sábado, 25 de dezembro de 2021

Faltou a magia do Natal

            Foi bom aceitar o convite para passar o natal em casa de amigos. Dois anos dentro de casa com medo do coronavírus e  mais recentemente, do  H3n2, sair e divertir um pouco alegrou o meu espírito.   Foi uma recepção calorosa, comida farta, porém,  uma comemoração  vazia, sem o simbolismo e magia  da data. Não havia  nenhuma decoração referente à data, sequer uma bolinha vermelha perdida em um canto qualquer da mesa e o Menino Deus sequer foi lembrado. Os assuntos giraram em torno  de fofocas familiares e nada mais. Comer por comer, sequer foi servido os pratos convencionais porque   os anfitriões disseram que agora são vegetarianos. Não os recrimino por esta pequena mentira porque com o preço abusivo das carnes,  se- formou  dois grupos de vegetarianos: Os convictos que realmente acreditam  que  abdicar da carne é melhor para o organismo e para o meio ambiente; e do outro lado,  os envergonhados, sem condições financeira para   adquirir o produto se viram obrigados a reformular o cardápio natalino.  São tempos  difíceis e com a perda da fé e magia do Natal,  a esperança se finda e o vazio existencial invade a alma.     

domingo, 19 de dezembro de 2021

Medo de que?

 

          Gosto de informações completas, com os mínimos detalhes e  de certa forma, fiquei até irritada quando  ao ler em um livro, que o jornal inglês Sunday Times  perguntou  a três mil pessoas: “ Qual  é o seu maior medo?”  Faltou o ano em que foi feita esta pesquisa, local, classe social  e isto dificulta ao leitor do futuro a compreensão dos medos dos entrevistados. Para os brasileiros pobres, arrimos de famílias, em 2021,   os seis maiores medos elencados parecem pueris; ei-los:

41% Falar em públicos.

No auge da pandemia, qual pai de família desempregado,  com a geladeira vazia, e filhos chorando de fome, esposa a beira de um ataque de nervos, as contas atrasadas e  na iminência de ser despejado, vai ter medo de falar em  público? Com as chuvas torrenciais que anualmente provocam enchentes e deslizamentos frequentes durante a primavera e verão, desabrigados  gritam  na frente das câmeras  que precisa da ajuda do governo e da solidariedade da população.

32%  medo de altura.

Medo de altura é um privilégio para quem tem papai  rico que o pode  socorrer em qualquer emergência. O pobre se arrisca a trabalhar dependurado  em prédios, enfrenta fogo  nas alturas como os valentes soldados do Corpo de Bombeiros.

22% - Medo de insetos. Este é para quem não sabe o que é encontrar uma cobra  cascavel em seu caminho, uma jacaré no rio e uma onça pintada  faminta,  um estuprador  na madrugada, horário em que a maioria das mulheres  de baixa renda estão  sozinhas, no ponto de ônibus,   a caminho do trabalho. Se preocupam também com 100% de  chance de encontrar um assaltante no beco escuro quando retornam  exaustas da escola, altas horas da noite.

19% -  Medo de doenças. A doença é bem democrática, acomete a todos, porém, o pobre sequer tem tempo para temê-la,  sempre há preocupações maiores como o desemprego que o poderá matá-lo de uma forma bem mais dolorida, de fome.

19%  Medo da morte.  Isto pode ser privilégio de rico, porque o pobre teme é a circunstância em que morrerá. Fome? Frio? Bala perdida? Atropelado?Torturado por bandidos? Exaustão? Falta de atendimento médico?

Os problemas dos brasileiros são bem maiores!

segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

Forçada a partir

 

            Recostada ao tronco forte da velha paineira próximo à sede da fazenda, Rosalina observa o voo das nuvens brancas  que  assemelham-se a uma  revoada de garças brancas e espera ansiosa pelo momento em que as primeiras pinceladas de raios  de sol irão colorir o céu com diferentes nuances de  cores quentes. Lentamente o sol vai desaparecendo por trás do verde das montanhas. É o momento mágico  da transição entre o dia e  noite, ela ainda consegue avistar, na outra margem do rio,  um vaqueiro recolhendo o gado que muge tristemente, como a dizer que prefere o frescor dos prados ao calor  dos estábulos. A jovem tenta vencer a sonolência  para  que melhor possa ouvir o pio dos pássaros em seu regresso aos ninhos no momento em que a tarde se expira. É lua nova! Em breve a escuridão cobrirá a   terra  e o silêncio reinará em absoluto durante o repouso da natureza. O seu rosto meigo, queimado pelo sol é iluminado por um largo sorriso ao ouvir o relinchar distante do canarinho, o seu   manso cavalo de sela, o único que o pai lhe permite montar porque  é um animal velho que já não tem mais forças para puxar a charrete e correr em disparada esbanjando força e vigor.  Sem que  ela percebesse  o dia expirou e a estrela vespertina  é o ponto de luz fascinante  em meio a treva. Rosalina suspira! Sente confortável junto à velha árvore que a viu nascer e fica a divagar sobre  a segurança que é ter raízes  e galhos fortes que não podem ser  arrancados quando o vento do sul sopra furioso ao anunciar que uma forte tempestade chegará em breve com raios, trovões e chuva em abundância que fará o rio transbordar. Em dias chuvosos e  também nos de sol escaldante, o gado procura a  árvore  para  abrigar - se  e ela  acolhe-os em sua generosidade!  A paineira velha é como um edifício de muitos andares porque abriga inúmeras vidas e de suas painas, são fabricados os travesseiros dos ribeirinhos  razão pela qual foi preservada quando os primeiros moradores chegaram a  região  para fazer pastagem  para alimentar o gado gir que chegara da Índia, em grandes navios cargueiros. Rosalina  aprecia  a vida no campo em contato direito com a energia telúrica. Respirar ar puro e a cada amanhecer,  nutrir-se com  a energia do sol e da terra  e senti-la  percorrer todos os vasos sanguíneos é tudo que precisa para ser feliz. A lida rural é dura, porém gratificante graças a sinergia homem/terra. Longe da balbúrdia da cidade. Rosalina  sente-se feliz!

