segunda-feira, 17 de novembro de 2025

A memória das mãos


Hoje, como quem desperta de um sonho antigo, vi o poder secreto da memória das mãos.
Essas mãos, que outrora aprenderam a dobrar o papel em origami, guardaram em seus nervos e músculos um saber que minha mente já não alcançava. Durante anos, ensinei a outros essa arte delicada, como quem semeia estrelas no silêncio, acreditando que o conhecimento não deve morrer com seu detentor, mas florescer nos mais jovens, perpetuar-se como chama que não se apaga.

Mas o tempo, esse escultor invisível, afastou-me dos discípulos e apagou da mente os passos da dobradura. Restou-me apenas o desejo, próximo ao Natal, de criar uma decoração original. Tentei, e falhei. Cinco vezes, o pensamento se fechava em brumas, e eu rogava às minhas mãos que lembrassem. E foi então que, após longos minutos de insistência, elas, como sacerdotisas silenciosas, revelaram o segredo. O origami renasceu perfeito, não pela mente, mas pela carne que recorda.

A ciência, em sua linguagem fria e luminosa, confirma este mistério: escrever à mão, manipular objetos, repetir gestos, tudo isso desperta uma sinfonia de conexões cerebrais, uma dança entre regiões do cérebro que não se acende quando apenas digitamos. Há, portanto, uma memória tátil, muscular, sensorial — uma memória das mãos. Elas sabem, mesmo quando o pensamento se perde.

E eu, diante da dobradura renascida, senti-me feliz como criança. Desejo que este Natal seja um instante de beleza, que os enfeites brilhem como constelações dentro da precariedade da minha morada, há mais de trinta anos clamando por uma pintura. Que o contraste entre o brilho das formas e a aspereza das paredes me traga paz no coração e prosperidade na vida.

Assim, compreendo: reter é perecer, compartilhar é frutificar. O gesto que se transmite, a dobra que se ensina, a palavra escrita à mão — tudo isso é eternidade.
E minhas mãos, fiéis guardiãs, provaram que a memória não é apenas da mente, mas também da carne, do sangue, do nervo.
São elas que, em silêncio, perpetuam o saber, como se fossem as asas invisíveis da al
ma.

sábado, 15 de novembro de 2025

O Silêncio da República

 

Acordei às 4h50, não por insônia, mas pelo canto dos passarinhos — os únicos que ainda parecem lembrar que o dia começou. Enrolei pela casa, saboreando o frescor da madrugada, esse raro alívio que antecede o calor abrasador do sol. Ao deitar,  apesar do calor não  é prudente deixar  uma janela aberta. Há ladrões por toda parte, como sombras à espreita, prontos para tomar o que não lhes pertence com a facilidade de quem já perdeu o medo.

Às seis, varri a calçada. Fiz questão de começar antes que o sol a tocasse, porque ele já não acaricia — ele castiga. Queima como brasa, e às vezes me pergunto se a Terra não é apenas um estágio preparatório para o inferno. O suor escorre, o corpo reclama, mas o espírito... o espírito hoje amanheceu triste.

Era 15 de Novembro. Data da Proclamação da República. Um marco, um rompimento, uma promessa de liberdade e cidadania. Mas na rua, só eu e os passarinhos. Nenhuma bandeira, nenhum hino, nenhuma criança com cartolina colorida. Nenhum sinal de que somos — ou deveríamos ser — uma República.

O poder público silente. A educação, ausente. A mídia, entretida com ofertas de feriado. E o povo? O povo segue o feriado como quem segue um domingo qualquer. Dorme até mais tarde, reclama do calor, compartilha memes. Mas não se pergunta: por que hoje é feriado?

E então me pergunto: qual o sentido de parar a economia, se não há consciência do motivo?

Qual o valor de um dia cívico, se não há civismo?

Uma nação que não celebra sua história está condenada a esquecê-la. E quem esquece o que foi, não sabe o que é — muito menos o que pode ser.

A República, sem memória, vira apenas um nome em papel timbrado. Sem celebração, sem reflexão, sem educação, ela se esvazia. Vira rotina burocrática, vira feriado sem alma. E nesse vazio, cresce o desinteresse, a ignorância, o descaso. Cresce o risco de perdermos o pouco que conquistamos.

Hoje, a rua estava vazia. Mas o silêncio dela gritava. Gritava que estamos falhando. Que estamos deixando de ser República, para sermos apenas um aglomerado de gente que não se reconhece como povo.

Alguém pode me responder: qual o sentido de um feriado cívico, se ninguém se importa com a razão dele existir?

 

quinta-feira, 13 de novembro de 2025

O espelho negro

 

Na penumbra do quarto, onde o tempo se dissolve como névoa, repousa o objeto que me consome: um retângulo de luz, um espelho negro que me hipnotiza. Ele não reflete meu rosto, mas projeta sombras — imagens fugidias, sons ocos, histórias que se repetem como ecos em um abismo. Quatro horas por dia, talvez mais. Não sei ao certo. O tempo, esse velho senhor de bengala, já não caminha ao meu lado. Ele corre, escorrega, desaparece.

O vício que não tem nome

Não é droga, não é álcool, não é jogo. É pior. É o nada disfarçado de tudo. Tento impor limites: quinze minutos, prometo. Mas o tempo ri de mim. Quando desperto, já se passaram duas horas. E eu? Eu não lembro de nada. Nenhum nome, nenhuma ideia, nenhum afeto. Apenas o torpor. A anestesia da alma. O celular é meu altar e meu cárcere. Nele, não há transcendência — só ruído.

A casa, o corpo, o espírito

Minha casa está imunda. O chão, testemunha silenciosa da minha ausência. O arroz com arroz é meu banquete diário. Livros jazem fechados, como túmulos de sabedoria que não ouso profanar. A lição de casa, esquecida. A vida real, um borrão. E eu? Eu não sou criança. Já vivi sete décadas. Sete ciclos lunares completos. Mas agora sou como uma marionete sem cordas, caída no palco, esperando que alguém a recolha.

O teatro grotesco

Os vídeos que vejo são como máscaras de carnaval — grotescas, previsíveis, vulgares. Artistas renomados e religiosos se despem, não de roupas, mas de dignidade. Falam de dejetos, de sexo casual, de dores banais. E eu assisto. Eu rio. Eu me anestesio. Como quem toma um gole de veneno e chama de remédio. E o pior: estou viciada. Tento me libertar, mas as correntes são feitas de pixels e promessas vazias.

O desejo de ser útil

Se não posso ser útil a alguém, ao planeta, ao tempo que me resta... que ao menos eu consiga prestigiar quem ainda resiste. Quem ainda cria com seriedade, com beleza, com propósito. Que eu consiga, ao menos, olhar para o alto — para além da tela — e lembrar que há estrelas. Que há poesia. Que há vida.

Porque, no fundo, ainda há uma chama. Fraca, trêmula, mas viva. E talvez, só talvez, ela ainda possa iluminar o caminho de volta.


segunda-feira, 10 de novembro de 2025

A Praia Que Nunca Foi Minha

 

Hoje, ao deslizar os olhos pelas redes sociais, tropecei numa foto da Praia Grande. A cidade do litoral sul paulista, plana como um suspiro, com a Serra do Mar ao fundo, verde e azul em eterna harmonia. E ali, entre pixels e lembranças, fui tragado por uma saudade que não era só da paisagem — era daquilo que nunca vivi de verdade.

