sexta-feira, 3 de outubro de 2025

Presentes que brotam


Sem espaço para plantar, uma moradora de apartamento encontrou uma forma criativa e eficaz de contribuir com o meio ambiente: presentear amigos e familiares, que possuem espaço para plantar, com mudas de árvores frutíferas e sementes de hortaliças e flores. A iniciativa, que começou em maio de 2025, tem como objetivo estimular o cultivo doméstico e resgatar tradições alimentares esquecidas.

Durante uma visita ao afilhado, a moradora levou três mudas: laranja vermelha, laranja lima e limão siciliano — este último conhecido pelo sabor marcante e alto valor comercial. Junto às mudas, ela misturou sementes de almeirão japonês à terra, hortaliça resistente e nutritiva que se espalha facilmente pelo vento, mas que nunca é encontrada nos supermercados.

“A população desaprendeu a plantar. Hoje, todo mundo quer comprar, até cebolinha. Se houvesse fartura nas hortas caseiras como antigamente, talvez reclamassem menos”, afirma. Para ela, cultivar alimentos é mais do que uma prática sustentável — é um gesto de autonomia e resistência diante da cultura do consumo.

A ação se estendeu a outros encontros. Em visita à prima, ela levou uma muda de laranja vermelha e sementes de jiló e margaridas. Em uma reunião com idosas, presenteou três participantes com sementes de capuchinha, planta comestível e ornamental. Ao longo do ano, decidiu doar exclusivamente mudas de laranjeiras, como forma de acompanhar o cuidado e o resultado de seu gesto. “São espécies que não se encontram no comércio. Se em 2026 estiverem produzindo, saberei quem cuidou”, explica.

Mesmo sem terra para plantar, a moradora planeja adquirir sementes raras pela internet e produzir mudas em casa. Seu objetivo é claro: resgatar, silenciosamente, a tradição de cultivar alimentos e espalhar raízes de consciência por onde passa.

quarta-feira, 24 de setembro de 2025

O Mistério das Penas na Piscina

 

O preço da água subiu como foguete em dia de lançamento. E junto com a taxa de esgoto, consome quase todo o salário do mês — como um hóspede indesejado que chega, se instala e ainda exige jantar. A manutenção da casa virou um luxo: trabalho, dinheiro e tempo livre jogados ao vento, literalmente. Foi então que tomei uma decisão drástica, porém sensata: esvaziei a piscina.

Adeus preocupações com dengue, zika e companhia. A água se foi, e com ela, a paz de espírito. Parti para uma viagem merecida, longe das contas e das larvas. Quando voltei, a piscina estava lá, seca como prometido, com uma leve garoa que não ameaçava encher nada. Evaporação, pensei. Tudo sob controle.

Mas eis que surge o mistério.

Ao me aproximar, vi algo que me fez parar: penas. Muitas penas. Penas de galinha, grudadas no fundo da piscina como se tivessem sido coladas por um artista macabro. Sem ossos, sem sangue, sem bico, sem unhas. Apenas penas. E poeira. Poeira que se aliou às penas e formou uma crosta tão resistente que precisei de uma enxada para raspar.

E agora, caro leitor, começa o enigma.

Não tenho criação de galinhas. Os vizinhos também não. Então, de onde vieram aquelas penas?

A primeira suspeita: minha irmã. Dona de um temperamento que mistura inveja com vingança, talvez tenha se irritado por não mais desfrutar de um bem que nunca lhe pertenceu — e que jamais ajudou a manter. Seu lema é claro: você trabalha, paga, e eu desfruto. Teria ela jogado penas como forma de protesto passivo-agressivo?

Segunda hipótese: um animal. Escorraçado de algum galinheiro, encontrou na piscina um refúgio para sua última refeição. Mas a ausência de ossos, bico e unhas me intriga. Teria sido uma galinha fantasma?

Por fim, a teoria mais esotérica: algum charlatão, desses que prometem milagres em troca de ingredientes estranhos, pediu a uma alma desesperada penas de galinha para um ritual. E, sem cerimônia, despejou tudo ali, como se a piscina fosse altar.

E você, leitor atento e curioso: o que acredita que aconteceu? Teria sido vingança, feitiçaria ou apenas uma galinha sem rumo e sem corpo?

A piscina continua seca. Mas o mistério, esse, está longe de evaporar.

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

Terça-feira de Alerta e Desconfiança

 

Na noite da última terça-feira, 9 de setembro de 2025, uma moradora de um bairro residencial viveu momentos de tensão e inquietação ao se deparar com uma sequência de situações incomuns que levantaram suspeitas sobre sua segurança.

Por volta das 22h30, ao descer para descartar o lixo, a mulher avistou um homem parado na calçada, parcialmente oculto pela sombra de uma árvore. Sem dar muita atenção à figura, concentrou-se na paisagem iluminada pela lua. No instante em que retornava ao prédio, foi abordada por um motociclista que havia acabado de estacionar. Após retirar o capacete, o homem se aproximou e fez um alerta direto:

“Você conhece aquele homem? Ele está lhe vigiando. Tome cuidado. Hoje as coisas estão muito perigosas.”

Surpresa com a abordagem, a moradora agradeceu e confirmou que já havia sentido algo estranho, o que a fez entrar rapidamente no prédio. Após trancar o portão e a porta de seu apartamento, enviou um áudio à irmã, com quem havia combinado uma visita à casa da família na periferia — imóvel que permanece fechado e precisa ser monitorado para evitar invasões.

No dia seguinte, a irmã não apareceu conforme o combinado. À noite, ao confrontá-la, ouviu como resposta um simples “eu esqueci”, seguido da informação de que ela teria ido até o local, mas não chegou a entrar. A moradora, preocupada com sua segurança e refletindo sobre sua condição de solteira e sem herdeiros diretos, ironizou: “Pelo visto, vou ter que fazer meu testamento antes do previsto.”

Na quarta-feira, no mesmo horário da noite anterior, ela voltou a descer para colocar o lixo. Desta vez, encontrou um jovem sentado na calçada em frente ao prédio. Após depositar o lixo na lixeira e subir rapidamente, observou pela janela que o rapaz havia desaparecido. A coincidência a deixou ainda mais apreensiva.

A situação foi compartilhada com outra irmã, que reagiu com preocupação e alertou para um padrão comum em crimes urbanos:

“Os malfeitores costumam observar as vítimas em potencial por meses antes de cometerem o delito.”

Reflexão e Alerta

O episódio levanta questões sobre segurança em áreas residenciais sem sistemas de interfone ou vigilância, além de destacar a importância da rede de apoio familiar em momentos de vulnerabilidade. A moradora segue atenta, enquanto reflete sobre os riscos e a necessidade de medidas preventivas diante de comportamentos suspeitos.

 

domingo, 7 de setembro de 2025

Desfile cívico em 7 de Setembro de 2025 expõe crianças ao sol escaldante e ao descaso institucional

 


— O que deveria ser uma celebração do civismo e da independência nacional se transformou, neste domingo, em um retrato preocupante da negligência e da espetacularização infantil. O desfile cívico realizado na principal avenida da cidade expôs crianças — inclusive de creche — a condições insalubres, sob o sol forte da manhã, em um asfalto cuja temperatura ultrapassava os 35 °C.

A reportagem esteve presente e constatou que, enquanto autoridades discursavam por mais de 45 minutos em um palanque coberto e abastecido com água, crianças aguardavam em formação, muitas delas descalças, representando povos originários e transplantados. A cena, que deveria evocar respeito à diversidade cultural, acabou revelando um cenário de sofrimento físico e desatenção institucional.

Pais como espectadores e cinegrafistas

O comportamento dos pais também chamou atenção. Muitos invadiram o espaço reservado às escolas para filmar e fotografar seus filhos, ignorando protocolos e o próprio sentido do evento. O civismo deu lugar à vaidade digital, como se o único propósito fosse alimentar redes sociais com imagens da “cria”, em detrimento da segurança e do bem-estar dos pequenos.

