terça-feira, 31 de dezembro de 2024

O Jardim das Promessas e das Rosas

 


O crepúsculo de 2024 despedia-se com um brilho melancólico. No horizonte, os últimos raios do sol tingiam o céu com matizes de ouro e rubi, refletindo-se nas lágrimas silenciosas que Maria derramava diante do altar em seu quarto. Ali, entre flores de papel desgastadas e velas semi-derretidas, repousavam imagens de Santa Terezinha das Rosas, Santo Expedito, São Longuinho, Nossa Senhora Desatadora de Nós e São Bento. Seus olhos buscavam no vazio o alívio de uma esperança às vezes tão distante quanto as estrelas que começavam a pontilhar o firmamento.

Foi um ano marcado pela perda e pela luta. A morte de familiares arrancara de Maria não apenas as presenças amadas, mas também a certeza de um futuro em que o legado da família seria uma ponte para dias menos sombrios. O espírito da justiça, tão frequentemente evocado, parecia brincar com ela, escondendo-se em meandros burocráticos e na lentidão do sistema, como se as engrenagens da lei estivessem lubrificadas com areia ao invés de óleo.

Os erros do passado, fruto de negligência administrativa nos negócios familiares, pareciam vultos a rondar sua mente. Cada dia era uma batalha contra o peso da memória e a dureza do presente. As novenas se sucediam como as batidas de um coração esperançoso, mas exaurido. Cada oração era uma rosa oferecida aos santos, uma promessa de que ela persistiria, mesmo quando a fadiga tornava o ar denso e os pensamentos nebulosos.

Maria acreditava na intercessão divina. As imagens dos santos não eram apenas esculturas de gesso ou pinturas desbotadas; eram âncoras para sua alma flutuante, janelas para um reino onde a justiça não era apenas uma palavra, mas um ato. E, apesar de sua fé, algo em seu coração dizia que 2024 precisava ser o fim daquela jornada de pedidos e novenas. Os santos haviam ouvido. Eles atendiam na linguagem dos sinais: um vento que balançava as cortinas em meio ao silêncio da noite, um perfume inexplicável de rosas que atravessava o ar, ou o simples alívio em uma noite de sono profundo.

Enquanto a lua subia no céu, Maria fez uma última oração. Desta vez, suas palavras não eram de súmula, mas de gratidão. A esperança pulsava em seu peito com a intensidade de um fogo renovado. 2025 seria diferente. Ela visualizava, com os olhos fechados, o momento em que o legado de seus pais, finalmente liberto das amarras da burocracia, lhe permitiria abandonar a vida de economia e miséria. O futuro prometia ser um jardim de abundância, onde ela poderia colher os frutos de tantos anos de lágrimas e orações.

Maria se deitou, e em seus sonhos, caminhou por um campo repleto de rosas. Cada flor representava um pedido, uma prece, uma espera. No centro do campo, uma luz suave emanava de uma árvore frondosa, sob a qual estavam sentados seus pais, sorrindo. Ao se aproximar, sentiu uma paz indescritível. Entendeu que o tempo não era um inimigo, mas um escultor, moldando com paciência os contornos de uma vida mais justa.

Quando a alvorada de 2025 chegou, Maria acordou com um sorriso. O jardim das promessas estava mais perto do que jamais estivera. Agora, era apenas questão de colher as rosas.

sábado, 28 de dezembro de 2024

Solitário Natal

 

Mais um Natal, e o vazio me fez sua confidente. Sentei-me diante de uma casa arrumada, silenciosa como um templo esquecido. Pela janela, os enfeites piscavam em fachadas alheias, mas aqui dentro, o brilho das luzes era apenas um eco de tempos idos.

Esperei. Quem sabe um convite inesperado, um telefonema afetuoso ou mesmo uma mensagem singela de um familiar, um amigo. O que chegou foi o silêncio. Silêncio pesado, cruel, que sussurra em cada canto da casa, lembrando-me da ausência de um mundo que seguiu adiante sem mim.

Sem outra opção, decidi almoçar fora, em busca de um simulacro de celebração. Escolhi um restaurante modesto, onde o óleo das frituras parecia compartilhar do meu esgotamento. As mesas à minha volta estavam cheias de risos e brindes. Na minha, apenas a presença pesada da solidão, que me acompanhava como uma velha companheira fiel. Nem a comida, áspera ao paladar, conseguiu preencher o buraco no peito.

