terça-feira, 9 de julho de 2024

Entre a honra e a violência

        Não é um conto de fadas com final feliz.  É um conto que fala das agruras da vida do cidadão comum e dos pequenos pretextos para a explosão da violência. Em mil novecentos e vinte e seis, os corações da pacata cidade interiorana batiam em compasso com a disputa eleitoral. Doutor Preto e Doutor Branco, os dois candidatos a prefeito, travavam uma batalha feroz pelas mentes e votos dos cidadãos. Nas ruas de paralelepípedos, onde o sol se escondia timidamente entre as casas coloniais, o Meritíssimo Juiz dedicava-se diariamente ao trabalho de alistamento de eleitores no salão do Fórum. Ao seu lado, o enigmático escrivão Piau, cujo nome de batismo permanecia um mistério, às más  línguas diziam até que não   tinha recebido o sacramento por ser filho de mãe solteira, razão pela qual permanecia solteiro aos 40 anos de idade, afinal, qual moça de família arriscaria casar com um pagão?

Mas não eram apenas os votos que fervilhavam naquela cidade. O destacamento policial, liderado pelo Anspeçada Genivaldo Paulo, impunha uma atmosfera de apreensão. Genivaldo, homem de natureza forte e que levava a sério o dever, era temido por todos aqueles que tinham uma conduta duvidosa. Suas ações severas  fazendo cumpriro rigor da lei, geravam queixas amargas entre meliantes e admiração e gratidão ao restante da população, e o medo pairava no ar como uma nuvem escura, não  só pela honradez  eficácia do militar, mas temendo alteração dos ânimos entre os eleitores fanáticos.

Era um tempo de lembranças sombrias, quando o voto de cabresto rigoroso do passado ainda ecoava nas memórias dos mais velhos, agora era somente um compromisso verbal, sem o capanga ao lado, quebrando o sigilo do voto, para conferir se o eleitor estava cumprido com o acordado. A tensão se fazia palpável, pronta para explodir em ódio suprimido.

Em um dia quente de julho, que nem parecia inverno, que o destino de Genivaldo tomou um rumo inesperado. Enquanto os trabalhos de alistamento prosseguiam no pavimento superior do Fórum, no térreo, junto à porta de entrada, um atrito irrompeu entre o Anspeçada e um homem conhecido como Torresmo. Armado, decidido e encrenqueiro por natureza, Torresmo tentava subir ao salão, mas Genivaldo não permitiria, era o regulamento. A luta foi intensa, e das proximidades, homens armados e  de má fama, observavam, prontos para intervir,  e mudar o rumo da luta, a  favor deles.

Tiros ecoaram, contra o Anspeçada, que respondeu com valentia e quando o combate cessou, não havia sobreviventes. Na Praça da Matriz, à luz do dia, em frente à cadeia e sob o olhar atento do juiz de direito, jaziam Genivaldo e Torresmo. Um indigente curioso, a mula de carga e o cachorro de um eleitor que estavam amarrados no limpador de pés, também compartilhavam o destino trágico.

O pânico se espalhou como fogo, dentro e fora do edifício. Os trabalhos do juiz foram interrompidos, e um eleitor, apavorado, dirigiu-se ao magistrado. É o Apocalipse Meritíssimo!  Com um sorriso amarelo  o magistrado respondeu:- Não, é apenas um entrevero entre homens que respeitam as Leis  e os que as desrespeitam;

Naquele dia, soube-se o quanto o militar era odiado pelos meliantes da cidade: seu corpo apresentava quarenta e seis perfurações de bala. Em seu velório, compareceu em peso a população honesta e trabalhadora, para despedir-se daquele que, com sua severidade, tanto os havia protegido. E por muitos anos, ao pé do fogo, os avós contavam  aos netos, o episódio, no dia em que o amor e o ódio, a política e a violência, honra  e desonra, tudo se fundiu naquele momento, como as águas de um rio que não pode voltar atrás.

 

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