Lembrei dos ventos fortes que varriam as calçadas, da serração que escondia o horizonte, do cheiro salgado que grudava na pele e do som do mar que embalava os dias. Lembrei do comércio farto, das feiras livres, dos peixes com gosto de oceano. Alguns eu até comprava, mas mais com os olhos do que com a boca. Aposentado, o apetite é mais sonho do que realidade. Nunca há dinheiro suficiente para saborear as iguarias que a cidade oferece. E mesmo assim, havia a ilusão — doce e cruel — de que morar na praia era sinônimo de felicidade. Era poder. Era liberdade.

Mas que liberdade é essa que não permite desfrutar da própria rua? Dos quiosques belíssimos que só se admira de longe, como quem olha vitrines de um mundo que não lhe pertence? Das atividades culturais que se escondem nos cantos periféricos, oferecidas por centros de convivência e igrejas que cobram pouco, mas ainda assim cobram? Ter e não poder. Viver e não sentir. Praia Grande me deu guarida por cinco anos, mas nunca me deu pertencimento.

Reconheço: a cidade oferece muito. Mas há algo maior que vive dentro de mim — e que nenhuma vista para o mar consegue calar. A solidão. A ausência de alguém em quem confiar. A falta de importância. Nunca fui importante, nem para os meus pais. Às vezes penso que, se tivesse morrido na infância, teria sido apenas uma boca a menos para alimentar. Fiz terapia, mudei de cidade, tentei construir laços, formar uma família, ser alguém que fizesse falta. Mas se eu morresse agora, neste exato momento, talvez ninguém notasse.

A solidão, essa amiga do peito, me acompanhou por tantas andanças que acabei voltando à terra natal. E lá, descobri que o esquecimento já havia feito morada. Não faço falta. Não sou lembrança. Sou silêncio.

Por isso, ao ver aquela foto da Praia Grande, senti saudade da geografia — da planície, da serra, do mar. Mas não das pessoas. Porque viver sem conviver é uma sina triste. E há paisagens que, por mais belas que sejam, não conseguem preencher o vazio de não ser esperado por ninguém.

sexta-feira, 7 de novembro de 2025

Crônica de um Quintal Selvagem

 


Hoje acordei com aquele pressentimento típico de quem mora na periferia com quintal grande e árvores frondosas: “Será que hoje é dia de cobra coral?” E não é que era? Acordei, rezei para o Anjo da Guarda, Santo Bento e, por via das dúvidas, considerei incluir São Jorge e Indiana Jones no pacote. Afinal, nunca se sabe quando um filhote de cobra faminta de 25 centímetros vai decidir fazer da sua perna o café da manhã.

A bichinha era magrinha, parecia recém-nascida e com fome. Talvez estivesse só procurando um delivery de roedores, mas acabou topando comigo e meu arrastão de folhas secas. Nosso encontro foi breve, intenso e sem registro fotográfico — porque, claro, eu estava sem celular. Uma pena, pois seria uma ótima prova em caso de denúncia por fogueiras ilegais. Sim, porque aqui, além de enfrentar serpentes, escorpiões e micos acrobatas, ainda temos que lidar com os fiscais de sofá, aqueles que denunciam com a mesma velocidade que esquecem que também fazem fogueiras quando o teiú invade a sala.

A Prefeitura, sempre muito preocupada com o meio ambiente (desde que o meio ambiente não esteja no quintal deles), proibiu as fogueiras. Alegam que o “folheiro” passa uma vez por mês. Uma vez. Por mês. Como se os escorpiões tivessem um calendário e dissessem: “Vamos esperar o caminhão, pessoal, nada de picadas até o dia 30!”

Mas eu, rebelde com causa e com queimaduras leves, fiz três fogueiras. Só de folhas secas, veja bem. Longe da fiação elétrica, com direito a dança da fumaça para espantar as cobras do chão e das árvores. Um ritual de sobrevivência que, infelizmente, não é contemplado nas diretrizes ambientais dos justiceiros de aplicativo.

E antes que alguém sugira: “Por que não coloca patos para  comer os escorpiões?” — já coloquei. Foram roubados. Sim, patos sequestrados. Aqui, até os animais têm que lidar com a insegurança pública. As galinhas-d’angola, coitadas, estão em greve. Não dão conta de comer todos os filhotes de escorpião que nascem aos montes, venenosos e independentes, como adolescentes em férias escolares.

O dia seguiu com um teiú fazendo turismo pelo quintal e uma trupe de micos na bananeira, provavelmente discutindo política ou o preço do mamão. E eu, entre uma fogueira e outra, sigo firme, esperando o próximo capítulo dessa novela selvagem. Quem sabe amanhã não aparece um tamanduá pedindo açúcar?

 

quarta-feira, 5 de novembro de 2025

O Salto das Minhocas e a Fé no Floral

 

Há dias em que a alma parece inquieta, como se tivesse perdido o compasso com o corpo. Uma fome que não é de comida, mas que se disfarça em carboidratos — pão, bolo, biscoito, qualquer coisa que traga a ilusão de acolhimento. Vinte e quatro horas por dia, o apetite não dá trégua. Tentei ginástica, caminhada, até respiração consciente. Melhorou, mas não resolveu.

Foi então que, num gesto de coragem silenciosa, decidi confiar no invisível. Comprei um floral de Bach por quarenta reais, desses de pronta entrega, com o rótulo que prometia alívio para “preocupações e sofrimentos diários”. E não é que funcionou? A compulsão por roer unhas — aquela mania de coelha urbana, sempre mastigando alguma quitanda — começou a se dissolver.

Mas o que me surpreendeu mesmo foi o sonho. No terceiro dia, ele veio como um filme em alta definição. Sonhei com uma ferida na perna, parecida com uma espinha inflamada, cheia de pus. Resolvi aplicar água oxigenada, dessas farmacêuticas. Quando começou a borbulhar, saltaram dali uns bichinhos finos, como minhocas em miniatura, e foram direto ao chão. Um salto digno de fazer inveja às pulgas. Tentaram voltar à ferida, mas não conseguiram. Acordei com a sensação vívida, olhei a perna, nada. Só o sonho.

Corri para a internet, porque comentar com os próximos — que seguem o espiritismo — seria ouvir que eram espíritos saindo do corpo. Como aquele vidro do basculante que quebrou com o vento. Estava lá há mais de dez anos, sem manutenção. Normal, eu diria.

Mas o sonho, do ponto de vista holístico, revelou-se um símbolo poderoso. A ferida era um portal. Os bichinhos, resíduos emocionais, padrões antigos, talvez até crenças que já não me servem. O salto deles foi a libertação. A tentativa de retorno, a prova de que não há volta quando se escolhe curar. O corpo fala, mas o inconsciente grita — e às vezes, sonha.

Desde então, estou mais leve. Continuarei com os florais de Bach. Eles cabem no meu orçamento e, mais importante, cabem na minha fé. Todo mês, um novo frasco para combater os pensamentos ruminantes, a compulsão por carboidratos e o bruxismo noturno. E nem me fale em nutricionista — já fui, e é como jogar dinheiro fora. Dietas que ignoram a alma e o bolso.

Estou confiando no floral. Porque às vezes, o que cura não é o que se vê, mas o que se sonha.

segunda-feira, 3 de novembro de 2025

Quem Ousa Profanar o Túmulo do Meu Amor?