 Educadores calçados, crianças descalças

Professores e organizadores, por sua vez, pareciam mais preocupados em exibir o resultado de seus ensaios do que em garantir condições adequadas para os participantes. Enquanto os adultos estavam devidamente calçados, as crianças marchavam sobre o asfalto quente, em trajes simbólicos, mas sem qualquer proteção para os pés — uma escolha pedagógica difícil de justificar.

 Autoridades em conforto, crianças em sofrimento

No palanque, autoridades locais discursavam longamente, ignorando o tempo excessivo de espera imposto aos jovens participantes. Em vez de uma cerimônia breve e simbólica — com agradecimentos, execução dos hinos e início imediato do desfile — o evento se arrastou, submetendo os menores a mais de duas horas sob calor intenso.

 Reflexão e responsabilidade

A pergunta que fica é: qual a mensagem que se pretende transmitir às novas gerações? Que o patriotismo se mede pelo sofrimento físico? Que o civismo é um espetáculo para adultos, enquanto crianças são figurantes descartáveis?

A denúncia está feita. Cabe agora à Secretaria Municipal de Educação avaliar os excessos e rever protocolos. O desfile cívico não pode ser palco de negligência. Se fossem seus filhos, descalços sob o sol, você aceitaria?

 

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Ipês amarelos e outras formas de resistência

 


Setembro começou mais fresco, como quem abre a janela devagar para não assustar a primavera que ainda espreguiça. O céu, meio encoberto, parecia indeciso — talvez se perguntando se vale a pena mesmo dar espaço para flores em tempos de tanta secura.

E, no entanto, ali estavam eles: os ipês amarelos. Em plena estiagem de mais de dois meses, florescem com insolência, como quem não lê manchetes nem boletins de meteorologia. Enquanto a grama murcha, eles vestem gala.

A cena é gratuita, democrática e, convenhamos, quase debochada. O cidadão sai para pagar contas — esse esporte nacional sem medalha — e dá de cara com um espetáculo que não pediu, não esperava e, ainda assim, melhora o dia. É como se a natureza, em um raro gesto de generosidade, oferecesse desconto à vista: paga-se em admiração, leva-se esperança no troco.

Os polinizadores agradecem a fartura, e as almas cansadas das desilusões cotidianas também. Basta levantar os olhos e encontrar uma copa dourada para lembrar que há formas discretas de renascer. Os ipês, afinal, não se dão ao trabalho de lamentar a seca. Eles florescem — e pronto.

Talvez esteja aí a maior lição que o calendário nos entrega sem protocolo oficial: em tempos de escassez, sempre haverá uma árvore lembrando que resistir, às vezes, é simplesmente florescer quando ninguém espera.

 

domingo, 31 de agosto de 2025

Agosto, o Silêncio que Respira

 


O último dia de agosto escorria pelas janelas como uma lágrima tímida. O céu, de um cinza pálido, parecia refletir o que havia dentro dela: um cansaço antigo, uma solidão que não sabia mais nomear.

Ela caminhava pela praça, onde as folhas secas dançavam ao vento como se zombassem da imobilidade dos seus dias. Sentou-se num banco de madeira gasto, e ali, como quem conversa com o tempo, murmurou:

— Agosto... mais um mês que termina sem que ninguém tenha notado minha existência.

Um senhor de chapéu, que lia um jornal ao lado, levantou os olhos por um instante. Ela tentou sorrir, mas ele apenas voltou à leitura, como se o mundo tivesse decidido que ela era invisível.

— Dizem que agosto é o mês do desgosto — ela continuou agora falando com o vento. — Mas para mim, todos os meses são iguais. A solidão não tem calendário.

Uma jovem passou com um grupo de amigos, rindo alto. Ela tentou se aproximar, puxar conversa:

— Que dia bonito, não é?

— Uhum — respondeu a moça, sem parar de andar.

Silêncio. Sempre o silêncio. Como se suas palavras fossem feitas de fumaça.

Ela voltou a olhar para o chão, onde uma formiga carregava um pedaço de folha maior que ela.

— Eu tento, sabe? Tento me encaixar. Não me visto melhor que ninguém, falo das mesmas coisas... mas parece que minha presença incomoda. Ou pior: não é sequer notada.

Um rapaz sentou-se ao seu lado. Ela respirou fundo. Talvez... talvez fosse diferente.

— Oi — disse ela, com um sorriso que carregava esperança.

— Oi — ele respondeu, olhando o celular. — Só esperando alguém.

Ela assentiu, tentando não parecer decepcionada. Mas ele se levantou antes que o tempo pudesse criar qualquer ponte.

— Toda mulher tem uma história de amor, não tem? — ela disse ao banco vazio. — Um homem que corre atrás, que insiste, que vê nela algo único. Mas comigo... no primeiro não, eles somem. Como se eu fosse feita de névoa.

O céu começou a escurecer. Agosto se despedia com um vento frio e um sussurro de folhas.

Ela se levantou, abraçando a si mesma.

— Talvez eu seja feita de silêncio. E o mundo, de barulho demais pra me ouvir.

E caminhou, como quem dança com a ausência, deixando atrás de si apenas o som leve dos passos e um perfume de saudade.

domingo, 24 de agosto de 2025

O Arco-Íris no Chão

 

Era pouco depois das sete da manhã quando a luz entrou — não invadindo, mas pedindo licença pelas frestas da persiana mal abaixada. No minúsculo apartamento do quarto andar, entre uma pilha de livros esquecidos e uma planta que ainda insistia em crescer, algo aconteceu. Um feixe de luz atravessou o copo de vidro deixado na mesa da noite anterior e se partiu em sete. Um arco-íris, tímido e pequeno, se desenhou no chão.

O morador do 7 — nome irrelevante para esta história — estava sozinho, como sempre. A solidão já era mobília antiga, mais presente que a geladeira ou o sofá manchado. Mas aquela manhã era diferente. O homem, em sua rotina exata de silêncio e café preto, parou. Havia um arco-íris no chão do seu apartamento.

Na física, sabemos: é apenas refração da luz. Mas no coração, era mais.

As três maiores religiões monoteístas também acreditam que arco-íris não são só fenômenos ópticos. No judaísmo, o arco-íris é pacto — o sinal de Deus a Noé de que nunca mais destruiria a Terra com um dilúvio. Um lembrete de que mesmo após o fim, há promessa de recomeço.

No cristianismo, é ponte entre o divino e o humano. Um céu que se dobra para tocar o chão, como se Deus quisesse lembrar ao homem que ainda está por perto, mesmo quando tudo parece em ruínas.

No Islã, embora o arco-íris não tenha a mesma centralidade, há a reverência às cores como manifestação da criação. O profeta Muhammad teria falado sobre os sinais de Allah em tudo — e quem vê um arco-íris sem sentir reverência talvez precise reaprender a olhar.

Entre os povos originários das Américas, o arco-íris também foi mais que cor. Para os maias, era ligado à deusa Ix Chel, senhora da lua, da fertilidade e dos ciclos da vida — um presságio de mudança. Para os incas, ponte para o mundo espiritual. E os astecas viam nele um sinal de comunicação entre os deuses e a terra. Um código secreto em cores.

Deitado no chão, com os olhos fixos naquele fragmento de luz colorida, o homem não pensava em tudo isso — mas talvez sentisse. A beleza sem motivo, a aparição breve, a lembrança de que algo fora do comum ainda pode acontecer, mesmo num espaço de 28 metros quadrados.

Quando o sol girou e o arco-íris se desfez, ele permaneceu ali mais um tempo. Sabia que não voltaria amanhã, ou talvez nunca mais. Mas bastou um. Um arco-íris no chão. Um instante de paz. Um pacto silencioso com algo maior — fosse Deus, fosse a luz, fosse ele mesmo.

domingo, 17 de agosto de 2025

Minha mãe, minha prisão

Mãe, Minha Prisão

Dizia-se, nos velórios da cidade, que a morte de uma mãe era o maior pesadelo que podia atingir um filho. E, quando pequenos, isso parecia incontestável: mãe era colo contra os trovões, era leite que curava febres, era oração contra o escuro. Mas a vida, com sua ironia secreta, ensinava que havia presenças mais sufocantes que ausências.

