quarta-feira, 5 de março de 2025

Quinquênios de solidão

E, quando despertou para essa realidade, percebeu que valorizava mais os outros do que eles a ela. Hoje, é tratada como tratou no passado, tolerada por educação. No passado, desprezara; hoje, é desprezada. Para comemorar essa data importante, convidou algumas pessoas conhecidas, não podendo chamá-las de amigas, para um encontro que ela própria patrocinaria. Encomendou roupas novas, caras, pois nada desejava que pudesse sugerir um par de vasos. Investiu em vestuário, numa decoração diferente e acolhedora. Tudo estava pronto, organizado. Então, a mãe de uma das convidadas, que por sinal era sua tia, faleceu. Com este falecimento, foi obrigada a transferir o evento para outra data, sem revelar a ninguém que celebrava o décimo quinto quinquênio de sua existência na terra, nesta forma humana.

Ultimamente, sentia-se um peso morto na terra. Que utilidade tinha para os outros? Nem sua presença simples era agradável. Tinha afeto, mas não tinha a quem dedicá-los. Até mesmo a beleza do versículo bíblico, que diz que do pó viemos e ao pó voltaremos, não a estimulava. O momento da morte deveria ser aceito com gratidão pela experiência terrena e pelo retorno à origem química da terra, para viver eternamente. Mas havia  Em sua jornada pelos setenta e cinco anos de existência, marcada pela contagem meticulosa de quinquênios e decênios, ela se preparou com esmero para essa data significativa. Sempre apreciou celebrar essas marcas temporais. Numa vida vivida na corrida incessante atrás do sonho de vitória, mas sem a força necessária para escapar da periferia, esqueceu-se de tecer laços de amizade e renunciou à maternidade. As pessoas, para ela, eram apenas figuras no mundo profissional, nunca companhias nas mazelas da vida.a preocupação de reencontrar aqueles que desprezara no passado. Buscou tanto pelo amor e está passando pela vida sem vivenciá-lo. Talvez, se não tivesse buscado tanto pelo amor e pelo reconhecimento de seu valor, não se sentiria apenas uma pessoa suportada no meio social.

Pelo fator religioso, temia a morte por ter que enfrentar aqueles que a precederam. Permanecer na terra significava enfrentar diariamente a solidão. Tudo o que desejava era amar e ser amada. A última coisa que desejava era apegar-se a um animal de estimação como filho, por carência de afeto. Isso não levaria a nada, pois o que desejava era o amor da sua espécie, de ser humano para ser humano. Fora agraciada com a dádiva de ter nascido como ponta da espécie, não para igualar-se a eles.

Sentia que a partida dessa parente, que atrapalhou seu aniversário, cortaria o elo da corrente de sangue que os uniu desde o nascimento, um vínculo que a convivência não consolidou. Uns vão, outros vêm, e ela, na sua eterna busca por aceitação social. De que vale viver sem se relacionar com seus semelhantes? Temia não conseguir cuidar de si na velhice, de depender dos outros. Tudo o que desejava era um sentido para sua vida. Viver em função da busca por alimento tornava a vida tão pobre; queria algo mais, como uma companhia sincera, amor e deixar um legado para a posteridade. Porém, no momento, sentia apenas o vazio existencial.

 

 

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