 

 

Ontem, dia consagrado à memória dos mortos, em que os vivos se curvam diante da eternidade, pus-me a caminho do campo santo, onde jazem os ossos venerandos de meus antepassados. Mal havia iniciado minha peregrinação fúnebre, quando o destino, cruel e zombeteiro, lançou-me ao chão com violência inaudita: caí, como se a terra quisesse me engolir, e ralei os joelhos e a mão direita, esta que agora pulsa como se nela residisse toda a dor do mundo.

No instante da queda, fui tomada por um pavor lancinante, um medo ancestral de que mais uma vez os ossos se rebelassem contra mim, e eu, pobre criatura, fosse condenada ao suplício do gesso, à imobilidade forçada, à prisão do corpo. Hesitei em levantar-me, como se o chão fosse mais seguro que o incerto erguimento. Mas, ao me erguer, vi que o estrago era menor que o susto — ainda que o susto fosse imenso, como um trovão que ressoa na alma.

Enquanto ali jazia, caída como uma mártir sem altar, movimentei o pé com cautela, como quem interroga os ossos: estais íntegros? E eles, silenciosos, responderam com ausência de dor. Os joelhos, ainda que feridos, não clamavam por socorro. Mas a mão — ah, a mão! — esta que se interpôs entre meu corpo e o chão, esta sofre, esta geme, esta se ressente. Os punhos, embora não perfeitos, ainda obedecem à vontade.

E então, quando enfim alcancei o túmulo de meu esposo — aquele que em vida abominava o artifício e reverenciava a natureza — fui acometida por uma visão que me fez empalidecer como quem vê um fantasma ao meio-dia: flores de plástico! Sim, flores de plástico, profanas, impuras, indignas! E eu não as levei. Não tivemos filhos, seus irmãos precederam-no na morte, os sobrinhos são sombras distantes, o afilhado nunca existiu. Quem, então, ousa adornar o túmulo de meu marido com tais simulacros da beleza natural?

Não é pessoa de posses, pois as flores — miseráveis flores! — são das mais baratas, vendidas em lojas de conveniência como quem vende esquecimento. Ou então, é uma alma miserável, que transita entre túmulos como ladra de homenagens, arrancando flores de um para depositar noutro, como quem joga dados com os mortos.

E o mais estarrecedor: as visitas são regulares! As flores, azuis como o céu que ele tanto amava, foram colocadas há pouco, antes de minha chegada. Isto é obra de mulher, sim, mulher sem juízo, sem pudor, sem reverência! Pois ele, meu esposo, defensor da natureza, jamais aceitaria tal afronta. Flores artificiais! Que insulto à memória de quem viveu em comunhão com o verde, com o vento, com o ciclo sagrado da vida!

E agora, como me sinto? Não é preciso perguntar. Sinto-me como quem carrega um fardo invisível, um peso que não se vê, mas que esmaga a alma. Minha cabeça é um templo de angústia, e meu coração, um relicário de indignação.

quinta-feira, 30 de outubro de 2025

O Grande Teatro das Panelinhas

 


Na última edição da Conferência Municipal da Cultura, o palco estava montado, os holofotes acesos e os papéis bem distribuídos. Pena que o espetáculo não era sobre cultura, mas sobre como manter o sistema público em sua eterna dança das cadeiras — onde os convidados são escolhidos a dedo, os convites são sussurrados entre os iniciados, e o povo, esse detalhe inconveniente, é mantido à margem, como figurante sem fala.

A plateia? Funcionários municipais devidamente escalados para garantir que houvesse público. Afinal, não se pode realizar um evento vazio — seria um vexame para a encenação. Já os líderes religiosos, que poderiam contribuir com a vocação natural da cidade para o turismo espiritual, foram ignorados com a elegância de quem finge que não ouviu. Talvez porque fé não se encaixe bem no roteiro das panelinhas.

Durante os grupos de trabalho, surgiu a queixa clássica: “A população não reconhece o patrimônio material e imaterial da cidade.” Eis que uma alma ousada — eu — propôs algo concreto: um projeto de educação patrimonial com escolas, ônibus, guia, caderno de atividades, passeio pelos bairros, explicações sobre arquitetura e história das ruas. Uma ideia com começo, meio e fim. Um crime imperdoável.

A relatora, fiel ao script do teatro burocrático, ignorou solenemente a proposta. Preferiu registrar sugestões que não ameaçassem o status quo, como levar idosos às escolas para falar sobre seus saberes. Uma proposta que, embora poética, já se provou um fiasco: os idosos têm conhecimento, sim, mas não têm a didática para lidar com estudantes inquietos e professores que aproveitam o momento para corrigir provas e olhar para o além.

A conferência terminou como começou: com pompa, protocolo e uma sensação de que tudo foi feito para parecer que algo foi feito. A cultura, essa entidade abstrata, segue sendo usada como cortina de fumaça para encobrir a falta de ação concreta. E as panelinhas? Bem, essas continuam fervendo, temperadas com indiferença e servidas em pratos de porcelana institucional.

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

O Leste do Sol e o Oeste da Paciência


No coração pulsante da cidade — ou pelo menos de um quarteirão que pulsa mais por reclamações do que por vida — ergue-se o majestoso Prédio Leste do Sol. Um edifício misto, como dizem os corretores, com oito lojas comerciais e quatro apartamentos, todos orgulhosamente alugados. Um verdadeiro milagre da ocupação total, se não fosse pelo detalhe: o proprietário está a um latido de perder a sanidade.

O andar superior abriga um escritório que, além de trabalhar com algo que ninguém sabe ao certo, se especializou em um ramo muito mais lucrativo: a arte de implicar. Implicam com o barulho, com o cheiro, com o vento, com o sol que entra torto pela janela. Mas, claro, tudo isso em nome da política da boa vizinhança, aquela que eles mesmos rasgaram e jogaram pela janela — provavelmente reclamando que o papel fez sujeira.

A última pérola da saga? O cachorro do apartamento ao lado. Um ser de quatro patas, focinho curioso e latido honesto. Segundo os especialistas do andar de cima, o cão está aterrorizando os clientes. Sim, porque nada diz “terror” como um animal atrás de uma grade, latindo com a convicção de quem defende seu território — e talvez sua dignidade.

O prédio, diga-se de passagem, opera num universo paralelo onde convenção de condomínio e regulamento interno são lendas urbanas. O que existe é um manual invisível de “como reclamar sem resolver nada”. E o dono do cachorro? Um inquilino exemplar, solidário, e ainda por cima parente do proprietário. Ou seja, um combo que, para os reclamantes, é quase uma afronta pessoal.

E aí entra o dilema moderno: o direito dos animais. Como impedir um cão de latir? Treinamento? Terapia? Um podcast sobre mindfulness canino? Difícil. Afinal, o latido é sua forma de dizer “bom dia”, “sai do meu portão” e “esse território é meu, mesmo que eu não pague IPTU”.

No fim das contas, o cachorro não representa perigo real. Está atrás da grade, como um presidiário inocente, cumprindo pena por ser... um cachorro. Enquanto isso, o escritório do andar de cima segue firme em sua missão de transformar o Leste do Sol no epicentro da discórdia passivo-agressiva.