             A noite chegou de mansinho, mil  estrelas já brilham no céu graças  a escuridão  e no silêncio   é possível ouvir o som da correnteza do rio que  segue o seu curso indiferente ao  movimento de rotação da terra. Nas profundezas do Velho Araguaia há segredos a serem descobertos. A população ribeirinha narra histórias sobre o  Caboclo d’água, dizem, que ele é o protetor dos peixes e vira as canoas dos pescadores, por isso é que eles pescam somente com vara  à moda tradicional, sentados no barranco. A estranha criatura não consegue andar em terra firme, ele é um ser aquático! Mas como  é a sua vida no fundo do rio é um mistério a ser desvendado por algum mergulhador corajoso. O murmúrio das águas mantém o pensamento de Rosalina firme e ela tenta imaginar como  é a rotina do Caboclo D’água. Imagina-o uma criatura de hábitos noturnos, porque este é o horário  propício para pescaria, e tão logo o sol se põe por trás das montanhas verdejantes, ele devora um suculento bife de jacaré e sai  à caça de  pescadores  com o intuito de  impedir que os belos peixes  fiquem reduzidos a ensopados em alguma  panela de barro. Com o ouvido atento ao  som das águas feridas pelos remos ele vai nadando de mansinho para não dar alarme e de surpresa,  vira a canoa e dezenas de peixes retornam aos seus lares. Esta é a sua missão: proteger a vida  destas pequenas criaturas indefesas.

            Rosalina   espreguiça-se suavemente, depois acaricia a casca grossa da velha paineira, sente-lhe a textura e sonha com o dia, quando já adulta, for proprietária deste  pedaço de chão.  Construirá uma nova casa em estilo colonial, pintada de branco com janelas azuis com um jardim grande à frente, no qual plantará rosas brancas, dálias, crisântemos, jasmim, hibisco, primaveras de várias cores e muitos cravos amarelos e também plantará um pomar  e terá uma  horta com variedades de verduras, legumes e ervas e o alecrim reinará em absoluto;  também poderá ter uma plantação de milho para poder criar porcos e galinhas. Mas o que de melhor há de ter em sua fazenda é o estábulo  para a criação de cavalos manga larga marchador. Somente quem aprecia  longas cavalgadas  é capaz de reconhecer o valor de um  animal marchador de porte médio, ágil de estrutura forte, ativo e dócil, cujo movimento marchado  proporciona conforto à amazona ou cavaleiro. Não, ela não está  a reclamar do velho  canarinho, que  em seu passo lento, a leva onde precisa, mas ele é um campolina   que passou a juventude e idade adulta puxando charrete e arado. É lhe muito grata porque com o seu cavalgar  troteado, está sempre pronto a servi-la, mas depois de tantos anos de prestação de serviço,  ela reconhece que ele merece  descanso.

            Rosalina   sente a friagem da noite e tudo parece mágico: ela, a terra e a  velha paineira. Apura os ouvidos e ouve apenas   o cantar distantes das águas, sente a energia telúrica e ela sabe que ali é o seu lugar.  A palavra partir soa como uma blasfêmia, ela vibra e anseia por um milagre, que a  permitirá ficar neste chão sagrado até o seu último dia de vida e no ventre da grande mãe repousar eternamente. Olha as estrelas piscando indiferentes  as injustiças sociais que faz com que camponeses abandonem  a sua gleba para amontoarem-se em cortiços nas cidades.  Vaga-lumes piscam  e ela percebe que o sonho é como a semente, se plantada e cuidada, florescerá  na primavera e ela conhece a lida do campo; ás vezes, enfrentam longos períodos de estiagem e quando tudo parece perdido, o céu derrama água sobre a terra seca e a vida volta a florescer, tão certo como o sol que ilumina a terra depois da escuridão da noite.  A dor e a incerteza que agora assola o seu coração  juvenil irão dissipar assim como as trevas após o primeiro beijo dos raios  solares.

            O sol levanta preguiçosamente e  sua luz cria  diferentes tonalidades  de amarelo nas água frias do rio. O dia começa com prenúncio  de calor, o ar esta parado. Sentada à margem do caudaloso Araguaia, Rosalina ponteia a viola  de seu pai. Seus pais  e seus irmãos foram à cidade para consultar com o  Doutor, e ela, como está com a saúde boa, ficou para apartar as vacas de seus bezerros, e  alimentar os animais doméstico. Eles irão demorar, foram de charrete, o único meio de transporte que dispõem no sertão de Goiás, onde o acesso por automóvel é difícil e  privilégios dos grandes fazendeiros. Apesar da rudez de sua vida, ela é feliz  neste pedaço de chão, e aproveita a ausência da família para exercitar-se no instrumento musical de sua preferência – “viola é coisa de homens,  mulheres ricas tocam pianos e as pobres, esfregam roupa no tanque ao som do rádio de pilha,” dizem os seus pais. Ela aprendeu a tocar sozinha, apenas observando e abraçada à velha viola caipira, sentindo a carícia vaga de  uma brisa mansa improvisa uns versos  que brotam espontaneamente e  misturam-se  ao murmúrio das  águas.

 

Veio galopando esta mágoa

Sem dar aviso;

Dos meus olhos escorrem água,

E meus pais não percebem isso.

 

Adeus! Direi ao belo aljofre.

Patrão inclemente;

Faz chorar quem sofre,

A dor da saudade de quem sente.

 

Adeus  direi aos abrolhos

As flores que  os campos povoaram.

Por elas chorarão os meus olhos,

Estas belezas de mim tomaram.

 

Deus! Tire de mim está mágoa,

Por ela ainda estar novinha.

De meus olhos escorrem água,

Triste sina é a minha.

 

Adeus salamandra,

De olhos  tão  mesquinhos.

Meu caminho é cheio de pedras,

Meu coração ferido por espinhos.