Voltei para casa. Ali, rodeada pelas paredes que guardam minhas memórias, decidi limpar o chão. Em cada esfregada no piso, parecia que tentava lavar as dores impregnadas na alma. Uma faxina útil, pensei, ao menos para esconder por algumas horas a sujeira invisível do abandono. Ações mecânicas, como um rito de exorcismo contra as sombras que me habitam.

Ao longo dos anos, corri atrás de amizades, investi em laços que sempre se desfizeram com o tempo, como fios de uma trama que nunca se completava. Gente vinha, gente ia, e eu ficava. Solidão, percebi, é o meu destino. Melhor aceitá-la, pensei, como se aceita a própria pele: não há como fugir.

Porém, ao aceitar, o peso não diminui. É uma cruz que carrego, feita não de madeira, mas de ausências, de momentos que nunca vieram, de vozes que nunca chamaram meu nome. Mais um Natal se foi, deixando-me com a certeza de que valorizo as pessoas mais do que elas a mim. E, quem sabe, esta seja a ironia de viver: querer ser importante em um mundo que nos ensina, dia após dia, o peso da nossa própria insignificância.

E assim, a vida segue, entre dias vazios e noites longas, com a esperança cada vez mais tímida de que, talvez, um dia, o silêncio seja interrompido por algo mais doce que a solidão.

terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Acompanhada, porem, sózinha

 

Era uma manhã comum, dessas que carregam no ar a promessa de mais uma batalha cotidiana. Acordei cedo, como de costume, com a mente já tomada pelas tarefas do dia. Entre um gole de café apressado e o barulho distante da rua, lembrei da conta de luz vencida — um detalhe minúsculo que, naquele momento, parecia uma montanha intransponível.

Resolvi pedir ajuda à minha irmã, aquela que, pelo menos teoricamente, deveria ser um apoio nas horas difíceis. Expliquei a situação com a simplicidade de quem espera um mínimo de solidariedade. Mas a resposta veio seca, impiedosa: "Olha os recibos anteriores e vê se já completou o tempo de vencimento. É de três em três meses, não é?"

Senti um nó na garganta. Não era apenas a conta de luz, era o peso de sempre ter que resolver tudo sozinha. Trabalho fora o dia inteiro, corro de um lado para outro tentando manter o equilíbrio frágil das minhas responsabilidades. E ela... Ela não arruma a casa, não faz comida, toma café na padaria e almoça fora. Vive dando ordens, como se a vida fosse um jogo onde só ela pode descansar.

Revolvi gavetas, procurei recibos, remexi papéis antigos com mãos trêmulas e coração pesado. Cada pedaço de papel encontrado era um lembrete de quantas vezes me virei sozinha, mesmo tendo irmãos. A solidão, naquele momento, não era apenas física, mas existencial. Ter uma família numerosa e, ainda assim, sentir-se abandonada é uma dor que se instala como uma sombra persistente.

Engoli as lágrimas. Não há espaço para fraqueza quando a vida exige tanto. Mas, no fundo, a ausência de pequenas ajudas dói mais que grandes tragédias. É o silêncio das mãos que não se estendem, dos olhos que desviam, dos gestos que nunca vêm.

Continuei meu dia, com a conta de luz resolvida e o coração mais uma vez remendado. A esperança, teimosa, ainda sussurra que talvez um dia essa distância se desfaça. Mas até lá, sigo, forte e só, como quem carrega o mundo nos ombros sem jamais soltar uma queixa audível.

domingo, 8 de dezembro de 2024

Vergonha e Escombros

 

Na vastidão dos tempos, onde outrora vigoravam a honra e o respeito, fui lançada ao mundo como descendente de pais de retidão cristalina, tão imaculados quanto as lousas celestes dos sermões de Vieira. Eram honrados, admirados e respeitados — adjetivos que hoje soam como sinos rachados em igrejas abandonadas.

Porém, desgraça maior recaiu sobre mim e meus irmãos: herdamos bens de raiz, robustos na aparência, mas frágeis na alma, tal qual edifícios de orgulho corroídos pelo tempo. Com mãos incapazes de lavrar ou cuidar, reduzimos a solidez ao pó das ruínas. As paredes que já ouviram preces de prosperidade hoje testemunham murmúrios de desventura.

