Dona Lúcia — não era esse o nome de batismo, mas foi esse que adotou para o mundo — sempre teve um dom inato: convencer. Convencia com a voz mansa, com o olhar calculado, com o silêncio ensaiado nos momentos exatos. Era o tipo de mulher que dizia "eu só quero o que é justo", enquanto distribuía cartas marcadas na mesa da vida.
Quando conheceu Henrique, ele vinha com passado — dois filhos do primeiro casamento, uma ex-mulher que ainda mandava notícias pelos cadernos escolares e uma herança emocional que ele carregava no bolso como quem leva um retrato amassado. Lúcia não se incomodou. Pelo contrário: olhou para tudo aquilo como quem olha um terreno mal cuidado. Bastava um pouco de paciência e poda estratégica para se tornar propriedade sua.
O casamento durou o suficiente. O bastante para ter dois filhos, para assinar alguns papéis, para reformar a casa e colocar seu nome em tudo o que antes era dele. E quando ela pediu o divórcio, foi com a precisão de um cirurgião: fria, limpa, certeira. Levou os bens mais valiosos e, de quebra, arrancou do homem um pedaço da alma que ele já mal reconhecia no espelho.
Mas não foi só o patrimônio. Lúcia ensinou os próprios filhos — ainda de dentes de leite — a olharem os meio-irmãos como intrusos. Dizia que o pai sempre deu mais a "eles", que a vida era uma disputa, e que quem não tomasse, ficava com migalhas. Aos poucos, os meninos aprenderam a roubar sem tocar: roubavam espaço, afeto, memória. Faziam do silêncio um gesto de posse. Os filhos do primeiro casamento foram sendo excluídos das conversas, das fotos, das datas. Quando restou apenas a frieza dos papéis, Lúcia fez deles escudo e espada.
Anos depois, quando os pais dela morreram, Lúcia ressurgiu como a filha injustiçada. A herança era modesta, mas o discurso era grandioso. “É uma questão de justiça!”, gritava nas reuniões de família. Esquecida de tudo que tomou, agora cobrava centavo por centavo. Enviava e-mails inflamados, citava passagens bíblicas com a destreza de uma profeta do próprio interesse. Era como se, de repente, a moral tivesse descido do céu diretamente sobre seus ombros.
Na mesa da partilha, chorou. Não pelas perdas. Mas pela parte. E quando um dos irmãos ousou lembrá-la de antigos episódios — da forma como tratara os filhos do primeiro casamento de Henrique, da maneira como saíra do divórcio com muito mais do que trouxera — ela se ofendeu. Disse que não era hora de julgamentos. “Isso tudo é passado.”
Lúcia acreditava na justiça — desde que fosse a sua. Desde que lhe rendesse lucro. Desde que confirmasse a narrativa que construiu à base de meias verdades e silêncios convenientes.
Hoje, vive bem. Não rica, mas satisfeita. Os filhos repetem suas frases como mantras: “a vida não dá nada pra quem não toma”. E ela os observa com orgulho, como quem assiste ao resultado de uma obra bem feita.
Mas, às vezes, quando pensa que ninguém está olhando, Lúcia encara o espelho com certo incômodo. Porque a justiça que ela tanto clama ainda não descobriu como premiar quem rouba de forma tão limpa.
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