 

No outono a árvore desfolha,

Sobre a terra e resvala,

E repousa distante a folha

Sem que ninguém vá perturbá-la

 

Aparência  feliz e  risonha,

Felicidade no peito, nunca.

O coração sonha

Em    eterna busca.

 

Bem aventurada corrida

De uma folha ao sabor do vento.

Folha livre e perdida,

Sem se preocupar com o tempo.

 

Lentamente sangra a minha mágoa

Seja lá por onde  eu for

Adeus cristalinas águas, 

Levo comigo apenas dor.

           

            Os primeiros raios de sol beijam a terra molhada pelo sereno da  madrugada  e a vida desperta na  fazenda.  Nas chaminés das casas  espirais de fumaça dispersam-se suavemente e o aroma do café exala pelo ar, os vaqueiros param a ordenha por alguns  instantes  e  saboreiam  rapidamente o desjejum e retornam  a lida campeira.  Rosalina acompanha esta rotinha desde o seu nascimento e uma tristeza  mansa invade o seu coração ao pensar que terá que partir. Ela  não sente a dureza da vida porque não conhece outra forma de  se viver. Lágrimas silenciosas escorrem de seus olhos ao imaginar a nova  vida  talvez em um cortiço na cidade, tudo que lhe é  familiar será deixado, o ressonar manso das águas do rio, a paineira velha, o cheiro da terra molhada, os animais da fazenda. Abraçada ao   velho e troteador Canarinho, soluça baixinho. Ele  ficará sozinho e esquecido a vagar pelos campos como que a procurá-la para as tradicionais cavalgadas de final de tarde. Ele é um animal inteligente; apesar de  não falar,  entende a linguagem dos sentimentos e vai sofrer com a sua partida e urge que ela saiba dizer as palavras certas na hora do adeus. Ele conhece todos os seus medos, segredos  e sonhos. Sempre que sente   o coração apertado e precisa desabafar, ela o procura  e  em um tom baixo e suave,  conta-lhe as dores de sua  alma jovem. As mazelas de uma criança da zona rural,  aos olhos dos adultos são pueris e na melhor das hipóteses ignoradas,   porque na maioria das vezes são motivo de deboche e recordadas sempre como a afirmar a superioridade dos mais velhos sobre os mais novos, mas  com  o cavalo é diferente, ele espeta as orelhas, às vezes relincha enquanto  ela confidencia-lhe as suas mágoas e  também as perguntas típicas da primeira infância. A labuta do campo é árdua e ninguém  tem tempo para   explicar a uma menina curiosa porque as cobras trocam de pele e o jacaré não, porque as cigarras cantam  somente na primavera e os sapos coaxam a noite.   Ela só deseja saber o porquê  das coisas da natureza  e ninguém tem tempo para ouvi-la.  O campolina é um bom ouvinte,  ele a escuta, é um cavalo sabido e deve ter alma como as pessoas e há de ir para o céu quando morrer e lá, eles irão se reencontrar.  Viverão  um tempo separados e  o abandono  o fará partir  mais cedo. Ela já percebe em seu olhar manso e tímido, vestígios de saudades. – Ele sofre como eu. Suspira a  jovem!

            Enquanto se refresca nas águas límpidas do  Araguaia, Rosalina observa os voos rasantes das garças e suas infalíveis  estratégias de pesca. Ah! Se ela fosse uma  ave, voaria livre pelo cerrado goiano, escolheria  uma árvore bem bonita para construir  o seu ninho  fá-lo-ia no galho mais alto para melhor observar a beleza   da  natureza e fora do alcance dos bodoques dos meninos malvados da cidade que, quando passam as férias na fazenda do pai,  atiram pedras nas  pobrezinhas pelo prazer de vê-las cair. Parece que estas crianças cruéis  desconhecem o valor destas criaturas de Deus. Rosalina  desconhece  a função   de cada vida na natureza, porém, acredita veemente, que se foi criada por Deus, é porque é necessária na harmonia do todo,  e até ela que tem uma visão de mundo restrita,  que resume- se  ao cerrado, lavouras e o rio Araguaia que sacia a sede e a fome  das populações ribeirinhas, sabe  que não se  deve matar por matar. – Ah! Se um pássaro fosse,   a cada aurora, cantaria belas canções e despertaria  os animais com o  seu lindo trinado, depois, observá-los-ia, um a um,  no momento em que fossem beber  água. Qual seria o primeiro? A onça? O tamanduá- bandeira?  O Lobo? O veado – campeiro? O ouriço - cacheiro?   Lá das alturas, nas copas das árvores ela estaria protegida e não seria atingida pelos espinhos do ouriço, caso ele se enfurecesse. Até o vaqueiro mais valente  já correu do bicho, ele é perigoso;  felizmente, ela nunca topou com ele. E este risco, ela não correrá mais, doravante, serão outros perigos, que talvez, nem sua  mãe saberá  orientá-la porque a matriarca da família conhece pouco a vida na cidade. – “Felizes são os pássaros  porque não estão subordinados às vontades do  patrão e não são obrigados a partir,  abandonar a terra amada, a doce rotina     do nascer ao pôr do sol, em contato direto com os animais, as plantas e principalmente, com as águas calmas do  Araguaia. Suspira apreensiva!”