E o proprietário? Bem, ele continua ali, tentando administrar um prédio onde o sol nasce, mas a paciência se põe. 

domingo, 19 de outubro de 2025

O Filho que Não Pode Crescer

 

Se na primeira crônica falamos do filho como investimento, hoje tratamos do filho como ativo de longo prazo. E como todo bom ativo, ele precisa ser mantido — não educado, não emancipado, mas mantido. Crescer demais pode ser perigoso. Trabalhar, então, é quase um ato de rebeldia.

A nova estratégia é simples: manter o filho em estado de estudante crônico. Não importa se ele aprende, importa se está matriculado. Faculdade? Sim, desde que seja aquela que não exige presença. Curso técnico? Claro, desde que não interfira nos horários de sono. O importante é o certificado de matrícula, aquele papel mágico que prolonga a pensão até os 25 anos. É o novo RG da dependência.

A mãe, gestora desse fundo de pensão emocional, sabe que estimular o filho a trabalhar pode ser um tiro no pé. Afinal, um filho com salário é um filho com autonomia. E autonomia, nesse contexto, é prejuízo. Melhor mantê-lo em casa, com Wi-Fi, videogame e um discurso pronto: “Estou focado nos estudos”. Estudo esse que, curiosamente, nunca termina.

O pai, por sua vez, paga. Paga porque ama, paga porque a lei manda, paga porque não quer brigar. E o filho, esse eterno adolescente de barba feita, vive entre a creche emocional e o cofre judicial. Não precisa trabalhar, não precisa se formar, não precisa sair de casa. Basta existir — e estar matriculado. O custo da imaturidade planejada
O resultado? Uma geração que chega aos 30 sem saber o que é um contracheque, sem entender o valor de um esforço, sem ter enfrentado a vida sem rede de proteção. São adultos com corpo de homem e alma de dependente. E tudo isso em nome de uma pensão que, ironicamente, deveria ser ponte — e virou prisão.

A reflexão que incomoda
Estamos criando filhos ou dependentes? Educando cidadãos ou cultivando pensionistas? Porque no fim, o que parece proteção pode ser sabotagem. E o amor, quando confundido com controle, deixa de ser afeto e vira estratégia.

 Boa leitura e boa digestão. Porque domingo também é dia de encarar verdades que ninguém quer imprimir.

 

 

O Pequeno Investimento de Longo Prazo

 

Era uma vez, em um país tropical abençoado por Deus e bonito por natureza, onde o amor sempre teve um quê de estratégia e o romantismo, um leve aroma de contrato social. Casar por amor? Claro, desde que o amor venha com escritura, pensão e, quem sabe, um carro quitado.

Nos tempos de nossas avós, o plano era simples e eficaz: engravidar solteira. Bastava um deslize calculado e pronto — o pai da moça, armado de honra e espingarda, resolvia tudo no altar. O futuro da jovem estava garantido, com sobrenome novo e um marido que, mesmo relutante, agora era patrimônio consolidado. O bebê? Um bônus. A barriga era o boleto, o casamento, o pagamento.

Com o passar dos anos, a legislação evoluiu e, com ela, a criatividade. Veio o divórcio, a pensão alimentícia e o novo mantra: “filho é investimento”. Engravidar virou estratégia de carreira. E por que parar em um pai, se o mercado oferece vários? Multiplicaram-se os genitores, cada um contribuindo mensalmente com seu quinhão. Três criança, três pensões. É o milagre da multiplicação — não dos pães, mas dos boletos pagos.

E agora, em tempos de afetividade líquida e vínculos flexíveis, surge o pai afetivo. Aquele que não gerou, mas amou. E amar, como sabemos, tem consequências jurídicas. O afeto virou débito automático. Some-se a isso o Bolsa Família e temos o combo perfeito: uma criança que rende mais que poupança. Biológico, afetivo e governo — três fontes de renda para um único CPF mirim.

Enquanto isso, o pequeno herdeiro passa os dias na creche, financiada pelo município, e os fins de semana são divididos entre os pais. A mãe? Livre para empreender, estudar ou simplesmente descansar. Afinal, criar filhos nunca foi tão fácil — desde que se saiba jogar com as regras do sistema.

Mas antes que alguém se ofenda, vale lembrar: esta crônica não é sobre todas as mulheres, nem sobre todas as mães. É sobre um fenômeno social que escancara as brechas de um sistema que, em nome da proteção, virou palco para estratégias de sobrevivência — e, por vezes, de oportunismo.

A pergunta que fica é: quando o afeto virou moeda? E o que acontece com a criança quando ela deixa de ser investimento e vira adulto — sem pensão, sem creche, sem bônus?

Porque no fim, o que parece vantajoso hoje pode ser apenas mais uma conta a vencer amanhã.

Boa leitura e boa reflexão. Porque domingo também é dia de pensar.

quarta-feira, 15 de outubro de 2025

O segredo da bolsa

 Um frio súbito percorreu-lhe a espinha quando Ana pisou na antiga estação de trem — palco onde, décadas antes de seu nascimento, seu avô partira para nunca mais regressar.

O vento parecia sussurrar segredos que o tempo não ousara apagar.

Avistou, ao longe, a casa materna — outrora viva em risos e perfumes, agora muda, cansada de esperar.
A mãe, outrora atriz de palcos luminosos, terminara seus dias como sombra de si mesma, esquecida pela crítica e pelo público, mas fiel às próprias ilusões.
Vivendo de lembranças, encenava para as paredes o que o mundo negara aplaudir.

— A chave está embaixo do tapete! — bradou o vizinho, fechando o portão como quem fecha um coração.

Ao girar a fechadura, um hálito de pó e maquiagem antiga subiu-lhe às narinas. O ar estava saturado de perfumes vencidos, lágrimas secas e aplausos imaginários.
— Mãe... onde você está?

Nenhuma resposta. Apenas o eco dos próprios passos.
No quarto, sobre a penteadeira descascada, repousava uma pequena urna improvisada. A inscrição tremida dizia:
Beatriz de Alencastro — 1942–2024.
Ao vê-la, o peso do abandono caiu sobre Mirela como um pano de veludo negro.

— Perdão, mãe, por tê-la deixado sozinha na última cena — murmurou.

Com mãos trêmulas, retirou os brincos e o colar, cortou os cabelos e vestiu-se de luto. Cumpriria o ritual do esquecimento, como quem apaga os refletores de um teatro.
Entre caixas de figurinos e roteiros amarelados, encontrou uma bolsa de couro gasto, costurada à mão, objeto que sempre acompanhara a mãe nas turnês e que agora guardava o mistério de um passado não ensaiado.

Passou os dedos pela superfície ressecada, mas a bolsa, velha de tantas viagens, rasgou-se ao toque.
De dentro, como relíquia do acaso, surgiu uma pequena bota infantil e um colar de ouro, guardado entre panos finos.

— Mãe... o que mais escondias de mim?

Dentro da bota havia uma carta, dobrada com precisão de atriz que sabe o valor da última fala. Ana a desdobrou, e a letra trêmula de Beatriz ressuscitou no papel:

“Minha filha,
Quando te encontrei à porta do camarim, envolta em panos, o mundo desabava sobre mim. Eu, que perdera o papel principal e a esperança, ganhei de súbito o sentido da vida.
Foste entregue a mim como bilhete do destino.
Talvez desejes buscar tua origem — que seja, mas leva contigo este colar, talismã de sorte e de perdão.
Se o teatro é mentira, o amor é a única verdade que resta.
Tua mãe, Beatriz.”

