Assim que a quarentena foi
anunciada, um misto de medo e alegria
apossou-se de mim. A possibilidade de dar uma pausa no convívio exaustivo com colegas e estranhos em atividades recreativas e culturais parecia ser agradável e em anexo vinha o medo do que estava por vir, a
incerteza de quanto tempo teríamos que permanecer em isolamento e como o país iria
conseguir alimentar seus filhos. Mas já estou em meu 97º dia de reclusão
e confesso que tenho feito malabarismo
para encontrar formas de distração para fugir da realidade e já tentei varias
coisas, a começar pelo diário, leitura, curso de inglês, séries na TV, limpeza
de armários e gavetas, descansando de não fazer nada e torcendo pelo melhor
para a nação.
Evito sair e acompanho a vida lá
fora pela janela e já ví muitas coisas: panelaços contra o presidente e bem ruidosos por sinal e também presenciei
discretas homenagens aos profissionais de saúde, que eram ovacionados no início da
pandemia mas com o decorrer dos dias o seu valor já caiu no
esquecimento. Também presenciei os primeiros ataques de limpeza e acredite, homens limpando as janelas e
dependurando roupas nos varais. Uma
raridade! E com tanto tempo ocioso, fico a observar os pássaros que pousam nos fios elétricos e após
tantos anos residindo neste local,
somente agora, consegui desfrutar da
magia que é o canto dos pássaros
e isso, graças ao Coronavírus que parou
o mundo e com menos carros na avenida outros sons deliciam os meus ouvidos torturados pelos escapamentos das motos e
cantar de pneus.Também não passou despercebido, os carros que estacionam no ponto de ônibus lá pelas 20
horas. Casa dia um e lá permanece por uns 40 minutos, parece que há uma escala.
Fico intrigada! Será que são namorados aproveitando a falta de iluminação do
local para trocar salivas? Vai saber!
Em mais de três meses de quarentena, devo ter saído somente umas dez vezes e por extrema necessidade:
supermercado e farmácia. Infelizmente terei que enfrentar o medo e fazer uma visita ao dentista, estou
sentindo que o meu implante está frouxo e
espero que precise apenas de ser apertado e que não tenha mais problemas, acho
muito arriscado fazer tratamento odontológico em plena pandemia; o dentista usa máscara, luvas e touca, mas eu não confio em 100% de proteção.
Neste período o contato que tive com as pessoas está reduzido aos
atendentes e caixas de mercado e
farmácia. Quando saio á rua, vou de lenço, máscara e ando em zig zag para manter a distância recomendada e por prudência, espero a hora da novela para
colocar o lixo lá fora, assim evito o contato com os vizinhos. Gosto de
jogar conversa fora, mas no momento,
eu prefiro manter monólogos
comigo mesma a arriscar receber gotículas de salivas alheias e tenho observado a vizinhança quando vão varrer a calçada, passear com o cão o fazem, na maioria das vezes, sem máscaras. Não
nego que estou entediada. Tenho muito trabalho a fazer, mas a procrastinação está
mais forte que o desejo de realizar com
primor as atividades propostas.
Já cansei das live motivacionais e
dos conselhos de como aproveitar a quarenta e já executei quase todos. Já
organizei armários e gavetas, lavei e passei toda a roupa, lavei os azulejos da
cozinha e banheiro umas três vezes; limpei e organizei todos os sapatos, descartei
sacolas e sacolas de tranqueiras
acumuladas no decorrer dos anos. Comecei
a estudar inglês, assisti inúmeros filmes séries, vídeos inúteis, porém
divertidos, como os do Guri de Uruguaiana e Chico da Tiana e o que há de melhor
a fazer que é saborear receitas novas está difícil porque sempre falta um ingrediente e no final, sempre acabo no
trivial simples de todo o dia, arroz, feijão, ovo e salada de alface com tomate
e sem a tradicional batata frita para não subir o colesterol. Sempre é alface
porque é a verdura que está sempre fresca, no varejão ao lado e eles tem
entrega em domicílio.
Os conselhos que afirmam que é preciso ser produtivo e tirar o melhor de cada segundo do confinamento
é uma utopia porque quando o tédio bate,
é difícil de lidar com ele e a esta
altura, encontrar um ombro amigo para
chorar as pitangas é impossível,
a nação inteira está no mesmo barco, o que varia é a intensidade do tédio.
E a mais triste constatação: “ não
estudo porque não tenho tempo” é apenas desculpa. Em confinamento tenho tempo de sobra e falta
atitude. Chego a pensar que a vida
realmente acontece é fora do nosso lar, em um concerto musical, na academia do clube, nos restaurantes e na
interação com as pessoas. Sempre é bom voltar para casa e jogar-se
displicentemente no sofá, mas estar em casa quase cem dias é realmente um
pesadelo.
Para aliviar o meu tédio, acho que
vou protestar toda vez que eu ver uma publicação aconselhando a movimentar-se pela casa, dançar com a
vassoura e fazer abdominais, flexões, vou sentar e tomar um suco e
se por azar, deparar com um vídeo de mulheres ensinando a organizar armários
eu vou deixar meu corpo cansado cair lentamente no sofá e cochilar até o horário
da próxima refeição e quem sabe, esta
atitude de rebeldia ajudará disseminar o
tédio. Sonho com o dia em que poderei voltar a minha antiga rotina e inventar desculpas esfarrapadas para as
amigas quando estiver sem dinheiro para sair e ficar solitária no sofá esperando o dia do
pagamento da pensão para enfim, voltar a circular pelos espaços de lazer.
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