mais amado por nós, que nascemos  na década de 1960 e desde a  mais tenra idade,  acompanhamos pelas ondas rádio, e revista de fofocas, o nascimento e a luta  do  pai para que  o filho tão esperado não  ficasse impedido de ver a luz do dia. E assim disse o Rei, antes de partir para Amsterdã, confiante  na possibilidade encontrar a cura para os olhos do  bebê “ A  vida sempre me criou problemas. E eu sempre os venci.”  Frente a dura realidade e sentindo-se impotente diante da doença do filho, desabafou posteriormente  à imprensa, “ Naquela noite fria da Holanda quando  eu e Nice fomos tentar recuperar a visão do meu filho, envelheci quinze anos. Envelheci quinze anos  numa sala de espera. Foi o maior sentimento de impotência e solidão que senti na vida. Maior mesmo que o acidente que sofri tão menino.” Naqueles tempos em que as noticias não chegavam em tempo real como hoje, nós, suas fãs choramos angustiadas noites a fio, esperando notícias. Posteriormente, quando chegou às rádios, a canção: As flores do jardim da nossa casa, como fãs amorosas e fiéis, acreditamos que o pior já  havia passado. Sempre soubemos que está canção,  era  o grito de dor e desespero de uma  pai amoroso que  só desejava a saúde do  herdeiro.

            Acompanhamos a trajetória do menino, que se tornou um jovem talentoso, que  não se rendeu quando perdeu a visão, pelo contrário, trouxe à luz o debate sobre a  deficiência visual, e com o seu exemplo, fez milhares  de pessoas perceberem que a perda de um dos sentidos, não representa o fim, e que a vida pode continuar. E, com a mesma fidelidade dedicada ao pai, ouvíamos o seu programa de rádio; “ As canções que você fez para mim”, além de nos deliciarmos com as belas  músicas de Roberto Carlos, divertíamos  com as histórias  sobre a carreira  do  pai.

            Nossa Senhora Aparecida,  receba aí no céu,  de braços aberto, o filho do Rei, e cubra com o seu de amor, o pai desesperado, que se despede do filho. Dê-lhe a força necessária para suportar a dor da separação definitiva. Dê-lhe a sua mão e também, a serenidade necessária, para aceitar  os desígnios de  Deus e cure-lhe a ferida de sua alma.

segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Dia de vacinar

           A amizade entre   Samira e Nádia teve  início quando ambas, recém-casadas,  mudaram-se para um condomínio popular. Pareciam duas  irmãs gêmeas, de tão unidas que eram, uma apoiando a outra com a criação dos filhos,  compartilharam o orgulho de vê-los crescer, a apreensão  de  quando deixaram o ninho  para constituírem suas próprias famílias, e também as dores do luto, quando ficaram viúvas. Ambas já beiravam os noventa anos, e o preço que se paga pelo privilégio de uma vida longa é a solidão. Sim, a solidão!  Os ascendentes já partiram para a “terra dos pés juntos” e com eles, os primos, amigos de infância,  escola e a maioria dos colegas de trabalho.  Com amizade nova não  é prudente  confiar em demasia; é até difícil engatilhar uma boa conversa porque não  compartilharam as mesmas  experiências no  passado e quanto aos descendentes, é sabido que comunicam com os mais velhos somente  por redes sociais e nunca estão disponíveis  em  situação de urgência. A  dura realidade as unia cada dia mais. Eram ativas e  felizes até  a chegada do coronavírus.  O período de isolamento social foi difícil, mas elas enfrentaram de cabeça erguida, não esmoreceram e depositaram todas as suas esperanças na vacina apesar da imensa campanha de fake news que questionava a sua eficácia.  Determinadas a vencer o inimigo invisível,  não permitiram que o medo dos efeitos colaterais as impedissem de se protegerem. Apesar da pouca diferença de idade entre elas,  no cronograma de vacinação do governo, os dias seriam diferentes e elas ficaram bem contentes, assim, uma cuidaria da outra, caso tivesse alguma das reações   previstas na bula. Iriam juntas e  registrariam o momento para a posteridade.