Ana levou o colar ao peito, sentindo que a joia pulsava como um coração exilado.
As lágrimas lhe turvaram a visão quando um toque à porta a trouxe de volta ao mundo.

— Procuro Beatriz de Alencastro — disse um homem grisalho, de voz grave.
— Ela se foi. Restam apenas lembranças.
— E a filha dela, Ana?
— Sou eu.

— Vim buscar a bolsa que lhe deixei anos atrás. —
Hesitante, ela mostrou o objeto rasgado. O homem tocou o couro, como quem acaricia um passado que já doeu demais.

— Dentro dela costurei um segredo. — Retirou um pequeno papel, escondido no forro, e leu em voz embargada:

“Sou músico errante. Minha esposa morreu no parto.
Peço à atriz Beatriz que crie minha filha, até que o destino me permita reencontrá-la.”

O silêncio que se seguiu foi denso como cortina prestes a cair.
O homem ergueu os olhos marejados:
— Cumpri minha pena e minha promessa. Vim buscá-la, Ana.

Ela o fitou em espanto. Tudo o que sabia sobre si mesma desfez-se como cenário de teatro ao fim do espetáculo.
Entre a luz e a sombra, o som e o silêncio, compreendeu-se filha de duas ruínas e de uma redenção.

terça-feira, 7 de outubro de 2025

Desabafo de uma inicialmente


Humilhação. Eis aí uma palavra que deveria vir estampada na capa de qualquer manual de sobrevivência artística. Se você sonha em ser escritor, prepare-se: não é só o coração que vai sofrer, é o pulso também — tendinite é praticamente um troféu da profissão.

A vida do aspirante a escritor é uma mistura de fé cega com masoquismo refinado. A gente passa horas em frente ao computador, escrevendo com a mesma dedicação de quem está salvando o mundo, só que sem o reconhecimento, sem o salário, e sem o mundo salvo. No máximo, salva-se um arquivo em .docx.

E quando finalmente se termina um livro — aquele filho literário que você gerou com dor, suor e café — vem a parte mais cruel: ninguém quer comprar. Nem de graça. Distribuir é um ato de generosidade que beira o desespero. E mesmo assim, o leitor olha a capa, vira o nariz e pergunta: “Mas esse autor é famoso?” Não, meu querido, não sou. Mas o texto é bom. Só que no Brasil, talento sem fama é como Wi-Fi sem senha: ninguém acredita que existe.

A saída? Concursos literários. Antologias. A esperança de ser selecionado e, com sorte, poder comprar o próprio livro. Sim, você leu certo: comprar o próprio livro. Porque ser publicado não significa que você vai receber um exemplar. É tipo ser convidado pra festa e ainda ter que levar o bolo.

Pois bem, fui selecionada. Assinei o contrato com a empolgação de quem acha que agora vai. Dois dias depois, recebo um e-mail da editora. “Relendo seu texto, percebemos que ele não se encaixa no tema do concurso. Poderia enviar outro?” Claro, com todo prazer. Só que não.

Agora estou aqui, encarando o cursor piscando como se fosse um desafio pessoal. A vontade é de não mandar nada. De fingir que não vi o e-mail. De mudar de nome e começar uma carreira como vendedora de tapetes. Mas como sou iniciante, não posso me dar ao luxo de me indispor com quem ainda dá oportunidade aos desconhecidos.

E é nesse momento que entendo por que escritores consagrados se tornam difíceis de lidar. Não é arrogância. É vingança. Vingança por cada texto ignorado, por cada “não se encaixa no tema”, por cada livro que ninguém quis ler — nem de graça.

domingo, 5 de outubro de 2025

Carta aberta sobre o Velho Antero e a crueldade disfarçada de cuidado

 


Aconteceu ontem, aqui mesmo, na nossa cidade. O Velho Antero, de 95 anos, foi retirado de sua casa e internado em um asilo como quem se livra de um móvel antigo. Sem aviso, sem processo, sem respeito. Morava com a sobrinha caçula, Dona Filomena, que, mesmo enfrentando as sequelas de um câncer de mama e vivendo de dietas restritivas, cuidava do tio com dignidade e afeto.

A casa era simples, mas cheia de história. Lá também vivia o irmão mais velho, acometido por um câncer de estômago. Era uma família lutando junta, como tantas outras. Até que, misteriosamente, uma assistente social apareceu e, num estalar de dedos, decidiu que Filomena não podia mais cuidar do tio. Antero foi levado no mesmo dia. Sem tempo para despedidas, sem chance de defesa.

A sobrinha chorou como quem perde um pedaço da alma. E eu, que conheço todos os envolvidos, não consigo tirar da cabeça que essa denúncia partiu de alguém muito próximo. Alguém que se faz de amiga, mas vive às custas dos outros. Alguém que almoça aos domingos, visita na hora do café, e se oferece como ombro amigo quando há comida envolvida. Sim, estou falando da Lívia.

Em tempos de escassez, ela é abundante em oportunismo. E tenho por mim que essa denúncia foi feita com um único objetivo: fragilizar Filomena, para que ela se torne dependente emocional — e assim, mais fácil de explorar. Porque Lívia não convive com pessoas, convive com benefícios. E quando não há mais o que sugar, ela descarta. Como fazemos com o lixo.

O que fizeram com  Antero foi mais do que uma transferência. Foi um ato de violência emocional. Tiraram um idoso do seu mundo, dos seus afetos, e o colocaram entre estranhos. E tudo isso com uma rapidez que não se vê nem quando alguém realmente precisa de uma vaga em um asilo.

Essa carta é um grito. Um alerta. Um pedido de consciência. Que não deixemos que o cuidado seja usado como desculpa para a crueldade. Que não permitamos que os nossos idosos  sejam tratados como objetos. E que, acima de tudo, saibamos reconhecer os parasitas emocionais que se alimentam da dor alheia.

Assinado:
Alguém que viu, sentiu e não vai se calar.

 

O Despacho do Velho Antero

 

 Na cidade onde até os pardais parecem cochichar segredos, aconteceu um episódio digno de novela mexicana — daquelas que passam depois do almoço, quando o calor faz a gente duvidar da própria sanidade. O protagonista? Velho Antero, 95 anos de pele marcada pelo tempo e pelo câncer, que foi despachado para um asilo como quem manda um sofá velho para o depósito da prefeitura.

Antero morava com a sobrinha caçula, Dona Filomena, mulher de fibra, magra como uma promessa de dieta milagrosa, lutando contra as sequelas de um câncer de mama e contra a inflação que transforma o arroz em artigo de luxo. Filomena cuidava do tio com o que tinha — e, principalmente, com o que não tinha. Ainda assim, mantinha o velho em casa, entre os cheiros familiares e os barulhos conhecidos, como quem protege um pedaço da própria história.

Mas eis que, num dia qualquer, surge uma assistente social. Sim, do nada. Como quem aparece para fiscalizar o uso do sal na feijoada de domingo. E, com uma autoridade que beira o divino, decide que Filomena não pode mais cuidar do tio. Sem aviso, sem conversa, sem café. Antero foi levado para o asilo no mesmo dia. Rápido como quem cancela assinatura de streaming.

Filomena chorou como se tivessem enterrado o tio. E, de certa forma, enterraram mesmo — não o corpo, mas a rotina, os afetos, o direito de envelhecer entre os seus. A notícia chegou até mim pela Lívia, minha vizinha. Ah, Lívia... Se eu fosse dar um apelido, seria “parasita gourmet”. Ela não suga sangue, suga refeições. Almoça aos domingos na casa da Filomena, visita no meio da semana na hora do café, e ainda se faz de amiga quando o cardápio é bom. Já fui vítima. E não fui o único.

