As tardes de terça-feira carregavam sempre o mesmo roteiro para Helena: almoçar sozinha, vestir roupas confortáveis e caminhar lentamente até o centro comunitário do bairro. Lá, a aula de dança para a terceira idade acontecia religiosamente — e, para ela, religiosamente também era a frequência. Mesmo quando a vontade era nenhuma, mesmo quando o corpo reclamava, ela comparecia.
Não era
exatamente o que se podia chamar de prazer. A aula era cansativa, e o
entusiasmo das colegas mais animadas a deixava, muitas vezes, ainda mais
exausta. Mas havia uma verdade que Helena não podia ignorar: o movimento era o
que a mantinha viva. E isso, a professora fazia questão de lembrar toda semana.
"Movimento
é resistência, meninas!", dizia com o brilho dos jovens nos olhos. "A
gente não para de dançar porque envelhece. A gente envelhece porque para de
dançar."
Helena
sorria discretamente diante da insistência daquela mulher tão cheia de energia,
e às vezes se perguntava de onde vinham tanta motivação e tanta fé. Era como se
ela desafiasse o próprio tempo a cada passo de bolero.
Mas nem
mesmo a coreografia animada conseguia disfarçar a ausência que Helena sentia.
Faltava algo. Ou melhor, alguém. Um par. Um homem.
Não que
fosse impossível — mas nos últimos anos, encontrar um companheiro se tornara um
luxo. “Mais difícil que comprar um colar de diamantes”, costumava brincar,
entre risos suaves e um olhar perdido.
A
presença masculina, ainda que rara, fazia falta. Ela sentia falta da troca de
energia, do olhar cruzado no compasso certo, da firmeza que equilibrava o giro
de uma valsa. Yin e Yang, ela pensava, como se sua dança estivesse sempre
incompleta.
Naquela
terça-feira, porém, o destino resolveu mudar o roteiro.
Ela já
estava na sala quando uma voz a chamou pelo nome.
"Helena?"
Virou-se,
surpresa. Uma senhora de cabelos grisalhos e rosto marcado pelos anos a
observava com ternura. Os olhos eram claros, levemente marejados.
"Desculpe...
você é a filha da Dona Lia, não é?"
Helena
franziu a testa, sem entender. "Sou... mas... como sabe disso?"
A mulher
sorriu, e seus olhos se iluminaram como se tivessem encontrado algo que
procuravam havia muito tempo.
"Eu
sou a Cecília. Fomos vizinhas. Brincávamos no quintal lá da rua das
Laranjeiras. Você não deve lembrar, era tão pequena... Mas eu nunca esqueci de
você. Sua mãe era minha amiga."
Helena
piscou, tentando resgatar qualquer lembrança daquele nome. Cecília... Rua das
Laranjeiras... um balanço de madeira pendurado no galho de uma mangueira... o
cheiro doce de goiaba madura...
"Você...
é a Ceci?", sussurrou, como se a memória tivesse finalmente desabrochado.
"Aquela menina que fazia bonecas de sabugo de milho?"
"Essa
mesma!", riu Cecília. "E você era a danadinha que sempre caía da
bicicleta e dizia que não doía."
Helena
levou a mão à boca, emocionada. "Meu Deus... eu nem lembrava mais..."
"Mas
você lembra da sua mãe, não é?" perguntou Cecília, mais suave agora.
"Você tem o jeito dela. O modo de falar. Até o olhar quando está
pensativa... é igualzinho."
Helena
não conseguiu conter as lágrimas. Sentou-se no banco ao lado, como quem precisa
de apoio para o peso das lembranças.
"Minha
mãe partiu há muitos anos... E às vezes sinto que estou me esquecendo dela,
sabe? Mas... dizem que eu sou muito parecida com ela."
"É
mais que parecida. Você a carrega", disse Cecília, apertando-lhe a mão com
delicadeza. "Hoje, quando te vi entrando, meu coração disparou. Era como
se eu estivesse vendo a Lia outra vez."
O tempo,
ali naquele salão de dança, pareceu parar. A música tocava ao fundo, as demais
senhoras seguiam os passos da professora, mas para elas, o mundo havia virado
lembrança.
Conversaram
até o fim da aula, sem se importar em ter perdido os passos. Recordaram as
brincadeiras de infância, os vizinhos, as festas juninas da rua. Lembraram da
mãe de Helena, das roupas floridas, da risada forte e do cheiro de bolo de fubá
que sempre vinha da cozinha. Cada memória parecia um presente entregue com
cuidado, embrulhado com saudade.
"Você
não sabe o quanto me fez bem hoje", disse Helena, enquanto caminhavam juntas
até a saída. "É como se uma parte de mim, esquecida lá atrás, tivesse
voltado para o presente."
"Reencontros
assim são raros, minha querida", respondeu Cecília, com um sorriso sereno.
"Agora que nos achamos de novo, não vamos mais nos perder."
Ao chegar
em casa, Helena sentou-se à mesa da cozinha e ficou ali, em silêncio. Tocou os
próprios cabelos, lembrando da mãe. Sorriu. Chorou. E sentiu uma pontada de
esperança — algo que não sentia há muito tempo.
Ela sabia
que a velhice traz perdas inevitáveis. Mas reencontros... esses vinham como
bênçãos tardias. E ela queria mais. Queria reencontrar outras pessoas, reviver
outras histórias. Formar um círculo de amizade verdadeiro, que resistisse aos
anos e ao esquecimento.
Porque no
fim das contas, era isso que importava: os passos que damos juntos, e as
memórias que carregamos com amor.
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