Durante a
infância, ela sofreu violência física e psicológica. Naquela época, ainda era
comum que os responsáveis impusessem castigos físicos aos filhos. Dizia-se
entre as mulheres mais velhas que “pecado de criança não é absolvido pelo
padre, mas pela varinha de bambu”. Todos os adultos ao redor acreditavam nisso.
Os assuntos nas escolas, especialmente às segundas-feiras, giravam em torno das
surras do fim de semana.
Era
difícil lembrar qual havia sido a pior surra. Eram tantas, com tamanha
frequência e quase sempre por motivos fúteis — muitas vezes, por mentiras do
irmão, o “queridinho da mamãe”, que sempre tinha razão aos olhos da mãe. Ela
nunca quis ouvir a outra versão dos fatos. O estalido do chicote podia ser
ouvido por toda a casa, mas ninguém jamais veio socorrê-la. A pele da menina
estava constantemente marcada pelas chicotadas, recebendo novos golpes antes
mesmo de os vergões antigos desaparecerem.
Com o
distanciamento do tempo, e o olhar já adulto, aquela criança de outrora
compreendeu que fora o saco de pancadas da mãe — um lugar onde se descarregavam
mágoas, frustrações e a covardia de não exigir do pai a vida digna que
acreditava merecer. Até meados do século XX, era assim que se ensinavam regras
sociais às crianças. Com exceção dos filhos preferidos, todos os demais eram
impiedosamente punidos por aqueles que um dia prometeram, no altar, cuidar dos
filhos confiados por Deus.
Ela não
tinha memória de uma surra justa. Jamais cometera faltas graves: nunca ateou
fogo à casa, nunca soltou o gado, nem agrediu irmãos ou maltratou animais. Era
uma filha obediente, cumpria com suas obrigações desde tenra idade, mesmo
cansada, sendo injustamente rotulada como preguiçosa. Apanhava por motivos
insignificantes: por não ouvir quando era chamada, por derramar um pouco de
água do balde, por descansar alguns minutos ou por fofocas do irmão, que a via
como uma criada a seu serviço.
Com o
passar dos anos, ela aprendeu a se tornar invisível. Acordava com o canto do
galo e realizava todas as tarefas antes que a mãe acordasse, tentando evitar
ser lembrada. A invisibilidade era sua fortaleza contra a fúria materna. No
entanto, esse esforço constante deixou marcas profundas que influenciaram sua
vida pessoal e profissional.
A
repetição de engolir o choro e seguir adiante moldou uma mulher servil, incapaz
de expressar suas opiniões. Sempre preferia o silêncio, mesmo quando tinha algo
importante a dizer. No campo pessoal, nunca conseguiu aprofundar amizades,
temendo reviver os tempos de exploração. Desconfiava das pessoas. Nunca manteve
um namoro por mais de seis meses. Profissionalmente, apesar de investir em
cursos e formações, jamais foi promovida. Era a funcionária invisível: cumpria
prazos, fazia tudo corretamente, mas sem inovar — do primeiro dia de trabalho
até a aposentadoria.
Ela dizia
a si mesma que só teve duas grandes alegrias na vida: o dia em que conseguiu o
primeiro emprego e o dia em que assinou sua aposentadoria. Neste último,
acreditou ingenuamente que enfim seria livre para ser feliz. Mudou-se para
outro estado sem avisar ninguém. Ninguém notou sua ausência.
Determinada
a sair da invisibilidade, traçou uma nova estratégia para encontrar pessoas
interessantes. Sabia que gente de bem frequentava igrejas, academias,
bibliotecas, espaços culturais e pizzarias. E a estratégia funcionou. Em uma
das primeiras missas que assistiu, foi anunciado um curso gratuito voltado para
a formação de mulheres e fortalecimento do conhecimento sobre seus direitos.
Sem hesitar, anotou os dados e compareceu à aula inaugural.
Lá, uma
professora universitária falou sobre as barreiras enfrentadas pelas mulheres no
mercado de trabalho e a discriminação persistente, mesmo em plena Era da
Comunicação. A mulher ficou chocada. Percebeu que aquilo que vivera na infância
não era uma exclusividade de seu vilarejo atrasado — era uma realidade
nacional. E pior: ainda havia exploração da mão de obra infantil, algo que ela
própria conhecera de perto.
As aulas
seguiram com temas importantes, legislações, palestras, direitos. Mas a mudança
de comportamento era lenta e dolorosa. Nem mesmo a rede de apoio entre mulheres
foi suficiente para que ela abandonasse o hábito da invisibilidade. Entrava
calada, sentava-se na última carteira, não participava. Saía calada, sequer
pedia carona nos dias de chuva. O círculo de amizades que esperava construir
não se formou.
Porém,
ela alcançou uma nova consciência: os traumas da infância eram profundos e, sem
ajuda profissional, poderiam acompanhar uma vítima até o fim da vida.
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