Mas o mais cruel foi o que nos foi negado — o respeito. Ah, esse tesouro invisível que não se herda por testamento! Amigos e conhecidos afastaram-se como se nossas desgraças fossem contagiosas. Até mesmo a Polícia Militar, que se supõe guardiã da ordem, nos brindou com a indiferença de quem vê mais uma pedra no caminho.

Foi assim que nossa propriedade, destituída de inquilinos e sorte, tornou-se refúgio de almas errantes: drogados, andarilhos e espíritos perdidos. Ali depositaram seus pertences como quem marca território em terras sem lei.

Chamei as autoridades com a expectativa de justiça. Vieram como inquisidores cansados, mas sem vontade de acender fogueiras. Recusaram-se a registrar o boletim, sugerindo que eu mesma tocasse fogo nos pertences — que proposta mais divina e sutil! Fosse eu senhora de engenho, talvez aceitasse o conselho inflamável.

Porém, ciente de que o mundo do crime não perdoa ofensas nem incêndios, preferi um ato mais cristão: recolhi cada objeto e o dispus cuidadosamente na rua, como oferenda aos deuses da sobrevivência. Devolvi-lhes tudo, não por misericórdia, mas para proteger o pouco que ainda me restava: a prudência e o desejo de evitar mais tragédias.

E assim sigo, herdeira de ruínas e desprezo, à espera de um milagre barroco que restaure não só as paredes desmoronadas, mas também o respeito perdido — esse bem mais raro que qualquer pedra preciosa escondida sob a terra infértil da desilusão.

terça-feira, 3 de dezembro de 2024

O Testamento das Almas Ausentes

 


Nas sombras de um entardecer opaco, quando a brisa trazia ecos de palavras não ditas, Sofia sentava-se diante da escrivaninha antiga. O móvel, herdado junto aos imóveis alugados, parecia carregar em suas fibras a essência de seus pais. Ela e os irmãos haviam se reunido no mesmo espaço dias antes, lendo o testamento que não deixava dúvidas sobre o legado material, mas lançava sombras sobre o que nunca fora dito: o respeito que tanto buscavam.

Dois meses haviam passado desde o adeus aos progenitores, e os ecos das vozes dos inquilinos soavam como notas dissonantes em um réquiem. Primeiro veio o silêncio de um contrato ignorado, o vazio de um aluguel que não chegava. Depois, dois outros se arrastavam em um ritmo insuportável, com pagamentos que chegavam tarde, como um suspiro ao fim de uma longa asfixia.

Sofia contemplava a luz pálida do abajur, onde os insetos dançavam em espirais insanas. Não era apenas o dinheiro que a corroía, mas a confirmação cruel de uma suspeita antiga: ela e seus irmãos eram invisíveis, sombras de uma herança sem raízes. Entre amigos e familiares, o nome da família havia sido grande, mas sua geração não passava de um eco frágil.

Na mente de Sofia, os imóveis eram fantasmas, erguidos com suor, lágrimas e talvez um pouco de arrogância. Os pais, em vida, haviam comandado respeito e admiração, mas não haviam transferido esse legado imaterial aos filhos. O que significava, afinal, a propriedade, se ela era apenas uma concha vazia de autoridade?

Na penumbra do quarto, Sofia fechou os olhos e sentiu uma dor profunda, como se a própria casa em que estava lhe sussurrasse verdades incômodas. Eles não haviam herdado o respeito, e as paredes sabiam disso.

Enquanto a noite se tornava densa, Sofia sentiu que não era apenas o legado que lhes faltava. Era como se, na luta por serem vistos, eles tivessem deixado escapar a essência do que os conectava. O respeito não se herda em testamentos; é tecido em olhares e atos, em palavras ditas no momento certo.

Sofia olhou para a lua, que surgia como um olho prateado no céu, julgando-a. Naquele momento, percebeu que o respeito era como a luz da lua: só refletia aquilo que era capaz de iluminar. E talvez, só talvez, ela e seus irmãos precisassem encontrar sua própria luz, mesmo que a dor da ausência fosse insuportável.

 

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Epístola Barroca de Rosalina à Prima Amada

 

Rosalina amada,

Espero que esta missiva encontre-te em perfeita saúde e disposição de espírito. Eis que me vejo obrigada a recorrer ao artifício da escrita mecânica, pois minha caligrafia, qual hieróglifo indecifrável, torna-se mais desregrada a cada dia que passa.