Lia sempre acreditara que os filhos lhe pertenciam. Dois meninos, tão dela quanto os anéis herdados da avó. Desde cedo, aprendeu a enredá-los em torno de si. A psicologia daria nome: síndrome de enredamento familiar. Os vizinhos, porém, chamavam apenas de zelo.

Na infância, o mais velho não podia brincar no quintal sem que a mãe vigiasse da janela. O caçula nunca pôde dormir na casa de um amigo. “Mãe é o mundo inteiro”, dizia Lia, enquanto lhes afagava os cabelos. Eles acreditavam. E, assim, aprenderam que desejar algo além dela era quase pecado.

Certa vez, aos onze anos, o caçula ousou pedir:
— Mãe, posso ir ao acampamento da escola?
Lia ergueu os olhos da costura.
— E deixar sua mãe sozinha? Deus me livre! Você não precisa dessas coisas para ser feliz.
— Mas todos vão... — insistiu ele, num fio de voz.
Ela suspirou fundo, como quem carrega o peso do mundo.
— Então vá. Se quiser me ver morta de tristeza, vá.

O menino calou. E naquela noite aprendeu que seus sonhos tinham o poder de feri-la. Mais tarde descobriria, nos livros de psicologia, que aquilo era chamado de culpa introjetada. Na vida real, chamava-se silêncio.

Os anos passaram. O mais velho mudou-se para outro estado, mas nunca cortou o cordão. Ligava diariamente, como se respirasse pelo pulmão da mãe. O caçula ficou, guardando passaportes sem carimbos e diplomas não usados. Quando recebeu uma proposta de trabalho no exterior, vacilou dias até revelar.

— Mãe, eu recebi uma oportunidade fora do país... — murmurou, com medo da própria coragem.
Lia ajeitou o lenço no pescoço e ergueu a voz.
— Você vai me abandonar, é isso?

Ele tentou argumentar:
— Não é abandono, mãe. É vida. A minha vida...

Mas o silêncio dela, carregado de lágrimas calculadas, foi sentença.

Numa ligação, o irmão tentou consolá-lo:
— Aguente firme, mano. Você sabe como a mãe é... sempre precisou de nós para existir.
O caçula respondeu, com amargura:
— Precisar não é viver. É aprisionar. Ela nunca nos viu como filhos, mas como extensão dela mesma.
Do outro lado, o mais velho suspirou.
— Talvez seja isso. Nunca cortamos o cordão.

Lia, que ouvira a conversa por trás da porta, irrompeu furiosa:
— E quem disse que pedi para nascerem? Já que vieram, o mínimo é ficarem comigo!

Era a velha dinâmica da dependência narcísica: a mãe que não sabia existir sem se abastecer dos filhos. E eles, reféns da culpa, aceitavam.

O acidente de Lia — quedas, ossos frágeis, visão turva — apenas consolidou as correntes. Agora, além da culpa, havia cadeira de rodas, remédios, exames. “Não quero estranhos me tocando”, repetia, recusando cuidadores. “Vocês são meus braços, meus olhos, minha vida.”

Eram frases de amor ou de cárcere? Os filhos nunca souberam responder.

Quando a morte finalmente se aproximou, não veio como pesadelo, mas como alívio. A vizinhança dizia: “Que filhos dedicados!”. Poucos percebiam que a dedicação era grilhão, não escolha. No velório, o caçula chorava, mas seu peito, em segredo, respirava. A psicologia chamaria de luto ambivalente: dor e liberdade no mesmo sopro.

— Ela se foi... — murmurou o irmão mais velho.
— Ela se foi, mas continua aqui dentro, como corrente, — respondeu o caçula, tocando o peito. — Será que um dia a gente vai conseguir existir sem medo?

Na velhice, já homens cansados, conversavam sobre o passado.
— A gente nunca viveu de verdade, — disse o caçula, olhando a chuva pela janela.
— Vivemos sim, mas dentro da vida dela, — replicou o mais velho.

E foi nesse instante que compreenderam, enfim, o diagnóstico tardio: nunca haviam sido donos de si mesmos.

Ainda assim, havia esperança. O caçula começou a escrever memórias, não como vingança, mas como testemunho. Queria que outras famílias reconhecessem os sinais, que outros filhos entendessem a diferença entre cuidado e prisão.

No caderno, rabiscou uma frase que parecia síntese e súplica:

“Amar não é deixar de existir por alguém.”

E naquela frase havia, pela primeira vez, a libertação que nunca vivera em vida.


O Cordão Invisível


Dizia-se, nos velórios da cidade, que a morte de uma mãe era o maior pesadelo que podia atingir um filho. E, quando pequenos, isso parecia incontestável: mãe era abrigo contra os trovões, era o leite e o beijo que curavam febres. Mas a vida, com sua ironia, mostrava que havia presenças mais asfixiantes que ausências.

Lia sempre acreditara que os filhos lhe pertenciam. Desde o berço, tratava-os como prolongamento de si mesma. Ao mais velho, não deixava brincar sozinho no quintal. Ao mais novo, não permitia que dormisse fora de casa, nem mesmo nas festas de aniversário dos colegas. “Mãe é o mundo inteiro”, dizia, enquanto acariciava os cabelos dos meninos.

Na infância, eles acreditaram. Mas, com o tempo, o afeto começou a se confundir com peso. A psicologia chamaria isso de dependência emocional, de invasão dos limites da individualidade. Para os vizinhos, era apenas “zelo de mãe”.

— Mãe, posso ir ao acampamento da escola? — perguntou o caçula, certa vez, aos onze anos, os olhos brilhando de expectativa.
Lia, sem levantar os olhos da costura, retrucou:
— E deixar sua mãe sozinha? Deus me livre! Você não precisa dessas coisas para ser feliz.
Ele insistiu:
— Mas todos vão...
Ela suspirou fundo, como se carregasse o peso do mundo.
— Então vá. Se quiser me ver morta de tristeza, vá.

O menino desistiu, engolindo o choro. Naquele instante, aprendeu que seus desejos eram perigosos, porque podiam ferir quem ele mais amava.

Anos depois, já adulto, recebeu a notícia de uma proposta de trabalho no exterior. Guardou o papel dentro da gaveta, como quem esconde um pecado. Até que, numa tarde cinzenta, não resistiu.

— Mãe, eu recebi uma proposta de trabalho fora do país... — disse, hesitante.

Lia ajeitou o lenço no pescoço, a voz carregada de drama.
— Você vai me abandonar, é isso?

Ele fechou os olhos. O que lia nos livros sobre individuação — o processo psicológico de se tornar quem se é — parecia inalcançável diante dela.
— Não é abandono, mãe. É vida. A minha vida...

O silêncio que se seguiu era mais eloquente que qualquer resposta.

Enquanto isso, o irmão mais velho, já morando em outro estado, continuava fiel ao ritual diário de telefonar para a mãe. Uma vez, ao telefone, aconselhou o caçula:
— Aguente firme, mano. Você sabe como a mãe é... sempre precisou de nós para existir.
— Precisar não é viver, é aprisionar, — replicou o caçula, exasperado. — Ela nunca nos viu como filhos, mas como extensão dela mesma.

Do outro lado da linha, veio apenas um suspiro.
— Talvez seja isso. Nunca cortamos o cordão.

Lia, ouvindo atrás da porta — como tantas vezes fizera —, irrompeu na conversa.
— E quem disse que eu pedi para nascerem? Já que vieram, o mínimo é ficarem comigo.

O peso dessas palavras caiu como uma sentença. A psicologia chamaria de inversão de papéis: quando os filhos se tornam pais da própria mãe, carregando responsabilidades emocionais que nunca deveriam ser suas.

O acidente de Lia — quedas, ossos frágeis, visão turva — apenas consolidou o enredo. Agora, além da culpa, havia a cadeira de rodas, os remédios, os exames. A vizinhança elogiava: “Que filhos dedicados!”. Poucos percebiam que a dedicação era grilhão, não escolha.