            Rosalina não sabe quando vai partir, tudo depende da vontade do patrão e em meio à incerteza,  seu olhar repousa sob tudo que ela ama e que sempre fez parte de sua história e deseja reter estas imagens vivas para quando distante estiver e não puder  controlar a dor da saudade,  resgatará do fundo de seu coração, a beleza do céu azul anil, por onde vagueiam sem destino nuvens brancas e  neste mesmo céu, em noite  de lua nova,  infinitos pontos de luz brilham enquanto na terra, um vaga-lume solitário  desperta os animais da noite.  Quais serão os sons noturnos  na cidade? Os sons da noite na zona rural são bonitos!  O pio da coruja, o uivo do lobo, o miado da onça, o cantar dos grilos, os coaxarem dos sapos, o murmúrio do rio. Tudo precisa ficar registrado: a beleza das flores silvestres, as infinitas tonalidades das plantações durante a colheita, os cheiros e sabores dos frutos do cerrado, as formas, cores e vozes dos animais domésticos e do suave despertar ao som do canto da seriema.  Tanto amor há em seu coração por esta terra que não é sua, mas este detalhe não a impede de amá-la. Um amor tão forte e profundo que Rosalina não sabe se conseguirá viver quando for arrancada de seu pedaço de  chão. Poderá morrer de uma morte lenta e dolorida!  -“Qual dor é mais intensa, a da morte ou a da saudade?” Ela se pergunta.

            O amor está presente  em todas as atividades do campo. Na labuta  do camponês que ara a terra, semeia, cuida e colhe os  frutos de seu trabalho e entrega-os ao patrão  com o coração aliviado pelo dever cumprido. Na lida do vaqueiro no curral e nos campos, cuidando e protegendo o gado das  doenças e dos predadores naturais; eles amam os animais  como se fossem seus. As mulheres dispensam cuidados  excessivos às aves domésticas e  também aos cachorros, dois vira latas que vivem soltos no terreiro e dão alarme com a proximidade da visita de  alguma raposa  faminta e com gana de atacar  uma galinha gorda, o que nunca acontece porque as casinhas  dos cães foram construídas em  pontos estratégicos  nas proximidades do galinheiro.  Com igual cuidado, são tratados, pelos homens, os cinco cachorros boiadeiros, féis companheiros dos peões durante a rotina diária e à noite ainda ficam  de guarda do rebanho, sempre há a possibilidade de um algum filhote ser atacado por uma onça, é a lei da natureza, mas o patrão não entende e zanga-se  quando isto acontece, acusa-os de descuido e ameaça descontar no salário deles o prejuízo. Imenso  amor há na generosidade das flores que oferecem seu néctar aos beija-flores, abelhas e borboletas coloridas; nas árvores que oferecem sombra fresca aos viajantes cansados e moradia aos pássaros e insetos, no vento que leva as sementes para germinarem  distante, nas folhas  secas que não lamentam a própria morte porque  sabem que irão fertilizar o solo para que outras vidas possam florescer. Infinito é  o amor do caudaloso Araguaia que abriga diferentes formas de vida e  mata a sede dos animas e das pessoas. Aquecer a terra é a maneira  com que o  sol demonstra o seu amor,  assim como a chuva que cai e por amor e gratidão a terra  floresce e a vida renasce em todo o seu esplendor. Éh! o amor permeia a vida  rural e nas cidades? Rosalina teme que seja diferente!

            É agosto!  O vento sopra forte e levam com ele  as folhas das árvores que irão parar no Araguaia, e   flutuando sob as águas cantantes chegarão ao mar e no marulhar das ondas salgadas em alguma praia distante irão repousar. Assim como as folhas, Rosalina também irá   para longe e já sente a dor da saudade. Na fazenda existe uma gruta de pedra com uma imagem de Nossa Senhora de Sant’Ana, os olhos da santa são acolhedores e doces como o olhar das mães e quem sabe, ela ouvirá as preces ingênuas de Rosalina que suplica por um milagre.  O olhar meigo da imagem transmite força, bondade e esperança, existe  a possibilidade de que  seja atendida; ela já ouviu tantos relatos de graças alcançadas por intermédio da Padroeira, como o caso do  Pedrinho, acometido de uma febre que não passava nunca;  desesperada, a mãe do menino dobrou os  joelhos, no chão batido diante da Virgem e  teve  uma conversa de mãe para mãe com Sant”Ana, e em menos de dois dias, o moleque já estava na lida com o pai.   Trêmula, olhos lacrimejantes e fixos  no semblante da  pequena escultura de barro,  Rosalina esforça-se para acreditar que não entendeu direito a conversa dos  adultos e que a tristeza estampada nos olhos deles é pela falta de chuvas que  está judiando da  plantação e do gado. Pode ser isto,  e um fio de esperança surge  e sua alma rejubila-se. Quem abandona o sertão goiano, sente saudade.  A filha do Seu João, casou-se e foi morar em Fortaleza, apenas uma légua da praia e  na carta que  escreveu à sua mãe, comentou sobre a  imensidão  do mar. Que importa  se o Araguaia e seus afluentes cabem dentro do mar e ainda sobra espaço para os outros rios? Que importa se nas cidades grandes  há postes com  lâmpadas que clareiam a cidade quando a noite cai? Aqui ela tem um céu estrelado em noites de lua nova, e na terra, centenas de vaga-lumes que nunca cansam de piscar;  em noites de lua cheia a  luminosidade dos raios do luar  afastam a escuridão da noite e tudo parece mágico. É uma lindeza  e aqui é o seu lugar ela  não cansa de repetir.

            O vento do sul trouxe nuvens escuras  e a água caiu generosamente sobre a terra, os lavradores não esperavam por esta benção  e estão felizes. Canarinho, o velho cavalo relincha no pasto, depois, abaixa a cabeça e continua a saborear o capim fresco. As cores estão mais vivas e os pássaros cantam alegres,  parece que a natureza está em festa, mas o  coração de Rosalina pulsa triste porque ouviu rumores  de que o patrão  quer vender o  animal para o circo que está na cidade, com certeza para alimentar os leões e tigres. É uma maldade sem fim, depois de tantos anos de serviços prestados sob sol ardente e chuvas torrenciais, puxando  charrete e arado,  ser entregue às feras, é uma injustiça. Ele merece viver livre pelos campos até  o dia de sua morte e no ciclo  da natureza,  alimentar os urubus, sempre foi assim;  quando morre um animal, doméstico ou selvagem, não se faz enterro, fica a cargo destas aves desaparecerem com o cadáver, razão pela qual os urubus são respeitados pelos sertanejos e são chamados de faxineiros  do sertão.  Imaginar a possibilidade de o  cavalo ser jogado  em uma jaula para ser devorado pelas feras faz Rosalina chorar copiosamente. Ela imagina o pavor  nos olhos calmos do Canarinho, frente a frente com um tigre ansioso para saborear a sua carne.  Ela é uma sertaneja e conhece  empiricamente a cadeia alimentar e sabe que diante de um bicho carnívoro faminto, um herbívoro não tem chance nenhuma de sobreviver. Mediante a  vontade do proprietário, ela também nada poderá fazer, é apenas uma criança, nascida e criada em  uma fazenda que não pertence a sua família, são trabalhadores  assalariados que molham a terra com o suor de seus rostos para entregar o fruto  de seu labor ao fazendeiro.