Permita-me trazer à tua lembrança a augusta sabedoria de tua bisavó paterna, Dona Bella Célia da Silveira, mulher de fibra e entendimento singular, que, com suas palavras certeiras, legou-nos conselhos eternos. Não raro, ela alertava: "Nunca permita que friagem assente-se em teu peito ou em teus pés." Ora, não era vã essa advertência, pois de seu ventre vieram ao mundo treze almas, todas conduzidas à idade adulta por sua diligência e cuidados.

Agora que o verão se aproxima, trazendo consigo tormentas e ventos impiedosos, minha alma inquieta pensa em ti, que habitas distante, e temo que as intempéries possam encontrar-te despreparada.

Por isso, deixo-te um conselho prático, amparado pela sabedoria herdada: na Rua Princesa  Leopoldina, nas cercanias dos Correios e próximo ao Varejão de Grãos, há uma loja de variedades. Ali, podes adquirir uma capa de chuva, tão necessária para que te protejas das águas imprevistas. E, se o troco permitir, adquira também uma sombrinha, pois a precaução nunca é exagerada.

Quanto ao mais, tudo caminha em ordem. Tua mãe goza de boa saúde, e por aqui os dias seguem em seu ritmo ordinário.

Recebe o afeto sincero de tua prima,
Amélia

 

terça-feira, 19 de novembro de 2024

No Dia da Bandeira: Reflexões de Um Brasileiro

 

Na praça central da minha cidade, ergue-se um mastro altíssimo. Lá no alto, tremula altaneira a Bandeira Nacional, sempre presente, mas nem sempre notada. Hoje, 19 de novembro, ela parece ter despertado mais olhares, embora ainda resista em silêncio, como quem observa, paciente, o vai e vem apressado da vida.

Verde, amarelo, azul e branco. Cores tão familiares que, para muitos, tornaram-se banais. Mas, ali, ao encarar o movimento suave daquele tecido ao vento, percebo que a bandeira é muito mais do que um simples símbolo. É como um álbum de memórias tecido em seda e história, carregando as glórias, lutas e esperanças que nos trouxeram até aqui.

Lembro-me das aulas da infância, quando o hino ecoava nas manhãs de segunda-feira e a bandeira era hasteada sob nossos olhos infantis. Naquele tempo, o significado de "Ordem e Progresso" era um mistério, e as cores da bandeira, apenas um exercício de decoração nos cadernos. Hoje, cada linha, cada tom carrega um peso maior, refletindo as complexidades de ser brasileiro: as contradições, as riquezas culturais, a capacidade de recomeçar.

Penso também em como negligenciamos, às vezes, esse símbolo. Quantas vezes a bandeira fica esquecida, dobrada em algum canto, enquanto os desafios do dia a dia nos afastam do senso de pertencimento? É fácil perder de vista o que ela representa: não apenas um pedaço de tecido, mas uma conexão invisível entre milhões de histórias, passadas e presentes.

Neste 19 de novembro, minha reflexão é simples: respeitar a bandeira é, antes de tudo, respeitar a nós mesmos. Não é um gesto vazio ou cerimonial. É um lembrete de que, apesar das diferenças, existe algo que nos une. Somos versos distintos compondo um mesmo poema, e a bandeira é a métrica que dá ritmo à nossa identidade.

Ao final do dia, quando o sol se despede e a bandeira ainda tremula na praça, sinto um misto de orgulho e responsabilidade. Que o "Ordem e Progresso" inscrito nela não seja apenas uma promessa distante, mas uma construção diária. Afinal, a bandeira é nossa – e nós somos dela.

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Encontros com o Irônico Oráculo da Natureza

 

Não sei o que tem se passado comigo ultimamente. Talvez a amarga decepção com a humanidade tenha lentamente deslocado meu olhar para o reino da natureza, como quem, ao perder a fé nos homens, tenta buscá-la nas plantas e nos bichos. Mas que não se confunda minha inclinação: não tenho o menor apreço por esse costume antiquado de sequestrar uma criatura do seu habitat, arrancá-la de seus iguais e trancá-la em uma casa, adornada com travesseiros e coleiras, sob a desculpa de um “bem-estar” inventado. Como se a felicidade do animal estivesse em perder sua liberdade para a estimação de algum humano bem-intencionado.

