quinta-feira, 15 de maio de 2025

Entre Passos e Memórias

 

 

As tardes de terça-feira carregavam sempre o mesmo roteiro para Helena: almoçar sozinha, vestir roupas confortáveis e caminhar lentamente até o centro comunitário do bairro. Lá, a aula de dança para a terceira idade acontecia religiosamente — e, para ela, religiosamente também era a frequência. Mesmo quando a vontade era nenhuma, mesmo quando o corpo reclamava, ela comparecia.

Não era exatamente o que se podia chamar de prazer. A aula era cansativa, e o entusiasmo das colegas mais animadas a deixava, muitas vezes, ainda mais exausta. Mas havia uma verdade que Helena não podia ignorar: o movimento era o que a mantinha viva. E isso, a professora fazia questão de lembrar toda semana.

"Movimento é resistência, meninas!", dizia com o brilho dos jovens nos olhos. "A gente não para de dançar porque envelhece. A gente envelhece porque para de dançar."

Helena sorria discretamente diante da insistência daquela mulher tão cheia de energia, e às vezes se perguntava de onde vinham tanta motivação e tanta fé. Era como se ela desafiasse o próprio tempo a cada passo de bolero.

Mas nem mesmo a coreografia animada conseguia disfarçar a ausência que Helena sentia. Faltava algo. Ou melhor, alguém. Um par. Um homem.

Não que fosse impossível — mas nos últimos anos, encontrar um companheiro se tornara um luxo. “Mais difícil que comprar um colar de diamantes”, costumava brincar, entre risos suaves e um olhar perdido.

A presença masculina, ainda que rara, fazia falta. Ela sentia falta da troca de energia, do olhar cruzado no compasso certo, da firmeza que equilibrava o giro de uma valsa. Yin e Yang, ela pensava, como se sua dança estivesse sempre incompleta.

Naquela terça-feira, porém, o destino resolveu mudar o roteiro.

Ela já estava na sala quando uma voz a chamou pelo nome.

"Helena?"

Virou-se, surpresa. Uma senhora de cabelos grisalhos e rosto marcado pelos anos a observava com ternura. Os olhos eram claros, levemente marejados.

"Desculpe... você é a filha da Dona Lia, não é?"

Helena franziu a testa, sem entender. "Sou... mas... como sabe disso?"

A mulher sorriu, e seus olhos se iluminaram como se tivessem encontrado algo que procuravam havia muito tempo.

"Eu sou a Cecília. Fomos vizinhas. Brincávamos no quintal lá da rua das Laranjeiras. Você não deve lembrar, era tão pequena... Mas eu nunca esqueci de você. Sua mãe era minha amiga."

Helena piscou, tentando resgatar qualquer lembrança daquele nome. Cecília... Rua das Laranjeiras... um balanço de madeira pendurado no galho de uma mangueira... o cheiro doce de goiaba madura...

"Você... é a Ceci?", sussurrou, como se a memória tivesse finalmente desabrochado. "Aquela menina que fazia bonecas de sabugo de milho?"

"Essa mesma!", riu Cecília. "E você era a danadinha que sempre caía da bicicleta e dizia que não doía."

Helena levou a mão à boca, emocionada. "Meu Deus... eu nem lembrava mais..."

"Mas você lembra da sua mãe, não é?" perguntou Cecília, mais suave agora. "Você tem o jeito dela. O modo de falar. Até o olhar quando está pensativa... é igualzinho."

Helena não conseguiu conter as lágrimas. Sentou-se no banco ao lado, como quem precisa de apoio para o peso das lembranças.

"Minha mãe partiu há muitos anos... E às vezes sinto que estou me esquecendo dela, sabe? Mas... dizem que eu sou muito parecida com ela."

"É mais que parecida. Você a carrega", disse Cecília, apertando-lhe a mão com delicadeza. "Hoje, quando te vi entrando, meu coração disparou. Era como se eu estivesse vendo a Lia outra vez."

O tempo, ali naquele salão de dança, pareceu parar. A música tocava ao fundo, as demais senhoras seguiam os passos da professora, mas para elas, o mundo havia virado lembrança.

Conversaram até o fim da aula, sem se importar em ter perdido os passos. Recordaram as brincadeiras de infância, os vizinhos, as festas juninas da rua. Lembraram da mãe de Helena, das roupas floridas, da risada forte e do cheiro de bolo de fubá que sempre vinha da cozinha. Cada memória parecia um presente entregue com cuidado, embrulhado com saudade.

"Você não sabe o quanto me fez bem hoje", disse Helena, enquanto caminhavam juntas até a saída. "É como se uma parte de mim, esquecida lá atrás, tivesse voltado para o presente."

"Reencontros assim são raros, minha querida", respondeu Cecília, com um sorriso sereno. "Agora que nos achamos de novo, não vamos mais nos perder."

Ao chegar em casa, Helena sentou-se à mesa da cozinha e ficou ali, em silêncio. Tocou os próprios cabelos, lembrando da mãe. Sorriu. Chorou. E sentiu uma pontada de esperança — algo que não sentia há muito tempo.

Ela sabia que a velhice traz perdas inevitáveis. Mas reencontros... esses vinham como bênçãos tardias. E ela queria mais. Queria reencontrar outras pessoas, reviver outras histórias. Formar um círculo de amizade verdadeiro, que resistisse aos anos e ao esquecimento.

Porque no fim das contas, era isso que importava: os passos que damos juntos, e as memórias que carregamos com amor.

 

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