E os anos seguiram, entre o amor e a prisão, entre a piedade e o desejo de fuga.

Numa noite de insônia, diante do espelho, o caçula murmurou:
— Amar não é deixar de existir por alguém.

E naquela frase havia, pela primeira vez, um sopro de libertação.


segunda-feira, 11 de agosto de 2025

A Casa das Vozes Baixas

 

Na curva esquecida da estrada, havia uma casa que só cantava à noite. Não era canto de gente — era o sussurro das memórias, o ranger das saudades, o eco dos passos que já não voltam.

Desde que Clara partiu, a casa ficou mais cheia. Cheia de ausência. Os móveis se encolheram, as janelas choravam com a chuva, e o relógio, coitado, parou de contar o tempo. Como se dissesse: “Não há mais depois.”

João, o viúvo, andava pela casa como quem pisa em vidro. Cada canto guardava um pedaço dela — o riso preso na cortina, o perfume esquecido na almofada, a xícara que ainda esperava café. Ele falava com o silêncio, e o silêncio respondia com lembranças.

Às vezes, ele jurava que ouvia Clara chamando seu nome. Não com voz, mas com vento. O vento que entrava pela fresta da porta e bagunçava os papéis da escrivaninha. “João…” dizia o vento. E ele respondia com lágrimas.

O luto era um animal manso e cruel. Dormia ao lado dele, com olhos abertos. Alimentava-se de fotografias e datas. Crescia com o tempo, mas nunca envelhecia.

Numa noite de agosto, João acendeu todas as luzes da casa. Queria espantar a escuridão, mas ela morava dentro. Sentou-se na poltrona onde Clara lia seus romances tristes e, pela primeira vez, falou em voz alta:

“Você ainda está aqui?”

A casa suspirou. As paredes tremeram. E uma brisa morna tocou seu rosto — como um beijo de despedida.

Na manhã seguinte, João abriu as janelas. O sol entrou tímido, como quem pede licença. E a casa, pela primeira vez em meses, ficou em silêncio. Não o silêncio da dor, mas o da paz.

Entre Muitos, Nenhum"

 

No meio da multidão, ela caminhava devagar. Risos estalavam ao redor, luzes piscavam, músicas vibravam. Mas dentro dela, o silêncio era absoluto. Sentou-se no canto mais escuro da praça, observando rostos que não a viam. Era como estar num palco sem papel, num espetáculo onde sua ausência passava despercebida. Voltou para casa antes do fim, sem que ninguém notasse que havia chegado

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Entre Julho e Agosto: a Travessia dos Fortes


Julho, mês de silêncios doces e tardes que parecem não terminar, vai se despedindo devagar, como quem sabe que deixou marcas sutis. O frio fez morada no peito da casa, as xícaras fumegaram confidências, e as mantas guardaram segredos nos pés da cama. Foi um mês de recolhimento, de ouvir o tempo passar pelos galhos secos e confiar que a raiz ainda pulsa, mesmo quando nada floresce à vista.

Obrigada, julho, pelos abraços que demoraram um pouco mais, pelo cheiro de bolo no forno, pelas memórias que vieram visitar à mesa do café. Obrigada pelos dias curtos que ensinaram a importância de cada raio de sol. Por nos lembrar que o calor também vive na lembrança.

E então chega agosto, com sua alma de vento e promessas. O mês que carrega no peito a figura do pai — essa fortaleza silenciosa que nem sempre sabe dizer o amor, mas que constrói caminhos com as próprias mãos.

Agosto é o tempo dos que sustentam — os que não fogem do peso, os que enfrentam a vida como quem segura o teto do mundo para que os outros possam dormir em paz. É tempo de honrar aqueles que amam em silêncio, que protegem mesmo quando a voz falha, que ensinam a firmeza mesmo com o olhar cansado. Pais de sangue, de alma ou de caminhada.

Que venha agosto, com seus dias compridos e seu céu aberto, trazendo a coragem dos que não desistem. Que nos inspire a levantar com mais firmeza, a abraçar com mais intenção, e a agradecer com mais constância.

Porque agosto não é só o mês dos pais. É o mês da força que sustenta, do amor que constrói, da presença que acalma.


quinta-feira, 24 de julho de 2025

A Justiça Segundo Ela


Dona Lúcia — não era esse o nome de batismo, mas foi esse que adotou para o mundo — sempre teve um dom inato: convencer. Convencia com a voz mansa, com o olhar calculado, com o silêncio ensaiado nos momentos exatos. Era o tipo de mulher que dizia "eu só quero o que é justo", enquanto distribuía cartas marcadas na mesa da vida.

Quando conheceu Henrique, ele vinha com passado — dois filhos do primeiro casamento, uma ex-mulher que ainda mandava notícias pelos cadernos escolares e uma herança emocional que ele carregava no bolso como quem leva um retrato amassado. Lúcia não se incomodou. Pelo contrário: olhou para tudo aquilo como quem olha um terreno mal cuidado. Bastava um pouco de paciência e poda estratégica para se tornar propriedade sua.

O casamento durou o suficiente. O bastante para ter dois filhos, para assinar alguns papéis, para reformar a casa e colocar seu nome em tudo o que antes era dele. E quando ela pediu o divórcio, foi com a precisão de um cirurgião: fria, limpa, certeira. Levou os bens mais valiosos e, de quebra, arrancou do homem um pedaço da alma que ele já mal reconhecia no espelho.

Mas não foi só o patrimônio. Lúcia ensinou os próprios filhos — ainda de dentes de leite — a olharem os meio-irmãos como intrusos. Dizia que o pai sempre deu mais a "eles", que a vida era uma disputa, e que quem não tomasse, ficava com migalhas. Aos poucos, os meninos aprenderam a roubar sem tocar: roubavam espaço, afeto, memória. Faziam do silêncio um gesto de posse. Os filhos do primeiro casamento foram sendo excluídos das conversas, das fotos, das datas. Quando restou apenas a frieza dos papéis, Lúcia fez deles escudo e espada.

Anos depois, quando os pais dela morreram, Lúcia ressurgiu como a filha injustiçada. A herança era modesta, mas o discurso era grandioso. “É uma questão de justiça!”, gritava nas reuniões de família. Esquecida de tudo que tomou, agora cobrava centavo por centavo. Enviava e-mails inflamados, citava passagens bíblicas com a destreza de uma profeta do próprio interesse. Era como se, de repente, a moral tivesse descido do céu diretamente sobre seus ombros.

Na mesa da partilha, chorou. Não pelas perdas. Mas pela parte. E quando um dos irmãos ousou lembrá-la de antigos episódios — da forma como tratara os filhos do primeiro casamento de Henrique, da maneira como saíra do divórcio com muito mais do que trouxera — ela se ofendeu. Disse que não era hora de julgamentos. “Isso tudo é passado.”

Lúcia acreditava na justiça — desde que fosse a sua. Desde que lhe rendesse lucro. Desde que confirmasse a narrativa que construiu à base de meias verdades e silêncios convenientes.

Hoje, vive bem. Não rica, mas satisfeita. Os filhos repetem suas frases como mantras: “a vida não dá nada pra quem não toma”. E ela os observa com orgulho, como quem assiste ao resultado de uma obra bem feita.

Mas, às vezes, quando pensa que ninguém está olhando, Lúcia encara o espelho com certo incômodo. Porque a justiça que ela tanto clama ainda não descobriu como premiar quem rouba de forma tão limpa.


sexta-feira, 4 de julho de 2025

A voz de minha mãe


Havia um silêncio bordado de lembranças naquela tarde em que o vento soprou diferente. Não era apenas o balançar das árvores ou o farfalhar das folhas secas na calçada. Havia algo ali — algo delicado, quase imperceptível — que me chamava sem urgência, como quem sussurra segredos antigos aos ouvidos do tempo.

Foi então que eu ouvi.

Uma voz no vento. Suave, distante, feita de bruma e melodia. Ela vinha como um sopro vindo do mar, carregando histórias que nunca foram ditas, mas que sempre habitaram dentro de mim. Era uma canção sem letra, um murmúrio que lembrava infância e ausência, uma ternura que não se explicava — só se sentia.