            A dor que Rosalina sente é tão grande, é como se  alguém enfiasse  uma faca afiada em seu coração bem divagar, o  sangue jorrando  em abundância, mas  a vida recusando a  partir. Ela pensa que seria melhor morrer, somente assim, poria fim ao seu sofrimento. Em um lapso de lucidez, pensa em procurar a benzedeira Maria das Dores. Uma vez ela foi levada pela mãe à  Senhora e após umas orações, sinal da cruz, o quebranto desapareceu   e ela voltou a brincar alegre pelo terreiro e a não rejeitar nenhum tipo de alimento para a tranqüilidade de seus pais e irmãos mais velhos. As lembranças daquela visita vão ganhando formas em sua mente: uma  pequena casa de pau a pique que fica na curva do rio próximo ao  jacarandá, onde a Idosa  faz as suas benzeduras  e  receita as melhores ervas para o caso. Terá ela um chá  ou reza para abrandar a dor da separação e da saudade?  A menina não sabe, e é ciente de que não poderá atravessar o Araguaia  sozinha para ir em busca de um alívio para a  angústia de sua alma. Rosalina sofre e espera um milagre!

            Abraçada à velha paineira, Rosalina  contempla as últimas estrelas e os primeiros raios da aurora. O dia começa com um triste presságio. Ela quer falar, mas   falta-lhe palavras para dizer à árvore que não  é uma ingrata e que  não deseja partir, está sendo expulsa. Os soluços  impedem-na de falar do  tamanho de sua gratidão pela  generosidade de sua sombra, de suas painas, do conforto  que é todas as noites, deitar em uma cama quentinha e descansar a cabeça em um travesseiro macio feito com as suas painas que anualmente são lançadas ao vento cobrindo de branco o chão.  Quisera ela ter braços grandes, enormes, para que pudesse abraçar todas as plantas. No sertão, as crianças aprendem deste a mais tenra idade que não é possível viver sem as árvores. Às vésperas de seu nascimento, as mãos fortes  e habilidosas de seu pai construíram  o seu berço com madeira de lei, e  desde os tempos antigos, galhos secos são utilizados no fogão à lenha para cozinhar os alimentos e aquecer os casebres  no inverno; dos troncos são construídas as canoas  e quando alguém morre, os homens saem em busca de madeira para construir o caixão. Várias espécies  dão frutos que alimentam as pessoas, as aves e  alguns animais. Ao longe, as águas cantantes do Araguaia reclamam a sua presença, mas falta-lhe forças para caminhar até a margem, pontear a viola caipira  e improvisar  versos de amor e despedida ao rio, banhar-se  pela última vez em suas águas transparentes. Pudera esta correnteza levar para   longe  a tristeza que  invade a sua alma. É impossível! Nada poderá arrancar de seu peito a dor da separação.  Rosalina teme que em sua nova casa  não possa ver  a estrela vespertina  brilhar ao anunciar a chegada da noite e a lua cheia surgir  no horizonte. As imagens  e os sons serão outros e não haverá esta sensação de pertencimento, se sentir-se parte de um todo. Deixar a vida integrada à natureza assusta  a menina e ela observa todos os detalhes para que fiquem registrado em seu coração. Deste  paraíso, ela poderá levar apenas lembranças, sua mãe  avisou-a que ao partir, serão revistados pelo capataz por ordem do patrão.    Rosalina conversa com a paineira velha. - Eu invejo tuas raízes profundas que não lhes permite fugir para  terras distantes e misteriosas. Eu desejo ser os teus galhos fortes que parecem almejar chegar  as nuvens, mas se resignam e rejubilam quando os pássaros   neles constroem os seus ninhos e criam seus filhotes, e nestes mesmos galhos, descansam e encantam o cerrado com  os seus gorjeios variados.  Ah! Eu seria feliz se fosse uma de suas floradas brancas que atrai  borboleta monarca. Breve seria a temporada de minha beleza, mas eu seria útil, por ter alimentado  centenas de pequenas vidas, e  depois, seguindo a mágica da natureza,  quando as flores caíssem ao chão, os frutos nasceriam, e quando maduros  e a casca abrisse, painas  leves e delicadas bailariam ao sabor dos ventos lançando sementes que germinariam  nas proximidades e novas  paineiras cresceriam enraizadas no sertão goiano. Nem mesmo quando um machado ferisse meu tronco para construir uma canoa eu não sentiria tristeza porque as canoas são úteis aos ribeirinhos e feliz estaria ao  flutuar  sob as águas serenas do Araguaia. Adeus paineira velha! Agradeço por estas painas, delas farei um travesseiro e todas as noites,  abraçada a ele chorarei baixinho  de saudades do tempo em que eu era feliz vivendo livre no cerrado. Eu não estou indo em busca de minha felicidade, feliz aqui eu fui, sou e seria se assim fosse permitido.  Eu sou uma criança vulnerável, sem poder de argumentação e sem nenhuma utilidade para o patrão, que já  não precisa dos braços fortes de  meus pais  na lida diária. Quem sou eu? Uma boca a mais  a ser alimentada  por pais desempregados!

