quarta-feira, 28 de maio de 2025

A Invisibilidade Aprendida

 


“Engole o choro”, dizia com raiva a mãe da menina. “É melhor fechar essa matraca.”
Um nó se formava na garganta da criança. Suas faces ficavam vermelhas como uma lua de sangue, os olhos voltavam-se para o chão, e o desejo de ser tragada pela terra tomava conta de seu corpo pequeno e paralisado. Queria desaparecer para que nenhuma palavra escapasse de sua boca, nem lágrima alguma de seus olhos. “Você tem que agradecer por ter uma mãe que se preocupa com você” – era essa a justificativa para a brutalidade cotidiana.

Durante a infância, ela sofreu violência física e psicológica. Naquela época, ainda era comum que os responsáveis impusessem castigos físicos aos filhos. Dizia-se entre as mulheres mais velhas que “pecado de criança não é absolvido pelo padre, mas pela varinha de bambu”. Todos os adultos ao redor acreditavam nisso. Os assuntos nas escolas, especialmente às segundas-feiras, giravam em torno das surras do fim de semana.

Era difícil lembrar qual havia sido a pior surra. Eram tantas, com tamanha frequência e quase sempre por motivos fúteis — muitas vezes, por mentiras do irmão, o “queridinho da mamãe”, que sempre tinha razão aos olhos da mãe. Ela nunca quis ouvir a outra versão dos fatos. O estalido do chicote podia ser ouvido por toda a casa, mas ninguém jamais veio socorrê-la. A pele da menina estava constantemente marcada pelas chicotadas, recebendo novos golpes antes mesmo de os vergões antigos desaparecerem.

Com o distanciamento do tempo, e o olhar já adulto, aquela criança de outrora compreendeu que fora o saco de pancadas da mãe — um lugar onde se descarregavam mágoas, frustrações e a covardia de não exigir do pai a vida digna que acreditava merecer. Até meados do século XX, era assim que se ensinavam regras sociais às crianças. Com exceção dos filhos preferidos, todos os demais eram impiedosamente punidos por aqueles que um dia prometeram, no altar, cuidar dos filhos confiados por Deus.

Ela não tinha memória de uma surra justa. Jamais cometera faltas graves: nunca ateou fogo à casa, nunca soltou o gado, nem agrediu irmãos ou maltratou animais. Era uma filha obediente, cumpria com suas obrigações desde tenra idade, mesmo cansada, sendo injustamente rotulada como preguiçosa. Apanhava por motivos insignificantes: por não ouvir quando era chamada, por derramar um pouco de água do balde, por descansar alguns minutos ou por fofocas do irmão, que a via como uma criada a seu serviço.

Com o passar dos anos, ela aprendeu a se tornar invisível. Acordava com o canto do galo e realizava todas as tarefas antes que a mãe acordasse, tentando evitar ser lembrada. A invisibilidade era sua fortaleza contra a fúria materna. No entanto, esse esforço constante deixou marcas profundas que influenciaram sua vida pessoal e profissional.

A repetição de engolir o choro e seguir adiante moldou uma mulher servil, incapaz de expressar suas opiniões. Sempre preferia o silêncio, mesmo quando tinha algo importante a dizer. No campo pessoal, nunca conseguiu aprofundar amizades, temendo reviver os tempos de exploração. Desconfiava das pessoas. Nunca manteve um namoro por mais de seis meses. Profissionalmente, apesar de investir em cursos e formações, jamais foi promovida. Era a funcionária invisível: cumpria prazos, fazia tudo corretamente, mas sem inovar — do primeiro dia de trabalho até a aposentadoria.

Ela dizia a si mesma que só teve duas grandes alegrias na vida: o dia em que conseguiu o primeiro emprego e o dia em que assinou sua aposentadoria. Neste último, acreditou ingenuamente que enfim seria livre para ser feliz. Mudou-se para outro estado sem avisar ninguém. Ninguém notou sua ausência.

Determinada a sair da invisibilidade, traçou uma nova estratégia para encontrar pessoas interessantes. Sabia que gente de bem frequentava igrejas, academias, bibliotecas, espaços culturais e pizzarias. E a estratégia funcionou. Em uma das primeiras missas que assistiu, foi anunciado um curso gratuito voltado para a formação de mulheres e fortalecimento do conhecimento sobre seus direitos. Sem hesitar, anotou os dados e compareceu à aula inaugural.

Lá, uma professora universitária falou sobre as barreiras enfrentadas pelas mulheres no mercado de trabalho e a discriminação persistente, mesmo em plena Era da Comunicação. A mulher ficou chocada. Percebeu que aquilo que vivera na infância não era uma exclusividade de seu vilarejo atrasado — era uma realidade nacional. E pior: ainda havia exploração da mão de obra infantil, algo que ela própria conhecera de perto.

As aulas seguiram com temas importantes, legislações, palestras, direitos. Mas a mudança de comportamento era lenta e dolorosa. Nem mesmo a rede de apoio entre mulheres foi suficiente para que ela abandonasse o hábito da invisibilidade. Entrava calada, sentava-se na última carteira, não participava. Saía calada, sequer pedia carona nos dias de chuva. O círculo de amizades que esperava construir não se formou.

Porém, ela alcançou uma nova consciência: os traumas da infância eram profundos e, sem ajuda profissional, poderiam acompanhar uma vítima até o fim da vida.

 

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