Lembrei-me de quando minha mãe cantarolava distraída na cozinha, sem saber que sua voz trançava afetos no ar. As janelas abertas, o sol desenhando sombras nas paredes, o rádio tocando Leila Pinheiro com aquela suavidade que parecia conversar com o vento. Era como se a própria casa respirasse a música, como se cada canto soubesse guardar os ecos de um amor que ainda não tinha nome.

Hoje, tantos anos depois, essa mesma voz volta com o vento. Não sei se é lembrança, imaginação ou presença. Talvez seja tudo isso junto. Uma saudade que não dói, mas embriaga. Uma memória que não pede explicações — apenas companhia.

A música falava de silêncio, de ausências que não se explicam, de espaços deixados por alguém que partiu, mas não foi embora de verdade. E naquele momento, entendi: certas vozes nunca desaparecem. Elas se escondem no som das conchas, no assobio das esquinas, na brisa que vem ao entardecer. Elas voltam sempre que o coração se abre ao sutil.

Fechei os olhos, e por um instante, fui outra vez aquela criança encostada na varanda, ouvindo o mundo como quem escuta uma promessa. A voz continuava ali, dançando entre as folhas, misturada ao cheiro da terra molhada, ao tempo que passou devagar.

Era ela. Era sempre ela.

Uma voz no vento. Um amor que nunca partiu. Uma canção feita de silêncio, espera e eternidade.


Voz no vento


Havia um silêncio bordado de lembranças naquela tarde em que o vento soprou diferente. Não era um vento qualquer — vinha de longe, com cheiro de sal, de saudade antiga, de promessas que nunca se desfazem. E, dentro dele, vinha uma voz.

Era suave, quase imperceptível, mas pulsava no ar como se fosse música. Uma voz no vento, que me chamava sem dizer meu nome, que me encontrava mesmo sem me ver. Veio de repente, entre as folhas da mangueira do quintal antigo, onde minha infância ainda corria descalça, e os passarinhos aprendiam a cantar com a mesma delicadeza com que o mundo me ensinava a sonhar.

Fechei os olhos.

E foi então que a memória me tocou com dedos de brisa: a sala onde minha mãe ouvia discos de vinil nas manhãs de domingo, a voz da Leila — clara, inteira, como se cantasse para as paredes do tempo — ecoando suave entre o cheiro do café e o barulho das folhas lá fora. Naquela época, eu não sabia o que era saudade. Mas hoje entendo: ela começa assim, como um som que o vento traz e que o coração reconhece antes da razão.

Aquela voz, escondida entre as frestas dos dias, não era apenas lembrança. Era presença. Era promessa de que tudo o que um dia foi bonito permanece. Mudado, talvez. Mais distante, talvez. Mas ainda vivo. Como aquela música. Como aquele amor que não se diz, mas que se sente no fundo do peito, mesmo quando tudo parece silêncio.

Voltei a caminhar devagar. O vento ainda soprava, leve. E lá, entre uma esquina e outra do tempo, ela continuava: a voz no vento. Uma canção que não termina. Um afeto que não se apaga. Um sussurro que me lembra: estou aqui, mesmo quando você pensa que não há mais nada.

domingo, 1 de junho de 2025

Sob o Céu de Junho

 

O mês de junho chegou com seus ventos perfumados de promessas e memórias. Nas manhãs ainda frescas, as filhas de dona Clarice — já crescidas, mas ainda fiéis aos ensinamentos da mãe — sentiam no coração o peso de uma audiência que se aproximava.

O pai, agora viúvo há alguns anos, havia reconstruído parte da vida com uma mulher de gênio difícil, cuja doçura era mais encenação do que afeto. Madrasta por título e por destino, essa mulher agora pleiteava na justiça algo que não lhe cabia: bens construídos muito antes de seu tempo, frutos de um amor antigo, sagrado e vivido lado a lado por Clarice e seu marido.

À sombra dessa ameaça, as irmãs se uniram em silêncio e fé. Acenderam velas para Santo Antônio, que conhece os corações e sabe unir o que é justo. Prepararam uma pequena fogueira no quintal, como símbolo da proteção de São João, pedindo que a verdade brilhasse mais forte do que qualquer mentira. E sob a imagem de São Pedro, deixaram uma chave de casa, pedindo que ele mantivesse trancado o que não devia ser tomado.

Mas não rezaram apenas aos santos. Em segredo, uma delas — a mais velha, que amava histórias antigas — voltou os olhos aos céus e sussurrou o nome de Juno, deusa antiga, rainha dos laços legítimos. Pediu-lhe que protegesse o que fora construído com amor e dignidade, que guardasse a memória da mãe como se guarda um altar.

E assim, entre a tensão da audiência marcada e a fé que não se dobra, as herdeiras se fortaleceram.

No dia do julgamento, o céu estava limpo. A juíza — mulher firme e de olhos atentos — ouviu os argumentos de todos. Mas havia algo além das palavras. Era como se o próprio mês de junho soprasse sobre aquele tribunal o peso da verdade.

Ao final, a justiça se fez.
Não com gritos, mas com a serenidade de quem carrega a fé nos santos e nas deusas que protegem os que amam com verdade.

E quando saíram da sala, as irmãs sorriram.
Junho havia começado.
E com ele, a certeza de que nem todo mal vence quando o coração está em paz com a justiça.

quarta-feira, 28 de maio de 2025

A Invisibilidade Aprendida

 


“Engole o choro”, dizia com raiva a mãe da menina. “É melhor fechar essa matraca.”
Um nó se formava na garganta da criança. Suas faces ficavam vermelhas como uma lua de sangue, os olhos voltavam-se para o chão, e o desejo de ser tragada pela terra tomava conta de seu corpo pequeno e paralisado. Queria desaparecer para que nenhuma palavra escapasse de sua boca, nem lágrima alguma de seus olhos. “Você tem que agradecer por ter uma mãe que se preocupa com você” – era essa a justificativa para a brutalidade cotidiana.

Durante a infância, ela sofreu violência física e psicológica. Naquela época, ainda era comum que os responsáveis impusessem castigos físicos aos filhos. Dizia-se entre as mulheres mais velhas que “pecado de criança não é absolvido pelo padre, mas pela varinha de bambu”. Todos os adultos ao redor acreditavam nisso. Os assuntos nas escolas, especialmente às segundas-feiras, giravam em torno das surras do fim de semana.

Era difícil lembrar qual havia sido a pior surra. Eram tantas, com tamanha frequência e quase sempre por motivos fúteis — muitas vezes, por mentiras do irmão, o “queridinho da mamãe”, que sempre tinha razão aos olhos da mãe. Ela nunca quis ouvir a outra versão dos fatos. O estalido do chicote podia ser ouvido por toda a casa, mas ninguém jamais veio socorrê-la. A pele da menina estava constantemente marcada pelas chicotadas, recebendo novos golpes antes mesmo de os vergões antigos desaparecerem.

Com o distanciamento do tempo, e o olhar já adulto, aquela criança de outrora compreendeu que fora o saco de pancadas da mãe — um lugar onde se descarregavam mágoas, frustrações e a covardia de não exigir do pai a vida digna que acreditava merecer. Até meados do século XX, era assim que se ensinavam regras sociais às crianças. Com exceção dos filhos preferidos, todos os demais eram impiedosamente punidos por aqueles que um dia prometeram, no altar, cuidar dos filhos confiados por Deus.

Ela não tinha memória de uma surra justa. Jamais cometera faltas graves: nunca ateou fogo à casa, nunca soltou o gado, nem agrediu irmãos ou maltratou animais. Era uma filha obediente, cumpria com suas obrigações desde tenra idade, mesmo cansada, sendo injustamente rotulada como preguiçosa. Apanhava por motivos insignificantes: por não ouvir quando era chamada, por derramar um pouco de água do balde, por descansar alguns minutos ou por fofocas do irmão, que a via como uma criada a seu serviço.