Em menos de um mês, fui agraciado com encontros, digamos, insólitos. Primeiramente, duas serpentes deslizaram pelo meu caminho. Uns diriam que trazem maus presságios, outros juram que é sinal de renovação e transformação – afinal, elas têm a exótica habilidade de largar suas peles, como se a cada ciclo tivessem o luxo de deixar para trás o passado indesejado. Em seguida, deparei-me com um besouro de antenas descomunais. Se o velho Egito conferia ao escaravelho o título de amuleto da sorte, talvez devesse então aguardar meus dias de glória.

Mas não acabou por aí. Um estranho ser rastejante me desafiou a lógica: grande demais para ser minhoca, pequeno demais para ser cobra. Talvez uma piada interna do universo para testar minha paciência. E para encerrar com um toque de teatro natural, dei de cara com uma seriema, que abriu o bico com entusiasmo no exato instante em que passamos um pelo outro. O que dizer? Senti-me lisonjeado, como se o próprio cosmos tivesse feito um breve espetáculo para mim. Que sejam bons augúrios, pois preciso crer que, ao menos, a natureza ainda reserva alguma poesia para o meu desassossego.

 

terça-feira, 12 de novembro de 2024

O Guardião do Crepúsculo: Uma Amizade Inesperada

 

Pelos encantados e misteriosos caminhos de Minas, deparei-me com um simpático sapo, desses que parecem saídos das histórias antigas, onde animais e homens se entendem em silêncios e gestos. Imediatamente, uma ideia peculiar me ocorreu: por que não contratá-lo como um aliado natural, capaz de combater as pequenas pragas que insistem em perturbar a tranquilidade de minha casa? Afinal, no requintado cardápio deste pequeno guardião habitam aranhas, besouros, gafanhotos, pernilongos, moscas, formigas… Dizem que um sapo adulto é capaz de devorar, num só dia, o equivalente a três xícaras cheias de moscas.

E o mais extraordinário de tudo é a proteção que carrega consigo: a pele desse simpático anfíbio exala substâncias que o guardam de bactérias e fungos, o que torna a convivência com ele mais segura do que com os amáveis cães ou gatos. Em minha mente já começo a visualizar este novo companheiro como um funcionário dedicado, o sapo de olhos serenos e hábitos noturnos, velando pelo bem-estar de meu lar.

Entretanto, duas dúvidas me tomam o coração: primeiramente, no equilíbrio da natureza, sei que o sapo é a presa da serpente. Temo, com isso, que sua presença venha a atrair as peçonhentas para perto de minha morada, trazendo um risco inesperado. E, quando meu amigo tiver concluído sua missão de livrar-me das pragas, o que farei? Como alimentarei aquele que, em sua lealdade e simplicidade, terá conquistado minha estima? Imagino que, com o tempo, a convivência estreite nossos laços e, ao final, não serei capaz de “demiti-lo”, pois nossa amizade será mais forte do que qualquer contrato.

sábado, 9 de novembro de 2024

Flores que alimentam o futuro

 

A doce laranjeira, enfim, vestiu-se de flores pela primeira vez! Essa planta singela foi plantada a pedido de um velho sábio, cujas forças já foram minadas pelo peso dos janeiros em seus ombros e pela lida do campo; bem sabia ele, que toda fartura brota do seio da terra e que a semente lançada ao solo há de precisar de mãos vigorosas e um coração generoso para florescer nos campos do amanhã. Agora, das estrelas, ele talvez contemple, com os olhos plenos de gratidão, a suave beleza de cada florzinha alva, sabendo que, um dia, seus frutos hão de alimentar alguém – fosse de seu sangue ou não, que importa? Pois sempre viveu com o propósito de plantar e colher para todos, espalhando alimento a quem viesse, fosse homem, fosse pássaro, fosse animal. Primeiro virão as abelhas com seu canto de zumbidos, depois os sabiás e, por fim, os periquitos esvoaçantes, cumprindo o ciclo que ele tanto prezava. Alimento para todos: era esse, eternamente, o seu desejo. (IA)

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Tributo a Renato Andrade e ao som da alma caipira

Eis que me ponho a discorrer sobre os prós e os contratempos de habitar uma vila acanhada, dessas onde a brisa leva devagar os dias, mas os traz de volta com escassez de encantos e manifestações culturais ao gosto de um povo simples. Ora, as apresentações que se oferecem aos moradores, mesmo quando chegam como novidades, custam muitas vezes o esforço de um fidalgo, sem jamais corresponder à excelência de uma noite de veras esplêndida.

