Desfazer-se do passado não é tarefa fácil. Rosalina, coração em turbilhão, adentrou a casa herdada dos pais. Esquecida desde o falecimento de ambos, a morada outrora imaculada agora abrigava ácaros, cupins, aranhas e formigas. Curiosamente, as baratas haviam desertado, talvez por meses de inatividade na cozinha. O velho fogão, testemunha silenciosa, evocou lágrimas em Rosalina, trazendo à memória o aroma das refeições preparadas por sua mãe. Herança da avó materna, aquele fogão resistira ao tempo sem jamais clamar por conserto. Quantas bocas alimentara, quantos corações aquecera?
As
lembranças se agitaram como folhas ao vento. A infância, os cachorros e gatos à
espreita, olhares pidões implorando sobras. E o quarto dos pais, santuário de
nascimentos e despedidas. A cama, outrora berço de sonhos, agora jazia
deteriorada. Rosalina ansiou deitar-se, reviver cada instante ali vivido, mas a
madeira carcomida pelos cupins e o colchão manchado de fezes de morcegos
negaram-lhe esse último abraço ao passado.
Com força
desconhecida, arrastou a cama e o colchão para o quintal. O fogo, aliado da
transmutação, consumiu a madeira, as lembranças, os suspiros da maternidade/paternidade.
Pediu perdão aos pais, enquanto as chamas dançavam, libertando o quarto para
novas histórias.
A segunda
fogueira, agora com as três camas de visitas, ardeu. Ali repousaram os filhos,
testemunhas das visitas aos pais. Rosalina, olhos fixos no fogo, compreendeu:
era hora de despedir-se da cama que embalara seus sonhos, inquietações e
responsabilidades. O fogo, transformador e impiedoso, liberou o espaço das
lembranças. E Rosalina, corajosa, jurou honrar o sacrifício dos pais,
construindo um novo legado sob as estrelas que agora os abrigavam.
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