Em tempos de carne com preço de joia e pão que parece feito de ouro, Lívia não se constrange. Economiza no mercado e gasta na cara de pau. E foi aí que a pulga atrás da minha orelha começou a coçar. A rapidez com que Antero foi internado, a ausência de processo, a vaga que apareceu como milagre... Tudo muito conveniente. Principalmente para quem gosta de se fazer necessária.

Tenho cá minhas suspeitas — e elas têm nome: Lívia. Aposto que foi ela quem fez a denúncia anônima. Talvez tenha dito que Filomena alimentava o tio com ração de gato. Ou que ele dormia no forno. Não sei. Mas sei que ela é capaz. E mais: capaz de provocar a depressão da amiga só para se oferecer como ombro amigo — desde que o ombro venha com café e bolo.

Crueldade tem muitas formas. Algumas usam salto alto e batom nude. Lívia convive com quem lhe rende algo. Se não rende, ela descarta. Como fazemos com o lixo. E Antero, que viveu quase um século, foi tratado como entulho emocional. Tirado do mundo que conhecia, jogado entre estranhos, como se o afeto fosse um luxo que não cabe no orçamento.

E assim seguimos, numa sociedade onde o velho é peso, a amizade é moeda, e a solidariedade tem prazo de validade — geralmente até a sobremesa acabar.

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

Presentes que brotam


Sem espaço para plantar, uma moradora de apartamento encontrou uma forma criativa e eficaz de contribuir com o meio ambiente: presentear amigos e familiares, que possuem espaço para plantar, com mudas de árvores frutíferas e sementes de hortaliças e flores. A iniciativa, que começou em maio de 2025, tem como objetivo estimular o cultivo doméstico e resgatar tradições alimentares esquecidas.

Durante uma visita ao afilhado, a moradora levou três mudas: laranja vermelha, laranja lima e limão siciliano — este último conhecido pelo sabor marcante e alto valor comercial. Junto às mudas, ela misturou sementes de almeirão japonês à terra, hortaliça resistente e nutritiva que se espalha facilmente pelo vento, mas que nunca é encontrada nos supermercados.

“A população desaprendeu a plantar. Hoje, todo mundo quer comprar, até cebolinha. Se houvesse fartura nas hortas caseiras como antigamente, talvez reclamassem menos”, afirma. Para ela, cultivar alimentos é mais do que uma prática sustentável — é um gesto de autonomia e resistência diante da cultura do consumo.

A ação se estendeu a outros encontros. Em visita à prima, ela levou uma muda de laranja vermelha e sementes de jiló e margaridas. Em uma reunião com idosas, presenteou três participantes com sementes de capuchinha, planta comestível e ornamental. Ao longo do ano, decidiu doar exclusivamente mudas de laranjeiras, como forma de acompanhar o cuidado e o resultado de seu gesto. “São espécies que não se encontram no comércio. Se em 2026 estiverem produzindo, saberei quem cuidou”, explica.

Mesmo sem terra para plantar, a moradora planeja adquirir sementes raras pela internet e produzir mudas em casa. Seu objetivo é claro: resgatar, silenciosamente, a tradição de cultivar alimentos e espalhar raízes de consciência por onde passa.

quarta-feira, 24 de setembro de 2025

O Mistério das Penas na Piscina

 

O preço da água subiu como foguete em dia de lançamento. E junto com a taxa de esgoto, consome quase todo o salário do mês — como um hóspede indesejado que chega, se instala e ainda exige jantar. A manutenção da casa virou um luxo: trabalho, dinheiro e tempo livre jogados ao vento, literalmente. Foi então que tomei uma decisão drástica, porém sensata: esvaziei a piscina.

Adeus preocupações com dengue, zika e companhia. A água se foi, e com ela, a paz de espírito. Parti para uma viagem merecida, longe das contas e das larvas. Quando voltei, a piscina estava lá, seca como prometido, com uma leve garoa que não ameaçava encher nada. Evaporação, pensei. Tudo sob controle.

Mas eis que surge o mistério.

Ao me aproximar, vi algo que me fez parar: penas. Muitas penas. Penas de galinha, grudadas no fundo da piscina como se tivessem sido coladas por um artista macabro. Sem ossos, sem sangue, sem bico, sem unhas. Apenas penas. E poeira. Poeira que se aliou às penas e formou uma crosta tão resistente que precisei de uma enxada para raspar.

E agora, caro leitor, começa o enigma.

Não tenho criação de galinhas. Os vizinhos também não. Então, de onde vieram aquelas penas?

A primeira suspeita: minha irmã. Dona de um temperamento que mistura inveja com vingança, talvez tenha se irritado por não mais desfrutar de um bem que nunca lhe pertenceu — e que jamais ajudou a manter. Seu lema é claro: você trabalha, paga, e eu desfruto. Teria ela jogado penas como forma de protesto passivo-agressivo?

Segunda hipótese: um animal. Escorraçado de algum galinheiro, encontrou na piscina um refúgio para sua última refeição. Mas a ausência de ossos, bico e unhas me intriga. Teria sido uma galinha fantasma?

Por fim, a teoria mais esotérica: algum charlatão, desses que prometem milagres em troca de ingredientes estranhos, pediu a uma alma desesperada penas de galinha para um ritual. E, sem cerimônia, despejou tudo ali, como se a piscina fosse altar.

E você, leitor atento e curioso: o que acredita que aconteceu? Teria sido vingança, feitiçaria ou apenas uma galinha sem rumo e sem corpo?

A piscina continua seca. Mas o mistério, esse, está longe de evaporar.

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

Terça-feira de Alerta e Desconfiança

 

Na noite da última terça-feira, 9 de setembro de 2025, uma moradora de um bairro residencial viveu momentos de tensão e inquietação ao se deparar com uma sequência de situações incomuns que levantaram suspeitas sobre sua segurança.

Por volta das 22h30, ao descer para descartar o lixo, a mulher avistou um homem parado na calçada, parcialmente oculto pela sombra de uma árvore. Sem dar muita atenção à figura, concentrou-se na paisagem iluminada pela lua. No instante em que retornava ao prédio, foi abordada por um motociclista que havia acabado de estacionar. Após retirar o capacete, o homem se aproximou e fez um alerta direto:

“Você conhece aquele homem? Ele está lhe vigiando. Tome cuidado. Hoje as coisas estão muito perigosas.”

Surpresa com a abordagem, a moradora agradeceu e confirmou que já havia sentido algo estranho, o que a fez entrar rapidamente no prédio. Após trancar o portão e a porta de seu apartamento, enviou um áudio à irmã, com quem havia combinado uma visita à casa da família na periferia — imóvel que permanece fechado e precisa ser monitorado para evitar invasões.

No dia seguinte, a irmã não apareceu conforme o combinado. À noite, ao confrontá-la, ouviu como resposta um simples “eu esqueci”, seguido da informação de que ela teria ido até o local, mas não chegou a entrar. A moradora, preocupada com sua segurança e refletindo sobre sua condição de solteira e sem herdeiros diretos, ironizou: “Pelo visto, vou ter que fazer meu testamento antes do previsto.”

