quarta-feira, 17 de junho de 2020

Diário do isolamento social - 92 dia

             O coronavírus fez o que nenhum pai conseguiu: manter os filhos em casa durante uma estação  do ano. O  outono  chega ao  fim com ventos moderados, ar seco e com a generosidade do céu  azul que ao entardecer permite  que os reflexos dos mais lindos tons de vermelho desperte a gratidão  por  mais um dia de vida com saúde a todos os viventes enclausurados e temerosos, sempre a pensar quem será a próxima vítima do inimigo invisível. Admirando as  delicadas nuances de cores no horizonte, fecho os olhos   e  os fios da saudade vão puxando as  memórias  dos primórdios dos anos de 1950 e vejo  a garotinha  morena, de nariz chato e muito curiosa,  ávida para experimentar  os novos sabores oferecidos pela natureza a cada safra. E não é necessário muito esforço para sentir o cheiro e o sabor da pitanga, do coco macaúba, murici e do cheiro do frango com ora- pro –nóbis,  que cozinhava lentamente em um fogão de lenha, sob o olhar vigilante de minha mãe, cujo maior prazer parecia ser proporcionar  à família uma alimentação saborosa e nutritiva.
            O isolamento social é cruel e graças ás lembranças  de minha infância, atualmente, minhas melhores companhias, ele tem sido suportável. Era um tempo difícil, de pouco dinheiro e muito trabalho, mas éramos felizes e livres até os limites de nossas pernas e do medo da onça pintada,  que eventualmente, ouvia-se um  miado distante.  Minha mãe não era uma mulher de muitas  palavras, porém, expressava o seu amor  no cuidado diário  desde o nosso despertar, quando suavemente ela  acariciava  meus cabelos e pronunciava meu  nome baixinho, para que eu não  acordasse assustada. O ritual  repetia-se todas as noites, quando ela ia  fechar a  janela do quarto, ajeitava a velha colcha de retalho  e rezava, pedindo ao anjo da guarda que me protegesse durante à noite. Sinto saudade da ternura dela. Era uma mulher pobre e  analfabeta,  porém, oferecia  generosamente  o bem mais precioso que um filho pode receber: o amor materno.
            Não tenho lembranças de  ter ganho bonecas compradas, mas recordo com ternura, daqueles dias  frios e chuvosos,   em que minha mãe sentava próximo ao fogão para se aquecer, ela não tinha nem sapatos, menos ainda blusa de frio, mas não  se queixava, aproveitava  aqueles momentos de pausa na labuta diária para confeccionar   bonecas de  pano para mim. Este mimo só era possível porque ela tinha a humildade pedir retalhos de tecidos à cunhada, que era costureira. Eram bonecas bem rústicas, mas para mim, as mais lindas do mundo porque estavam  impregnadas de amor. E quando meu pai chegada da lida era uma alegria só, ele contava histórias, as mais absurdas possíveis, como se ele tivesse vivenciado tudo  durante  o dia, e minha mãe, ria como se  acreditasse em  todas as palavras pronunciadas por ele. Eu, que desconhecia o mundo além  das cercas do quintal, acreditava piamente em tudo.
            Eram tempos felizes porque não  havia  parâmetro para comparação. O amanhecer era alegre com o canto do galo e de várias espécies de pássaros que faziam seus ninhos nas  proximidades.   Quando se  ouvia o aboio do Senhor Manoel, eu sabia que era a hora de pegar o balde para ir buscar o leite, que meu pai pagava somente no final do mês quando recebia. Não havia necessidades de anotar, ele guardava tudo na cabeça. Mas o progresso chegou, a fazenda foi   loteada, novos vizinhos chegaram e novos sons passaram a fazer parte do  meu despertar e minha alegria nunca mais foi a mesma porque eu descobri que havia um outro mundo e eu queria conhecê-lo.
            Atualmente,  em uma quarentena forçada, sempre a temer o perigo real  que o coronavírus representa, tenho acesso  as coisas que acontecem  no mundo inteiro e meu coração sangra  de dor ao  ouvir, toda vez que ligo o   televisor, noticias  sobre  os desvios da verba  direcionada  ao  tratamento da Covid-19, e eu agarro com força as lembranças do conforto do colo da minha mãe, da segurança  que a  presença paterna proporcionava. Lembranças,  o melhor alento para  esta minha alma cansada de tantos desmandos na política  e tanta gente necessitando de políticas públicas eficientes para conseguir o essencial: comida na mesa.
           


                               

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