Com o passar dos anos, ela aprendeu a se tornar invisível. Acordava com o canto do galo e realizava todas as tarefas antes que a mãe acordasse, tentando evitar ser lembrada. A invisibilidade era sua fortaleza contra a fúria materna. No entanto, esse esforço constante deixou marcas profundas que influenciaram sua vida pessoal e profissional.

A repetição de engolir o choro e seguir adiante moldou uma mulher servil, incapaz de expressar suas opiniões. Sempre preferia o silêncio, mesmo quando tinha algo importante a dizer. No campo pessoal, nunca conseguiu aprofundar amizades, temendo reviver os tempos de exploração. Desconfiava das pessoas. Nunca manteve um namoro por mais de seis meses. Profissionalmente, apesar de investir em cursos e formações, jamais foi promovida. Era a funcionária invisível: cumpria prazos, fazia tudo corretamente, mas sem inovar — do primeiro dia de trabalho até a aposentadoria.

Ela dizia a si mesma que só teve duas grandes alegrias na vida: o dia em que conseguiu o primeiro emprego e o dia em que assinou sua aposentadoria. Neste último, acreditou ingenuamente que enfim seria livre para ser feliz. Mudou-se para outro estado sem avisar ninguém. Ninguém notou sua ausência.

Determinada a sair da invisibilidade, traçou uma nova estratégia para encontrar pessoas interessantes. Sabia que gente de bem frequentava igrejas, academias, bibliotecas, espaços culturais e pizzarias. E a estratégia funcionou. Em uma das primeiras missas que assistiu, foi anunciado um curso gratuito voltado para a formação de mulheres e fortalecimento do conhecimento sobre seus direitos. Sem hesitar, anotou os dados e compareceu à aula inaugural.

Lá, uma professora universitária falou sobre as barreiras enfrentadas pelas mulheres no mercado de trabalho e a discriminação persistente, mesmo em plena Era da Comunicação. A mulher ficou chocada. Percebeu que aquilo que vivera na infância não era uma exclusividade de seu vilarejo atrasado — era uma realidade nacional. E pior: ainda havia exploração da mão de obra infantil, algo que ela própria conhecera de perto.

As aulas seguiram com temas importantes, legislações, palestras, direitos. Mas a mudança de comportamento era lenta e dolorosa. Nem mesmo a rede de apoio entre mulheres foi suficiente para que ela abandonasse o hábito da invisibilidade. Entrava calada, sentava-se na última carteira, não participava. Saía calada, sequer pedia carona nos dias de chuva. O círculo de amizades que esperava construir não se formou.

Porém, ela alcançou uma nova consciência: os traumas da infância eram profundos e, sem ajuda profissional, poderiam acompanhar uma vítima até o fim da vida.

 

quarta-feira, 21 de maio de 2025

Fantasma na poeira

 


O coração ainda martelava no peito quando recuou um passo, a mão vacilando na maçaneta da porta da sacada. O sol poente tingia o céu de tons alaranjados, mas a luz difusa não era suficiente para dissipar o arrepio que lhe subia pela espinha.

Ali, bem diante de seus olhos, desenhado na poeira acumulada no chão, estava um espectro. O contorno era preciso: olhos ocos, boca aberta num silencioso grito. Um fantasma... ou um aviso?

O pensamento veio antes da razão. Quem teria feito aquilo? Seria apenas uma brincadeira? Mas não havia pegadas. Nenhum sinal de que mãos humanas haviam traçado aquele perfil. Apenas o vento...

Ah, o vento! Esse viajante invisível que percorre o mundo sem descanso, que conhece os segredos mais profundos da Terra e dos homens. Ele sopra sobre montanhas, atravessa oceanos, dança entre árvores. Mas também sussurra enigmas, escreve mensagens que poucos ousam decifrar.

Engoliu seco. Por um instante, imaginou que o próprio Éolo, deus dos ventos, tivesse soprado suavemente até formar aquele espectro sobre o chão esquecido da sacada. O que queria dizer? Seria um simples capricho da brisa? Ou um suspiro de algo que vagava entre mundos, preso na poeira do tempo?

Fechou os olhos. Um frio distinto percorreu seu corpo, não vindo da brisa, mas da dúvida. Quando tornou a abrir, o fantasma ainda estava lá, imóvel, esperando por uma resposta.

Mas... qual seria?

Deixe  nos comentários a sua opinião a respeito deste fenômeno.

quinta-feira, 15 de maio de 2025

Entre Passos e Memórias

 

 

As tardes de terça-feira carregavam sempre o mesmo roteiro para Helena: almoçar sozinha, vestir roupas confortáveis e caminhar lentamente até o centro comunitário do bairro. Lá, a aula de dança para a terceira idade acontecia religiosamente — e, para ela, religiosamente também era a frequência. Mesmo quando a vontade era nenhuma, mesmo quando o corpo reclamava, ela comparecia.

Não era exatamente o que se podia chamar de prazer. A aula era cansativa, e o entusiasmo das colegas mais animadas a deixava, muitas vezes, ainda mais exausta. Mas havia uma verdade que Helena não podia ignorar: o movimento era o que a mantinha viva. E isso, a professora fazia questão de lembrar toda semana.

"Movimento é resistência, meninas!", dizia com o brilho dos jovens nos olhos. "A gente não para de dançar porque envelhece. A gente envelhece porque para de dançar."

Helena sorria discretamente diante da insistência daquela mulher tão cheia de energia, e às vezes se perguntava de onde vinham tanta motivação e tanta fé. Era como se ela desafiasse o próprio tempo a cada passo de bolero.

Mas nem mesmo a coreografia animada conseguia disfarçar a ausência que Helena sentia. Faltava algo. Ou melhor, alguém. Um par. Um homem.

Não que fosse impossível — mas nos últimos anos, encontrar um companheiro se tornara um luxo. “Mais difícil que comprar um colar de diamantes”, costumava brincar, entre risos suaves e um olhar perdido.

A presença masculina, ainda que rara, fazia falta. Ela sentia falta da troca de energia, do olhar cruzado no compasso certo, da firmeza que equilibrava o giro de uma valsa. Yin e Yang, ela pensava, como se sua dança estivesse sempre incompleta.

Naquela terça-feira, porém, o destino resolveu mudar o roteiro.

Ela já estava na sala quando uma voz a chamou pelo nome.

"Helena?"

Virou-se, surpresa. Uma senhora de cabelos grisalhos e rosto marcado pelos anos a observava com ternura. Os olhos eram claros, levemente marejados.

"Desculpe... você é a filha da Dona Lia, não é?"

Helena franziu a testa, sem entender. "Sou... mas... como sabe disso?"

A mulher sorriu, e seus olhos se iluminaram como se tivessem encontrado algo que procuravam havia muito tempo.

"Eu sou a Cecília. Fomos vizinhas. Brincávamos no quintal lá da rua das Laranjeiras. Você não deve lembrar, era tão pequena... Mas eu nunca esqueci de você. Sua mãe era minha amiga."

Helena piscou, tentando resgatar qualquer lembrança daquele nome. Cecília... Rua das Laranjeiras... um balanço de madeira pendurado no galho de uma mangueira... o cheiro doce de goiaba madura...

"Você... é a Ceci?", sussurrou, como se a memória tivesse finalmente desabrochado. "Aquela menina que fazia bonecas de sabugo de milho?"

"Essa mesma!", riu Cecília. "E você era a danadinha que sempre caía da bicicleta e dizia que não doía."

Helena levou a mão à boca, emocionada. "Meu Deus... eu nem lembrava mais..."

"Mas você lembra da sua mãe, não é?" perguntou Cecília, mais suave agora. "Você tem o jeito dela. O modo de falar. Até o olhar quando está pensativa... é igualzinho."

Helena não conseguiu conter as lágrimas. Sentou-se no banco ao lado, como quem precisa de apoio para o peso das lembranças.

"Minha mãe partiu há muitos anos... E às vezes sinto que estou me esquecendo dela, sabe? Mas... dizem que eu sou muito parecida com ela."