Na quarta-feira, no mesmo horário da noite anterior, ela voltou a descer para colocar o lixo. Desta vez, encontrou um jovem sentado na calçada em frente ao prédio. Após depositar o lixo na lixeira e subir rapidamente, observou pela janela que o rapaz havia desaparecido. A coincidência a deixou ainda mais apreensiva.

A situação foi compartilhada com outra irmã, que reagiu com preocupação e alertou para um padrão comum em crimes urbanos:

“Os malfeitores costumam observar as vítimas em potencial por meses antes de cometerem o delito.”

Reflexão e Alerta

O episódio levanta questões sobre segurança em áreas residenciais sem sistemas de interfone ou vigilância, além de destacar a importância da rede de apoio familiar em momentos de vulnerabilidade. A moradora segue atenta, enquanto reflete sobre os riscos e a necessidade de medidas preventivas diante de comportamentos suspeitos.

 

domingo, 7 de setembro de 2025

Desfile cívico em 7 de Setembro de 2025 expõe crianças ao sol escaldante e ao descaso institucional

 


— O que deveria ser uma celebração do civismo e da independência nacional se transformou, neste domingo, em um retrato preocupante da negligência e da espetacularização infantil. O desfile cívico realizado na principal avenida da cidade expôs crianças — inclusive de creche — a condições insalubres, sob o sol forte da manhã, em um asfalto cuja temperatura ultrapassava os 35 °C.

A reportagem esteve presente e constatou que, enquanto autoridades discursavam por mais de 45 minutos em um palanque coberto e abastecido com água, crianças aguardavam em formação, muitas delas descalças, representando povos originários e transplantados. A cena, que deveria evocar respeito à diversidade cultural, acabou revelando um cenário de sofrimento físico e desatenção institucional.

Pais como espectadores e cinegrafistas

O comportamento dos pais também chamou atenção. Muitos invadiram o espaço reservado às escolas para filmar e fotografar seus filhos, ignorando protocolos e o próprio sentido do evento. O civismo deu lugar à vaidade digital, como se o único propósito fosse alimentar redes sociais com imagens da “cria”, em detrimento da segurança e do bem-estar dos pequenos.

 Educadores calçados, crianças descalças

Professores e organizadores, por sua vez, pareciam mais preocupados em exibir o resultado de seus ensaios do que em garantir condições adequadas para os participantes. Enquanto os adultos estavam devidamente calçados, as crianças marchavam sobre o asfalto quente, em trajes simbólicos, mas sem qualquer proteção para os pés — uma escolha pedagógica difícil de justificar.

 Autoridades em conforto, crianças em sofrimento

No palanque, autoridades locais discursavam longamente, ignorando o tempo excessivo de espera imposto aos jovens participantes. Em vez de uma cerimônia breve e simbólica — com agradecimentos, execução dos hinos e início imediato do desfile — o evento se arrastou, submetendo os menores a mais de duas horas sob calor intenso.

 Reflexão e responsabilidade

A pergunta que fica é: qual a mensagem que se pretende transmitir às novas gerações? Que o patriotismo se mede pelo sofrimento físico? Que o civismo é um espetáculo para adultos, enquanto crianças são figurantes descartáveis?

A denúncia está feita. Cabe agora à Secretaria Municipal de Educação avaliar os excessos e rever protocolos. O desfile cívico não pode ser palco de negligência. Se fossem seus filhos, descalços sob o sol, você aceitaria?

 

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Ipês amarelos e outras formas de resistência

 


Setembro começou mais fresco, como quem abre a janela devagar para não assustar a primavera que ainda espreguiça. O céu, meio encoberto, parecia indeciso — talvez se perguntando se vale a pena mesmo dar espaço para flores em tempos de tanta secura.

E, no entanto, ali estavam eles: os ipês amarelos. Em plena estiagem de mais de dois meses, florescem com insolência, como quem não lê manchetes nem boletins de meteorologia. Enquanto a grama murcha, eles vestem gala.

A cena é gratuita, democrática e, convenhamos, quase debochada. O cidadão sai para pagar contas — esse esporte nacional sem medalha — e dá de cara com um espetáculo que não pediu, não esperava e, ainda assim, melhora o dia. É como se a natureza, em um raro gesto de generosidade, oferecesse desconto à vista: paga-se em admiração, leva-se esperança no troco.

Os polinizadores agradecem a fartura, e as almas cansadas das desilusões cotidianas também. Basta levantar os olhos e encontrar uma copa dourada para lembrar que há formas discretas de renascer. Os ipês, afinal, não se dão ao trabalho de lamentar a seca. Eles florescem — e pronto.

Talvez esteja aí a maior lição que o calendário nos entrega sem protocolo oficial: em tempos de escassez, sempre haverá uma árvore lembrando que resistir, às vezes, é simplesmente florescer quando ninguém espera.

 

domingo, 31 de agosto de 2025

Agosto, o Silêncio que Respira

 


O último dia de agosto escorria pelas janelas como uma lágrima tímida. O céu, de um cinza pálido, parecia refletir o que havia dentro dela: um cansaço antigo, uma solidão que não sabia mais nomear.

Ela caminhava pela praça, onde as folhas secas dançavam ao vento como se zombassem da imobilidade dos seus dias. Sentou-se num banco de madeira gasto, e ali, como quem conversa com o tempo, murmurou:

— Agosto... mais um mês que termina sem que ninguém tenha notado minha existência.

Um senhor de chapéu, que lia um jornal ao lado, levantou os olhos por um instante. Ela tentou sorrir, mas ele apenas voltou à leitura, como se o mundo tivesse decidido que ela era invisível.

— Dizem que agosto é o mês do desgosto — ela continuou agora falando com o vento. — Mas para mim, todos os meses são iguais. A solidão não tem calendário.

Uma jovem passou com um grupo de amigos, rindo alto. Ela tentou se aproximar, puxar conversa:

— Que dia bonito, não é?

— Uhum — respondeu a moça, sem parar de andar.

Silêncio. Sempre o silêncio. Como se suas palavras fossem feitas de fumaça.

Ela voltou a olhar para o chão, onde uma formiga carregava um pedaço de folha maior que ela.

— Eu tento, sabe? Tento me encaixar. Não me visto melhor que ninguém, falo das mesmas coisas... mas parece que minha presença incomoda. Ou pior: não é sequer notada.

Um rapaz sentou-se ao seu lado. Ela respirou fundo. Talvez... talvez fosse diferente.

— Oi — disse ela, com um sorriso que carregava esperança.

— Oi — ele respondeu, olhando o celular. — Só esperando alguém.

Ela assentiu, tentando não parecer decepcionada. Mas ele se levantou antes que o tempo pudesse criar qualquer ponte.

— Toda mulher tem uma história de amor, não tem? — ela disse ao banco vazio. — Um homem que corre atrás, que insiste, que vê nela algo único. Mas comigo... no primeiro não, eles somem. Como se eu fosse feita de névoa.

O céu começou a escurecer. Agosto se despedia com um vento frio e um sussurro de folhas.

Ela se levantou, abraçando a si mesma.

— Talvez eu seja feita de silêncio. E o mundo, de barulho demais pra me ouvir.