É  a última noite de Rosalina na fazenda e ela  aprecia a  beleza do pôr do sol, com a branda luminosidade que realça as tonalidades das cores em contrastes com as nuvens brancas. É a hora mágica em que é possível observar  os tons de amarelo, vermelho e  lilás que colorem o azul celeste e  na terra,  o verde  da paisagem vai desaparecendo e a escuridão da noite cai sob a terra. O ar está parado  e quente,   o velho cavalo Canarinho relincha distante.  – Adeus meu companheiro de cavalgadas. Adeus rio Araguaia. Adeus   paineira velha. Amanhã,  antes da alvorada dos passarinhos e do cantar do galo  partiremos  em direção de um futuro incerto. Eu, a filha do   vaqueiro mais respeitado da região, serei apenas a filha   de um desempregado, assustado e acuado  longe do seu torrão natal. Terra Amada,  adeus!

 

 

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Morcego amigo

 

         Apesar do desconforto da viagem de ônibus e do sofrimento decorrente da perda de sua mãe, a pequena Rosalina conseguiu dormir. Horas depois, despertou com um raio de luz batendo em cheio em seu rosto. Olhou pela janela  e avistou uma paisagem rural  onde  pastava gado nelore, com uma brancura que contrastava com o verde  dos campos.  As árvores retorcidas, típicas do cerrado mineiro chamaram a sua atenção, vez ou outra, cruzavam com charretes e carros de boi, meios de transportes até então desconhecidos  dela, desejou saber mais, mas faltava-lhe coragem para  perguntar à   assistente social que a acompanhava, uma mulher séria e   de poucas palavras que  sempre respondia a mesma coisa, não importava qual fosse o questionamento: -  Não se preocupe, tudo vai ficar bem, parecia um robô programado para repetir sempre a mesma frase. –  o que  a entristecia, pois acreditava que nunca  mais  poderia ser feliz, sua mãe saiu para trabalhar e  não voltou. Os vizinhos  chamaram  a polícia  e agora, ela seria entregue aos avós maternos, que não conhecia, e não sabia  o motivo pelo qual nunca fora visitá-los. Sempre que  demonstra interesse em conhecer os familiares, a resposta da mãe, era sempre a mesma: -  Eu sou a sua família, você é a minha família, a luz da minha vida  e mudava de assunto.

Ás doze horas em ponto,  o ônibus estacionou na plataforma de desembarque do terminal rodoviário e o motorista anunciou em voz alta   o término da viagem.   Desceram e enquanto esperavam a bagagem, um rapaz  de pele queimada pelo sol, com roupas bem gastas, chapéu de palha, e um chicote  de couro   sete tiras trançado,  nas mãos aproximou-se.

- Venho pela menina, a mando do  patrão, as levarei em casa.

-  Eu não  irei, disse a assistente social e  com uma expressão séria  no rosto completou: - esta é a bagagem da criança,  tenha cuidado pois os documentos da guarda  judicial estão aí. Disse  dirigindo-se ao jovem. Voltou-se então para Rosalina e repetiu  a sua frase preferida: - Não se preocupe tudo vai ficar bem.  

          Rosalina e o rapaz seguiram de charrete para a fazenda de seus avós, nem uma palavra foi pronunciada durante o trajeto; enquanto conduzia  o veículo, o jovem assoviava   músicas regionais,   parecia indiferente a sua presença, vez ou outra os cavalos assustavam com algum animal silvestre, e se não fosse  pelos bons reflexos do condutor, ela teria sido atirada longe várias vezes.  A estrada era de terra e os solavancos,  a  deixava enjoada e com o corpo dolorido.  Foram recebidos pelo avô que a olhou bem e disse – então, você é a minha neta! Deve estar com fome, venha, na cozinha,  um copo de leite e biscoitos de queijo  esperam por você. Assim que terminar de comer, vá para o seu quarto, a primeira porta a direita, e fique lá até a sua  avó chegar.

           O quarto era simples, uma cama, um guarda-roupa de duas portas e na parede, um quadro com a foto de sua mãe, ainda jovem. Rosalina estava triste e  sozinha. - Nunca mais verei a minha mãe,   o policial disse que  poderá demorar muito até ela ser encontrada. Para eu ser paciente, esperar e confiar na Polícia. Estou com muito medo. Pegou o celular  para  conversar  com a sua amiga Arsu, a  filha da vizinha. Não havia sinal.  Enquanto as lágrimas umedeciam o travesseiro de paina, o sono cerrou os seus olhos e ela  adormeceu. – Acorda  pequena. Vamos preparar o jantar, já é tarde e seu avô vai chegar com fome. Rosalina  despertou assustada e viu à sua frente, uma simpática senhora de cabelos brancos, presos em coque na nuca que, sem dizer mais nada, a pegou pela mão e dirigiram-se à  cozinha.

          Ao contrário das avós de suas amigas,  a sua,  não demonstrou alegria ao conhecê-la, nem lhe perguntou  se estava com fome, o queria comer. Apenas dava ordens que ela não ousou questionar. Com uma voz suave,  paciência  e didática das professoras da  pré-escola, dizia-lhe o que fazer e como executar a tarefa. – Pequena,   hoje vamos preparar apenas arroz com pequi. Primeiro temos que acender o fogo, a lenha está na varanda, vamos buscá-la. É preciso controlar as chamas, este é o segredo  para a comida não queimar.  Rosalina observa tudo com atenção. Era a  primeira vez que via madeira queimar e as labaredas a encantava. Tudo era diferente, os alimentos, a maneira de prepará-los,  porém, ela nada questionava, apenas seguia as orientações da avó, estava como que anestesiada, em virtudes dos últimos acontecimentos. -Esta receita não é difícil, primeiros fritamos o alho e a cebola, na banha, depois acrescentamos o açafrão da terra, para realçar a cor do fruto, depois acrescentamos o arroz, refogamos um pouco, colocamos o pequi e o sal, misturamos bem, depois é só cobrir com água  e deixar cozinhar. Não há segredo, finalizou a anciã,  que continuou a trabalhar em silêncio.  O amarelo ouro do  pequi e o seu forte aroma que se espalhou pela casa   abriu o apetite da menina, que ansiava pelo momento de  degustá-lo. Todos à mesa, o alerta sobre a peculiaridade do fruto veio da parte do sisudo avô. -  Atenção! No caroço, debaixo da polpa, há  centenas de minúsculos espinhos, que podem causar ferimentos à língua e aos lábios. É necessário extremo cuidado. Não pode morder o fruto, mas roê-lo,   disse-lhe  o ancião.  O sabor peculiar e característico, a polpa  macia e saborosa cativam o paladar de Rosalina, que esqueceu o medo dos espinhos e entregou-se ao prazer de desfrutar  da gastronomia local.