          Samira  seria  a primeira a ser vacinada, estava ansiosa; após tanto  tempo em quarentena, respirar novos ares era uma alegria indescritível; optou pelo horário das  oito horas da manhã, no posto de vacinação, da avenida principal de sua cidade; queria ser a primeira a chegar, porém, todos os idosos pensaram a mesma coisa e encontrar um local para estacionar foi mais difícil do  que ela podia imaginar. Tiveram que  utilizar o estacionamento de uma loja e não  notaram um rapaz sentado na porta do estabelecimento, com uma faca na mão. Desceram com a  dificuldade inerente à idade e só então perceberam o perigo a que estavam expostas e com  uma calma aparente que só o medo extremo é capaz de proporcionar,  Nádia cumprimentou o  jovem e pediu que ele  olhasse o veículo pois na volta, lhe dariam “um trocado”.

          Esperaram na fila, aproximadamente  uma hora, e já  imunizada, precisavam retornar ao estacionamento. Nádia sugeriu que  Samira  buscasse o veículo sozinha e ela esperaria em frente ao  Posto de vacinação, e si, em 15  minutos ela não regressasse, chamaria a  Polícia.  Nada do que as frágeis anciãs temiam aconteceu e felizes, retornaram ao condomínio. Na despedida, Nádia reforçou que estaria a disposição, para o que precisasse, a qualquer hora. A noite foi difícil para Samira. Dor no peito e no braço, não a permitiu dormir, mas como já  sofrera dois infartos, optou por não pedir socorro com medo de ser levada ao  hospital e contrair Covid-19, não queria correr o risco de   ficar entubada a mercê de tratamento experimental, e menos ainda, ser enterrada em caixão lacrado, sem a presença dos parentes   a lamentar a sua passagem, que demorara tanto, e agora, teriam pouco tempo para desfrutar da herança.

          Assustada com a experiência  do estacionamento, Nádia  escolheu outro  posto de vacinação, e desta vez, iriam às doze horas, comércio aberto, mais fácil para pedir ajuda, em caso de  outro encontro inesperado e Samira, que a levaria de carro,  aplaudiu  a  decisão da amiga. Foram obrigadas a estacionar na rua, uns três quarteirões do local. Caminhavam felizes, observando  os jardins das casas quando Nádia notou que Samira estava sem a máscara,  que provavelmente ficara no carro, já que na bolsa, não estava.  Caminhavam sem pressa, e  quando estavam a  uns 20 metros do veículo, foram abordadas por uma simpática senhora que  indagou se elas  estavam procurando a chave do carro e antes mesmo que as perplexas senhoras respondessem que não, entregou-lhes o chaveiro e seguiu o seu  caminho sem  esperar agradecimento.

- Proteção divina!  Retornamos  pela máscara e encontramos a chave perdida, sem mesmo dar-nos conta que a havia perdido.  Exclamou Nádia.

- Meu anjo da guarda nem piscou hoje, o que faríamos distantes de casa, sem dinheiro e cartão?  Realmente foi a  divina providência! Aleluia! Exclamou Samira.  Talvez pelo  horário, não enfrentaram  fila e na volta para casa, ultrapassaram a velocidade permitida; foram paradas e repreendidas por um guarda de trânsito, que aconselhou-as a  utilizarem os serviços de táxi, seria bem mais seguro. Esquecimento ou misericórdia, não se sabe, fato é que não foram multadas.. Samira agradeceu a orientações  e seguiu o seu caminho.

          Ao contrário de Samira, que apenas sentiu fortes dores no peito, Nádia  teve várias reações à vacina: cansaço, calafrio, enjoo, tosse, dor de garganta e febre de 38º, sofreu sozinha, durante dois dias.  Ao responder as mensagens da amiga, negava  com veemência  qualquer mal estar, com medo de ser levada ao hospital e  receber um falso diagnóstico de Covid-19 e  tratamento inadequado  que a levaria a óbito. – É preferível uma morte solitária a ser lembrada pelos descendentes como a parente que  faleceu de Covid-19, durante a pandemia do coronavírus, nos anos de 2020/2021, suspirava resignada. Esquecidas as  aventuras, as duas amigas   passaram a dedicar   o tempo em que estavam juntas a planejarem um roteiro de  passeio, no dia da dose de reforço – A  pandemia já estará controlada!  Quiçá possamos ir sem máscaras. Sobreviveremos à pandemia e sorriam satisfeitas.