"É mais que parecida. Você a carrega", disse Cecília, apertando-lhe a mão com delicadeza. "Hoje, quando te vi entrando, meu coração disparou. Era como se eu estivesse vendo a Lia outra vez."

O tempo, ali naquele salão de dança, pareceu parar. A música tocava ao fundo, as demais senhoras seguiam os passos da professora, mas para elas, o mundo havia virado lembrança.

Conversaram até o fim da aula, sem se importar em ter perdido os passos. Recordaram as brincadeiras de infância, os vizinhos, as festas juninas da rua. Lembraram da mãe de Helena, das roupas floridas, da risada forte e do cheiro de bolo de fubá que sempre vinha da cozinha. Cada memória parecia um presente entregue com cuidado, embrulhado com saudade.

"Você não sabe o quanto me fez bem hoje", disse Helena, enquanto caminhavam juntas até a saída. "É como se uma parte de mim, esquecida lá atrás, tivesse voltado para o presente."

"Reencontros assim são raros, minha querida", respondeu Cecília, com um sorriso sereno. "Agora que nos achamos de novo, não vamos mais nos perder."

Ao chegar em casa, Helena sentou-se à mesa da cozinha e ficou ali, em silêncio. Tocou os próprios cabelos, lembrando da mãe. Sorriu. Chorou. E sentiu uma pontada de esperança — algo que não sentia há muito tempo.

Ela sabia que a velhice traz perdas inevitáveis. Mas reencontros... esses vinham como bênçãos tardias. E ela queria mais. Queria reencontrar outras pessoas, reviver outras histórias. Formar um círculo de amizade verdadeiro, que resistisse aos anos e ao esquecimento.

Porque no fim das contas, era isso que importava: os passos que damos juntos, e as memórias que carregamos com amor.

 

quarta-feira, 14 de maio de 2025

O Patinho da Estrada de Minas

 

Havia uma tarde morna e silenciosa se derramando sobre as estradas sinuosas de Minas Gerais. O céu, coberto por nuvens suaves, tingia os morros de um dourado melancólico, daqueles que fazem o coração desacelerar para escutar melhor a alma. Eu dirigia devagar, sem pressa de chegar, porque há dias em que o destino pouco importa — o que vale é o caminho.

Foi então que, numa curva qualquer, entre o cheiro de capim fresco e o canto distante de um sabiá, a vi. Uma pata. Caminhava com dignidade maternal, escoltada por seus pequenos, já não tão pequenos assim — patinhos adolescentes, em fila desajeitada, como jovens aprendendo o compasso da vida.

Sorri. A cena era comum por ali, mas algo chamou minha atenção: entre os patinhos de plumagem clara, havia um diferente. Suas penas eram castanhas, densas, e o pescoço, mais curto do que o dos demais. Era evidente: ele não se tornaria um cisne. Não havia nesse destino nenhum encanto de conto de fadas, apenas a verdade suave da natureza.

Mas foi ali que meu coração vacilou. Quem era aquele patinho? De onde viera?

A mente, guiada pelo coração, começou a costurar possibilidades. Talvez ele fosse descendente de uma linhagem antiga de patos domésticos, esquecida pelas gerações, perdido no tempo como uma memória que insiste em permanecer. Ou, quem sabe, fosse selvagem — fruto de uma história de entrega silenciosa.

Imaginá-lo como o protagonista de uma pequena epopeia me enterneceu. Pude ver, com os olhos da alma, uma mãe pata de olhos tristes, escondida entre as folhagens, depositando seu ovo no ninho de outra, na esperança de que seu filho tivesse uma chance — não de ser igual, mas de ser amado.

E aquela outra pata, sem entender muito, talvez apenas sentindo o chamado da vida, acolheu o ovo entre os seus. Não questionou. Apenas aqueceu. Apenas esperou. E, ao nascer, o tratou como seu. Porque amor, às vezes, é isso: aceitar o diferente e protegê-lo como se fosse parte do próprio coração.

Fiquei ali, com o carro parado e o pensamento longe, até que a pequena família se perdeu entre os capins altos da beira da estrada. Levei comigo uma cena singela, mas que carregava um mundo dentro.

Se alguém souber de que espécie era aquele patinho, ou se essa história tem um nome na biologia, que me diga. Mas, se não souberem, tudo bem. Talvez seja melhor assim. Porque algumas histórias não precisam ser explicadas. Basta que sejam sentidas.

 

 

 

domingo, 11 de maio de 2025

O livro que me ajudou a sentir

 

Ela havia terminado de ler Um Amor para Recordar, de Nicholas Sparks, mas o livro ainda reverberava dentro dela como uma melodia suave que insiste em permanecer mesmo após a última nota. Era impossível não se deixar envolver por aquela narrativa tão simples e, ao mesmo tempo, tão profundamente tocante. “É isso que os grandes escritores sabem fazer”, ela pensou, enquanto fechava o exemplar com cuidado, como se fosse algo precioso. “Eles sabem prender a atenção do leitor sem recorrer a grandes reviravoltas, apenas com a verdade emocional das pequenas coisas.”

A história contava apenas um fragmento da vida de um estudante do segundo ano do ensino médio — um rapaz comum, perdido entre os desafios da adolescência — que, de forma inesperada, se apaixonava pela garota mais improvável da escola: a jovem esquisita, retraída, filha do pastor. Ainda assim, Sparks conseguia transformar esse enredo simples numa narrativa poderosa. E isso, para ela, era o verdadeiro segredo da boa escrita.

Ela dizia, frequentemente:
— Como ele consegue? Como consegue traduzir em palavras todos os sentimentos confusos da adolescência, as amizades frágeis, os amores tímidos, os medos e as descobertas?

A escrita de Sparks não era rebuscada, tampouco buscava ser. Pelo contrário, era marcada por uma fluidez encantadora, como um rio que corre sereno, mas constante. Os diálogos soavam reais, quase como se o leitor estivesse escutando uma conversa entre amigos no pátio da escola. As emoções vinham sem esforço, sem exageros — apenas com a delicadeza de quem sabe que, às vezes, as maiores dores e alegrias estão nos detalhes mais silenciosos.

Ela, aspirante a escritora, via-se diante de um espelho emocional. “Ainda não consigo escrever assim”, confessava a si mesma, entre frustração e esperança. “Minha escrita é truncada, engasgada... Sinto dificuldade em expressar meus sentimentos, seja com a fala ou com a caneta.” Reconhecia suas limitações gramaticais, suas inseguranças criativas. Mas, mais forte do que a dúvida, era o desejo. O desejo de aprender, de emocionar, de fazer com que alguém, um dia, dissesse: ‘Eu não consegui parar de ler’.

Ela queria isso — queria cativar leitores mesmo quando narrasse o mais banal dos dias, a cena mais rotineira da vida de um adolescente. Queria que suas palavras tocassem o outro como as de Sparks a haviam tocado. Por isso, sabia que Um Amor para Recordar permaneceria com ela por muito tempo. Porque, naquele livro, ela não viu apenas uma história de amor juvenil — ela viu tudo o que queria ser como escritora.

E, ao final, deixou um conselho para quem, como ela, luta com a própria escrita:
— Leia esse livro. Deixe que ele fale com você. Depois, venha me contar o que ficou. Talvez, no meio da conversa, a gente descubra juntos o segredo da magia de Nicholas Sparks.


domingo, 4 de maio de 2025

A Tragédia da Inveja e seus Labirintos Sombrios


Eis que surge do cenário opaco da existência a figura de Caetana, alma extenuada pelos anos e assolada pelo peso de um sentimento insidioso—um veneno destilado em doses contínuas desde os tempos de menina. A inveja, este monstro sorrateiro, fez-se seu fiel escudeiro, guiando-lhe os passos ao longo da estrada tortuosa de sua vida.

No seio de um lar onde a tecnologia era luxo de gente abastada, Caetana labutava desde as primeiras luzes da aurora, empunhando vassouras e panelas, enquanto sua irmã adotiva repousava em lençóis macios, envolta pela afeição materna e pela deferência dos que a cercavam. Ah, os olhos de sua mãe! Para aquela outra, eram janelas de ternura e orgulho; para Caetana, apenas farpas de crítica e desdém.