           A primeira noite de Rosalina na fazenda coincidiu com a lua nova e mais  estrelas reluziam no céu, o espetáculo de luz celestial formava um belo contraste com o escuridão que  cobria  a terra. Mas ela não pôde   apreciá-lo porque a avó fechou a janela, depois, apagou  a lamparina e saiu do quarto sem dizer-lhe boa noite.  Sentia falta de sua mãe! – Onde estará? O que aconteceu? Por que ninguém responde as minhas  perguntas? Refletia.  Fazia calor e ela  abriu a janela, uma  brisa leve  acariciou-lhe o rosto.  Era tarde e seus olhos teimavam em permanecerem abertos, sem celular, televisão e ninguém para conversar,  sua atenção voltou-se para os ruídos noturnos comuns  na natureza, porém, desconhecidos  para  as crianças urbanas; em poucos minutos adormeceu.

           Rosalina acordou assustada com  o voo rasante  de uma criatura  que a escuridão da noite não lhe  permitia ver. Sentiu medo.  Não tinha como  acender a lamparina porque a caixa de fósforo estava na cozinha e faltava-lhe a coragem necessária para ir buscá-la. Prestou atenção. Nenhum ruído vinha do quarto dos avós, o silêncio  só era quebrado pelo  farfalhar de asas da invasora? - Seria uma bruxa? Não, não é uma bruxa, mamãe sempre disse que as bruxas só existem nos livros de contos de fadas. Será um vampiro?  Acho que não, eles só existem nos filmes. Posso  gritar por socorro, mas o que meus avós pensarão de mim? Já  completei oito anos, eles irão zombar de mim.  O que farei?  Antes mesmo de chegar a uma conclusão, Rosalina percebeu o movimento de  vários seres alados entrando e saindo pela janela. Pulou da cama e tateando, encontrou  o guarda-roupa, entrou, fechou a porta e acomodou-se  o melhor que pode. O sono venceu o medo e o cansaço e ela enfim, pode repousar tranquila.

          Antes que o primeiro raio de sol brilhasse no horizonte, despertou.  Ao longe se ouvia o cantar dos galos e o mugido do gado no curral, que se misturavam a outras vozes de animais,   desconhecidas para ela. Esfregou os olhos  para espantar o sono. Não recordava bem porque estava dentro do guarda-roupa, e não em sua cama, pairou o uma dúvida: -  Eu sonhei ou de fato havia criaturas aladas que emitiam sons estranhos  no quarto? Antes que a pequena chegasse a uma conclusão, a avó entrou no quarto e lhe entregou  um copo de alumínio e disse – Vá até o curral, entregue  ao seu avó que está ordenhando as vacas, volte rápido, vamos fazer pão de queijo com pequi. 

          - Fazer pão de queijo é simples, misture o polvilho e o sal na gamela. Coloque o leite, a água e a banha de  porco  para ferver. Quando levantar fervura, escalde o polvilho, mexa com uma colher, e espere esfriar, acrescente os ovos, a polpa de pequi e sove, por fim, junte o queijo misture bem, enrole os pães e pronto, é só assar. Rosalina não prestou atenção nas palavras da avó, os seres alados ocupavam  os seus pensamentos, na casa, tudo parecia estranhamente normal. Todos  executavam suas tarefas em silêncio,  e ela ajudada com as atividades  compatíveis  com a  sua idade,  Enquanto trabalhava, Rosalina  arquitetava um plano para desmascarar os invasores. Aproveitou um momento de distração de todos e  escondeu em seu quarto, uma vassoura e uma caixa de fósforo.

          Na segunda noite, a  avó seguiu o mesmo ritual: colocou  Rosalina na casa, fechou a janela, apagou a lamparina, e silenciosamente, recolheu aos seus aposentos.  Rosalina levantou com cuidado para não fazer ruído, abriu a janela, deixou  as armas  ao alcance de suas mãos  e  dormiu.  O  som do farfalhar de asas  a despertou. Corajosamente acendeu a lamparina,   atacou os pequenos seres negros, que voavam em zigue-zague pelo quarto na tentativa de escapar da  luz e das vassouradas. O barulho acordou os avós que foram em seu auxílio.  Ao deparar com a cena hilária, não riram, nem brigaram. A  senhora, direcionou o  facho de luz da lanterna para o telhado para expulsar os mamíferos voadores, que não apreciam a claridade. O sisudo senhor, colocou  a  neta no colo e com voz calma e amorosa disse: – Não tenhas medo, pequena, são apenas morcegos. Eles entraram porque a janela  estava aberta. Eles são seres crepusculares e noturnos, daí  a razão porque fechamos as janelas ao  entardecer. Não podemos matá-los. Eles  tem funções importantes  na natureza.  Se não fosse pelo trabalho deles, ontem você não teria  degustado uma iguaria deliciosa, o pequi, porque eles são os seus principais polinizadores. À noite, a  flor do pequizeiro exala  um cheiro que  os atrai. Buscam-na porque há  uma recompensa esperando por eles, o néctar. É  uma relação simbiótica e mutuamente vantajosa. Lembre-se pequena, o homem precisa do morcego, o morcego não precisa do homem.  Agora durma, amanhã conversaremos mais.

