segunda-feira, 22 de junho de 2020

Diário do isolamento social - 97º dia

                                  Assim que a quarentena foi anunciada, um misto  de medo e alegria apossou-se de mim. A possibilidade de dar uma pausa  no convívio exaustivo com  colegas  e estranhos em atividades  recreativas e culturais parecia ser  agradável e em anexo  vinha o medo do que estava por vir, a incerteza de quanto tempo teríamos que permanecer em isolamento e como  o país iria  conseguir alimentar seus filhos. Mas já estou em meu 97º dia de reclusão e  confesso que tenho feito malabarismo para encontrar formas de distração para fugir da realidade e já tentei varias coisas, a começar pelo diário, leitura, curso de inglês, séries na TV, limpeza de armários e gavetas, descansando de não fazer nada e torcendo pelo melhor para a nação.
            Evito sair e acompanho a vida lá fora pela janela e já ví muitas coisas: panelaços contra o presidente  e bem ruidosos por sinal e também presenciei discretas homenagens aos profissionais de saúde, que eram ovacionados  no início da  pandemia mas com o decorrer dos dias o seu valor já caiu no esquecimento. Também presenciei os primeiros ataques de limpeza e  acredite, homens limpando as janelas e dependurando roupas nos varais.  Uma raridade!  E  com tanto tempo ocioso, fico a observar os  pássaros que pousam nos fios elétricos  e  após tantos anos  residindo neste local, somente agora, consegui desfrutar da  magia  que é o canto dos pássaros e isso, graças  ao Coronavírus que parou o mundo e com menos carros na avenida outros sons  deliciam os meus ouvidos  torturados pelos escapamentos das motos e cantar de pneus.Também não passou despercebido, os carros que  estacionam no ponto de ônibus lá pelas 20 horas. Casa dia um e lá permanece por uns 40 minutos, parece que há uma escala. Fico intrigada! Será que são namorados aproveitando a falta de iluminação do local para trocar salivas? Vai saber!
            Em mais de  três meses de quarentena, devo ter saído  somente umas dez vezes e por extrema necessidade: supermercado e farmácia. Infelizmente terei que enfrentar  o medo e fazer uma visita ao dentista, estou sentindo que o meu implante está  frouxo e espero que precise apenas de ser apertado e que não tenha mais problemas, acho muito arriscado fazer tratamento odontológico em plena  pandemia; o dentista  usa máscara, luvas e touca, mas eu não  confio em 100% de proteção.
            Neste período  o contato que tive com as pessoas está reduzido  aos  atendentes  e caixas de mercado e farmácia. Quando saio á rua, vou de lenço, máscara e  ando em zig zag para  manter a distância recomendada  e por prudência, espero a hora da novela para colocar o lixo lá fora, assim evito o contato com  os vizinhos.  Gosto de  jogar conversa fora, mas no momento,   eu prefiro  manter monólogos comigo mesma a arriscar receber gotículas de salivas alheias  e tenho observado a vizinhança quando  vão varrer a calçada, passear com o cão  o fazem, na maioria das vezes, sem máscaras. Não nego que estou entediada. Tenho muito  trabalho a fazer, mas a procrastinação está mais forte  que o desejo de realizar com primor as atividades propostas.
            Já cansei das live motivacionais e dos conselhos de como aproveitar a quarenta e já executei quase todos. Já organizei armários e gavetas, lavei e passei toda a roupa, lavei os azulejos da cozinha e banheiro umas três vezes;  limpei e organizei todos os sapatos, descartei sacolas  e sacolas de tranqueiras acumuladas no decorrer dos anos.  Comecei a estudar inglês, assisti inúmeros filmes séries, vídeos inúteis, porém divertidos, como os do Guri de Uruguaiana e Chico da Tiana e o que há de melhor a fazer que é saborear receitas novas está difícil porque sempre falta  um ingrediente e no final, sempre acabo no trivial simples de todo o dia, arroz, feijão, ovo e salada de alface com tomate e sem a tradicional batata frita para não subir o colesterol. Sempre é alface porque é a verdura que está sempre fresca, no varejão ao lado e eles tem entrega em domicílio.  
            Os conselhos  que afirmam que é preciso ser produtivo  e  tirar o melhor de cada segundo do confinamento é uma utopia porque  quando o tédio bate, é difícil de lidar com ele e  a esta altura, encontrar um ombro amigo para  chorar as pitangas é impossível,  a nação inteira está no mesmo barco, o que varia é a intensidade do tédio. E a mais triste constatação:  “ não estudo porque não tenho tempo” é apenas desculpa.  Em confinamento tenho tempo de sobra e falta atitude.  Chego a pensar que a vida realmente acontece é fora do nosso lar, em um concerto musical,  na academia do clube, nos restaurantes e na interação com as pessoas. Sempre é bom voltar para casa e jogar-se displicentemente no sofá, mas estar em casa quase cem dias é realmente um pesadelo.
            Para aliviar o meu tédio, acho que vou protestar toda vez que eu ver uma publicação aconselhando a  movimentar-se pela casa, dançar com a vassoura e fazer abdominais, flexões, vou sentar e tomar um  suco e  se por azar, deparar com um vídeo de mulheres ensinando a organizar armários eu vou deixar meu corpo cansado cair lentamente no sofá e cochilar até o horário da  próxima refeição e quem sabe, esta atitude de rebeldia ajudará  disseminar o tédio. Sonho com o dia em que poderei voltar a minha antiga rotina  e inventar desculpas esfarrapadas para as amigas quando estiver sem dinheiro para sair e  ficar solitária no sofá esperando o dia do pagamento da pensão para enfim, voltar a circular pelos espaços de lazer.



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