— O destino, sempre cruel, faz do injusto sua lei — murmurava ela, entre suspiros de resignação e revolta.

Passaram-se os anos, e a lista das admirações travestidas de rancor só crescia. A inteligência da irmã, sua fluidez verbal, o magnetismo com os rapazes, a destreza em transitar pelo mundo sem tropeçar em obstáculos—tudo era espetáculo que Caetana assistia da última fila, amarga espectadora de sua própria insignificância.

Mas o grande júbilo veio quando a roda do destino girou e finalmente lançou sua rival na ruína! Desgraça financeira e conjugal, um golpe de mestre do universo! E, qual cordeiro vestido em pele de caridade, Caetana estendeu-lhe a mão. Não por amor, que sentimento tão nobre não lhe cabia, mas por uma cruel satisfação. A humilhação alheia era seu triunfo secreto.

Por dez anos sustentou a irmã e sua prole, não como ato de bondade, mas como um tributo ao espetáculo da desgraça. Cada moeda dada era uma pedra no trono da sua vaidade, cada favor concedido, um selo de sua falsa magnanimidade. Mas eis que a rival, sempre ardilosa, reergueu-se! Com astúcia e estratégia, livrou-se das correntes da dependência e triunfou novamente.

E o que restou a Caetana? O espetáculo de sua própria decadência. A irmã deleita-se com vinhos finos em Lisboa, enquanto ela sorve tragos mornos da cerveja guardada na isopor. A irmã veste-se em elegância europeia, enquanto ela se debate entre as pechinchas do Brás. Enquanto uma percorre hipermercados em carros reluzentes, a outra arrasta seu carrinho de feira.

E agora, a solidão lhe bate à porta com o rigor de uma sentença irrevogável. O doce sabor da vingança revelou-se veneno, a satisfação, um engano. E então, na triste epifania de seus setenta anos, Caetana compreende: não foi o destino, nem a sorte, nem os caprichos dos homens que lhe impuseram tal ruína. Foi a inveja—sempre ela—que lhe roubou os anos e lhe negou o que mais desejava.

Mas agora já era tarde, e a única resposta que o mundo lhe oferece é o eco de sua própria escolha.

Os Fuxicos de Hanna e a Maldição das Penas

 

    Hanna não tinha rival quando o assunto era uma boa confusão. Se existisse um campeonato de intrigas, era certo que ela levaria o troféu. Naquela manhã abafada, rumou com a irmã para a chácara da família, no perímetro urbano da cidade. Mas qualquer esperança de um dia tranquilo foi rapidamente descartada—afinal, Hanna já chegava pronta para o embate.

— Eu te falei que aqueles vizinhos eram falsos! — disparou ela, ajustando o chapéu e cruzando os braços como se fosse uma xerife prestes a fazer justiça.

A irmã suspirou, já prevendo o drama que viria. Desde a última visita, os vizinhos passaram a jogar cachorros dentro da propriedade, acompanhados de restos de comida, mas sem água. Um claro movimento estratégico para transformá-las em criminosas aos olhos da lei. Afinal, maltratar animais era crime inafiançável.

Quando desceram do carro e caminharam até o terreno, Hanna parou abruptamente. Apontou para o chão, onde se espalhavam penas de galinha. Seus olhos se arregalaram, e sua boca se abriu num "ó" dramático antes de declarar solenemente:

— Pronto! Agora apelaram pra feitiçaria!

E sem esperar confirmação, saiu em disparada para buscar lenha. Empilhou os galhos e acendeu uma fogueira sobre as penas, murmurando orações que, segundo ela, cortariam qualquer mal.

A irmã observava a cena em silêncio, relembrando os últimos acontecimentos. "Talvez alguém tenha trazido pedaços de galinha para atrair os cães", pensou. Mas havia outra hipótese, menos conspiratória: "Ou então algum dos cachorros caçadores pegou a galinha dos vizinhos". Preferiu não verbalizar nenhuma das teorias—já sabia que Hanna se alimentava das confusões como quem toma um bom café preto pela manhã.

Ainda assim, enquanto a irmã entoava suas orações, ela própria se sentiu tomada por um receio estranho. Para garantir, recitou o Credo e a oração de São Bento, como um escudo invisível contra qualquer maldição.

— Pronto — anunciou Hanna ao fim do ritual. — Vamos ver se agora param de nos atormentar.

Mas, conhecendo os vizinhos e, principalmente, conhecendo Hanna, a irmã sabia que aquele era apenas o começo de mais um longo capítulo de fuxicos, pirraças e encrencas intermináveis.

sábado, 3 de maio de 2025

O perfume da saudade

 

O cheiro da terra molhada anunciava a chegada do entardecer. O céu tingido de dourado parecia querer acolher minha saudade, como se entendesse que eu voltava depois de tantos anos, guiado apenas por uma lembrança: as flores da assa-peixe.

Na infância, aquelas pequenas vassourinhas floridas faziam parte do nosso ritual na cozinha. Antes de enfiar as assadeiras no forno a lenha, limpávamos as brasas com suas hastes delicadas. O cheiro que subia junto ao calor era um perfume esquecido no tempo, uma saudade que só se revelou quando me vi longe, na cidade grande, cercado de concreto e pressa.

Mas agora eu estava de volta. E no silêncio das trilhas poeirentas, caminhei devagar, deixando que o olhar curioso explorasse cada recanto. Quando vi, lá estava ela—crescendo livre à beira da estrada, como se tivesse me esperado todos esses anos.

Ajoelhei-me, toquei suas folhas ásperas, segurei as flores brancas como quem segura um pedaço do passado. Fechei os olhos. Minha mãe estava ali, ajeitando os biscoitos no forno. Meu pai sorria, contando suas histórias antigas. O calor das brasas, o cheiro de queijo, as risadas soltas pelo quintal.

Os anos tinham levado muitas coisas, mas a assa-peixe ainda estava ali. E naquele instante, eu entendi: algumas memórias nunca nos abandonam.

quarta-feira, 16 de abril de 2025

O Eco das Perguntas Não Feitas


Tomada pelo peso da consciência, a protagonista se vê em um profundo mar de tormentas. Ela lamenta, com amarga contrição, ter ferido os alicerces de uma mãe de família, tudo em nome de uma ânsia desenfreada por concretizar um acordo. Em meio à inquietação de sua alma, sente que suas habilidades em negociar, buscar por justiça e agir retamente estão se esvaindo, como areia entre os dedos da razão.

Foi apenas ao término da fatídica sessão de negociação que a cruel epifania lhe arrebatou a mente: deveria ela ter feito as perguntas mais básicas, aquelas que, de forma pungente, poderiam mudar os destinos. A executada reconhecia a dívida? A festa não teria ocorrido, por que então a contratante estava sob a sombra impiedosa da execução? Consumida pelo remorso, percebe que deveria ter guiado a mulher prejudicada à defensoria pública, que poderia prover-lhe um advogado.

Agora, resignada à dor eterna, percebe que foi cúmplice, ainda que sem intenção maligna, do ardiloso plano de uma pessoa de má fé e de seu advogado similar. Neste processo, a senhora foi constrangida a arcar com uma dívida inexplicável, que dela roubou o sustento, usurpando o pão da boca de uma criança para saciar a avidez dos espertos. Num apelo desesperado, clama ao Divino para que abençoe e ilumine aquela mulher, que ela prospere e não conheça jamais a fome ou a carência.

A protagonista, em seu arrependimento profundo, sente-se traidora de seu próprio propósito, executando seu serviço com falhas, distante da justiça e da competência que outrora eram seu norte. A mácula do passado recai sobre ela novamente, acusando-a de um erro semelhante: focar em resultados e não na excelência do serviço prestado. Entre súplicas e lágrimas, ela roga ao Senhor para proteger a mulher que injustamente foi prejudicada e implora por perdão para sua falha, pedindo sabedoria para jamais repetir tal deslize.