E caminhou, como quem dança com a ausência, deixando atrás de si apenas o som leve dos passos e um perfume de saudade.

domingo, 24 de agosto de 2025

O Arco-Íris no Chão

 

Era pouco depois das sete da manhã quando a luz entrou — não invadindo, mas pedindo licença pelas frestas da persiana mal abaixada. No minúsculo apartamento do quarto andar, entre uma pilha de livros esquecidos e uma planta que ainda insistia em crescer, algo aconteceu. Um feixe de luz atravessou o copo de vidro deixado na mesa da noite anterior e se partiu em sete. Um arco-íris, tímido e pequeno, se desenhou no chão.

O morador do 7 — nome irrelevante para esta história — estava sozinho, como sempre. A solidão já era mobília antiga, mais presente que a geladeira ou o sofá manchado. Mas aquela manhã era diferente. O homem, em sua rotina exata de silêncio e café preto, parou. Havia um arco-íris no chão do seu apartamento.

Na física, sabemos: é apenas refração da luz. Mas no coração, era mais.

As três maiores religiões monoteístas também acreditam que arco-íris não são só fenômenos ópticos. No judaísmo, o arco-íris é pacto — o sinal de Deus a Noé de que nunca mais destruiria a Terra com um dilúvio. Um lembrete de que mesmo após o fim, há promessa de recomeço.

No cristianismo, é ponte entre o divino e o humano. Um céu que se dobra para tocar o chão, como se Deus quisesse lembrar ao homem que ainda está por perto, mesmo quando tudo parece em ruínas.

No Islã, embora o arco-íris não tenha a mesma centralidade, há a reverência às cores como manifestação da criação. O profeta Muhammad teria falado sobre os sinais de Allah em tudo — e quem vê um arco-íris sem sentir reverência talvez precise reaprender a olhar.

Entre os povos originários das Américas, o arco-íris também foi mais que cor. Para os maias, era ligado à deusa Ix Chel, senhora da lua, da fertilidade e dos ciclos da vida — um presságio de mudança. Para os incas, ponte para o mundo espiritual. E os astecas viam nele um sinal de comunicação entre os deuses e a terra. Um código secreto em cores.

Deitado no chão, com os olhos fixos naquele fragmento de luz colorida, o homem não pensava em tudo isso — mas talvez sentisse. A beleza sem motivo, a aparição breve, a lembrança de que algo fora do comum ainda pode acontecer, mesmo num espaço de 28 metros quadrados.

Quando o sol girou e o arco-íris se desfez, ele permaneceu ali mais um tempo. Sabia que não voltaria amanhã, ou talvez nunca mais. Mas bastou um. Um arco-íris no chão. Um instante de paz. Um pacto silencioso com algo maior — fosse Deus, fosse a luz, fosse ele mesmo.

domingo, 17 de agosto de 2025

Minha mãe, minha prisão

Mãe, Minha Prisão

Dizia-se, nos velórios da cidade, que a morte de uma mãe era o maior pesadelo que podia atingir um filho. E, quando pequenos, isso parecia incontestável: mãe era colo contra os trovões, era leite que curava febres, era oração contra o escuro. Mas a vida, com sua ironia secreta, ensinava que havia presenças mais sufocantes que ausências.

Lia sempre acreditara que os filhos lhe pertenciam. Dois meninos, tão dela quanto os anéis herdados da avó. Desde cedo, aprendeu a enredá-los em torno de si. A psicologia daria nome: síndrome de enredamento familiar. Os vizinhos, porém, chamavam apenas de zelo.

Na infância, o mais velho não podia brincar no quintal sem que a mãe vigiasse da janela. O caçula nunca pôde dormir na casa de um amigo. “Mãe é o mundo inteiro”, dizia Lia, enquanto lhes afagava os cabelos. Eles acreditavam. E, assim, aprenderam que desejar algo além dela era quase pecado.

Certa vez, aos onze anos, o caçula ousou pedir:
— Mãe, posso ir ao acampamento da escola?
Lia ergueu os olhos da costura.
— E deixar sua mãe sozinha? Deus me livre! Você não precisa dessas coisas para ser feliz.
— Mas todos vão... — insistiu ele, num fio de voz.
Ela suspirou fundo, como quem carrega o peso do mundo.
— Então vá. Se quiser me ver morta de tristeza, vá.

O menino calou. E naquela noite aprendeu que seus sonhos tinham o poder de feri-la. Mais tarde descobriria, nos livros de psicologia, que aquilo era chamado de culpa introjetada. Na vida real, chamava-se silêncio.

Os anos passaram. O mais velho mudou-se para outro estado, mas nunca cortou o cordão. Ligava diariamente, como se respirasse pelo pulmão da mãe. O caçula ficou, guardando passaportes sem carimbos e diplomas não usados. Quando recebeu uma proposta de trabalho no exterior, vacilou dias até revelar.

— Mãe, eu recebi uma oportunidade fora do país... — murmurou, com medo da própria coragem.
Lia ajeitou o lenço no pescoço e ergueu a voz.
— Você vai me abandonar, é isso?

Ele tentou argumentar:
— Não é abandono, mãe. É vida. A minha vida...

Mas o silêncio dela, carregado de lágrimas calculadas, foi sentença.

Numa ligação, o irmão tentou consolá-lo:
— Aguente firme, mano. Você sabe como a mãe é... sempre precisou de nós para existir.
O caçula respondeu, com amargura:
— Precisar não é viver. É aprisionar. Ela nunca nos viu como filhos, mas como extensão dela mesma.
Do outro lado, o mais velho suspirou.
— Talvez seja isso. Nunca cortamos o cordão.

Lia, que ouvira a conversa por trás da porta, irrompeu furiosa:
— E quem disse que pedi para nascerem? Já que vieram, o mínimo é ficarem comigo!

Era a velha dinâmica da dependência narcísica: a mãe que não sabia existir sem se abastecer dos filhos. E eles, reféns da culpa, aceitavam.

O acidente de Lia — quedas, ossos frágeis, visão turva — apenas consolidou as correntes. Agora, além da culpa, havia cadeira de rodas, remédios, exames. “Não quero estranhos me tocando”, repetia, recusando cuidadores. “Vocês são meus braços, meus olhos, minha vida.”

Eram frases de amor ou de cárcere? Os filhos nunca souberam responder.

Quando a morte finalmente se aproximou, não veio como pesadelo, mas como alívio. A vizinhança dizia: “Que filhos dedicados!”. Poucos percebiam que a dedicação era grilhão, não escolha. No velório, o caçula chorava, mas seu peito, em segredo, respirava. A psicologia chamaria de luto ambivalente: dor e liberdade no mesmo sopro.

— Ela se foi... — murmurou o irmão mais velho.
— Ela se foi, mas continua aqui dentro, como corrente, — respondeu o caçula, tocando o peito. — Será que um dia a gente vai conseguir existir sem medo?

Na velhice, já homens cansados, conversavam sobre o passado.
— A gente nunca viveu de verdade, — disse o caçula, olhando a chuva pela janela.
— Vivemos sim, mas dentro da vida dela, — replicou o mais velho.

E foi nesse instante que compreenderam, enfim, o diagnóstico tardio: nunca haviam sido donos de si mesmos.

Ainda assim, havia esperança. O caçula começou a escrever memórias, não como vingança, mas como testemunho. Queria que outras famílias reconhecessem os sinais, que outros filhos entendessem a diferença entre cuidado e prisão.

No caderno, rabiscou uma frase que parecia síntese e súplica:

“Amar não é deixar de existir por alguém.”

E naquela frase havia, pela primeira vez, a libertação que nunca vivera em vida.