          Após  a sesta,  o avô convidou a neta para conhecer a propriedade.  E o que, no entendimento de Rosalina, seria apenas um passeio, foi na realidade,  uma  riquíssima aula de biologia.  O amplo conhecimento sobre plantas e animais encantou a pequena,  descortinou-lhe um outro universo em sua mente. À sombra do pequizeiro, sentaram para descansar e se alimentarem. O lanche preparado pela avó estava delicioso; saciaram a sede  com a água fresca de um pequeno riacho.           A safra do pequi estava chegando ao fim, restavam apenas alguns frutos  verdes nos galhos e  outros maduros, espalhados  pelo chão  à espera de serem  recolhidos. Rosalina observa tudo com atenção e desejou que sua mãe estivesse com ela,  ouvindo os sons do cerrado. Era pura magia! A voz do avô, a   despertou de seu devaneio e com a sua fala doce e sonora, retomou o assunto   dos morcegos, que têm importante papel na manutenção e equilíbrio dos  ecossistemas, enfatizava. Ciente de que a neta  não tinha nenhum conhecimento das  peculiaridades das espécies, discorreu  sobre as mais comuns no Brasil: os frugívoras, que se alimentam de frutos e são dispersores de sementes. Os insetívoros, que se alimentam de insetos, e controlam as pragas das lavouras e por último, falou  sobre os nectarívoras, que se alimentam de néctar e pólen, e desta forma, realizavam a polinização de diversas espécies de flores, inclusive  a do pequizeiro. Finalizou a explanação, contando algumas curiosidades  sobre os  mamíferos voadores, entre elas, que a mamãe-morcego cuidam bem de seus filhotes e quando sai para se alimentar, deixa-o  dependurado no teto da gruta, junto aos outros bebês. Quando retorna, emite um som que é  reconhecido pelo morceguinho, que responde ao chamado.

          Deslumbrada com a sabedoria do ancião, Rosalina  demonstrou interesse em conhecer o local onde vivem os morcegos. Em silêncio, o avô a pegou pela mão e  se embrenharam no  cerrado em direção a gruta onde vivia  uma colônia.  Caminharam em um ritmo lento, as árvores retorcidas  características do bioma, os protegia do sol escaldante; Diante de centenas de mamíferos voadores, Rosalina não sentiu medo, sabia que se eles não se sentissem acuados,  nenhum mal  lhe sucederia. Aprendera com o avô, que é preciso viver em  harmonia com todos os seres vivos, sejam vegetais ou animais.

          Cada amanhecer na fazenda, era prenúncio de um novo aprendizado e Rosalina, observava cada detalhe, esforçando-se para memorizar tudo. Embora sentisse falta da mãe, poderia dizer que era feliz. Particularmente naquele fatídico  domingo, ela estava bem animada,  toda família iria à cidade participar das comemorações da  festa de São Pedro, o padroeiro da região. Partiram de charrete, por uma estrada de  terra, a poeira  levantada pelos carros que passavam prejudicava a visibilidade.

          Rosalina  despertou em um quarto de hospital,  um  homem  que aparentava no máximo quarenta anos e que segurava a sua mão sorriu feliz.

- Que bom que você acordou!  Estava muito preocupado. Eu sou o seu pai, e estou muito feliz  por tê-la encontrado, minha filha querida. Agora você vai morar comigo.  Vai ter um quarto só seu e muitos brinquedos, estudará em um bom colégio, fará novos amigos,  conviverá com os  seus primos e tios.   - Onde estão os meus avós e a minha mãe? Indagou assustada e com uma expressão de tristeza no rosto. Sério, ele respondeu: -  Eles não sobreviveram ao acidente, no dia da festa, e quanto a sua mãe,  ela não voltou para casa porque fora atropelada por um ônibus e faleceu no hospital.  Mas não se preocupe tudo vai ficar bem! 

          Rosalina não pode conter as lágrimas, perdera todas as pessoas que amava e confiava. Primeiro foi à mãe, agora os avós. Teria que partir novamente, e sem despedidas.  A ideia de frequentar uma boa escola lhe agradou. – Estudarei muito, e trabalharei  para a proteção dos morcegos, esta vai ser a minha missão de vida. Serei tão sábia e atuante quanto o meu avô!

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Tristeza

                 Meu coração está tão nublado quanto este dois de dezembro de 2021 e existe uma razão para isso. Sou uma pessoa de planejamento, e planejamento em longo prazo, como toda pessoa  pobre porque para conseguirmos uma coisa, precisamos abrir mão de outra. Já no primeiro dia do mês, enviei uma mensagem a uma amiga, convidando-a para passar o   natal ou a virada do ano comigo e hoje chegou a resposta, ela não virá.

            Para  algumas pessoas, uma resposta negativa, nestas circunstâncias seria  um alívio, uma pessoa a menos para comer e sujar louça,  mas para mim,  a recusa abriu uma ferida  antiga. Na infância, sonhei participar de comemoração natalina,  vivia com minha família, ou seja, tinha pessoas à minha volta, mas não havia o costume de comidas  típicas de natal, nem de ir à missa do galo. Às vésperas da chegada do Menino Deus ao mundo, antes de dormir apenas rezava o terço e no dia 25 de dezembro, o almoço do domingo tradicional, ou seja, havia carne à mesa.  Já na fase laboral, quando eu tinha dinheiro,  não tinha tempo pois estava na escala de trabalho e  quando tinha tempo, não havia dinheiro.

            Hoje as coisas mudaram, tenho todo o tempo do mundo para festejar,  dinheiro para uma comemoração simples, sem requinte, mas falta o mais importante:  pessoas para celebrar.  Na ânsia de ganhar à vida, de viver o sonho de  ser o primeiro, o melhor, não fortaleci laços de amizades, não constitui família e perdi o vínculo a minha família original. Tudo passou: o trabalho, os namoros, as amizades superficiais e fique só, profundamente só.

 

Se  algum leitor  também não tem com quem celebrar as benções recebidas em 2021, deixe o  seu comentário e se possível, uma sugestão  para amenizar a solidão da velhice.

João Francisco.