Foi então que, ontem, me acometeu uma grata surpresa: um tributo digno ao mestre incomparável da viola caipira, Renato Andrade. Esse virtuoso, nascido em Abaeté num agosto do ano de 1932, alçou-se à glória não apenas como músico, mas como um verdadeiro poeta dos acordes. A trajetória de Renato é curiosa e valente: levado ainda jovem à capital, Belo Horizonte, para aprimorar-se ao violino, retornou um tempo depois à sua terra, onde escutou, como quem ouve o chamado de uma musa, o som da viola caipira. E ali, enamorado do instrumento, prometeu-lhe devoção eterna, a ponto de entrelaçar o popular e o erudito, emoldurando a viola em salões de concerto, como se fizesse justiça à grandeza que tão bem sabia habitar em suas cordas. Seu primeiro trabalho solo, "A Fantástica Viola de Renato Andrade", é relíquia de 1977, uma obra que faz jus à reputação do artista.

Oh, e que fortuna a minha: essa homenagem era franca! Era-lhe comum, segundo dizem, proferir gracejos tais como: “A viola é como a mortadela: todo mundo gosta, mas ninguém quer comer à vista dos outros.” E que me perdoe o poeta violeiro, pois não aprecio a mortadela; todavia, a viola, ah! essa pulsa em meu peito, enlevando-me com o sortilégio de sua sonoridade.

Aos que amo na arte da viola, após, bem o sabem, o ilustre Renato Andrade, incluo Tião Carreiro, Almir Sater, e Helena Meireles. Que benesse é ouvir-lhes os solos, especialmente em dias em que a procrastinação me acomete e os ânimos parecem esquecidos. Pois nada, senhores, eleva o espírito e desperta a disposição como o som da nossa querida viola. Com ela, a melancolia perde força, e a procrastinação se desvanece como névoa à luz do sol.

Sou, pois, grata ao destino por haver-me permitido presenciar este tributo a Renato Andrade, cuja viola, como a vida, é simples e grandiosa, bela e encantadora como um verso de amores que se recita ao coração.

 


sábado, 2 de novembro de 2024

No Dia dos Que Partiram, Flores e Gratidão


Hoje é Dia de Finados, e o coração se veste de memória e gratidão. É dia de lembrar, de agradecer àqueles que abriram os caminhos que percorremos agora, mais leves e mais amplos. Graças a esses passos passados, tenho uma vida que me chega com o perfume do esforço de quem me precedeu. E é com reverência que sigo até o cemitério municipal, onde a missa ecoa entre os túmulos floridos. As flores espalhadas entre as lápides me emocionam, um gesto tão simples e tão imenso: levamos flores aos que amamos. Elas ficam lá, como um abraço em nossa ausência, a beleza persistindo onde a presença já se foi.

Durante a missa, o celebrante comentou sobre o ato de ofertar flores. "Oferecemos flores a quem amamos", disse ele, com um olhar compassivo, como quem traduz para o coração o que as palavras nem sempre alcançam. E, ainda que nossos entes queridos tenham voltado à casa do Pai, as flores permanecem como mensageiras de nosso amor.

Em um instante de rara sensibilidade, o padre compartilhou uma tradição tocante. Lembrou-se de um sacerdote que, em missas de corpo presente ou no sétimo dia, pedia que todos rezassem uma Ave-Maria por aqueles que ainda iriam partir. O sentido da prece pairou no ar, como um convite à reflexão sobre nossa própria mortalidade, mas também como um alento, uma oração em compasso com o mistério da vida. No fim, rezamos juntos, cada um com suas intenções – pedi vida longa e saúde, silenciosa e serena em meio àquelas preces.

A caminhada entre as lápides me trouxe ainda uma surpresa gentil: o Grupo Zelo, que cuida de velórios e despedidas, havia deixado uma acolhida singela – café, chá, suco, biscoitos em saquinhos delicados, um terço e uma vela, todos embalados com carinho, quase um gesto de mãos dadas com nossa dor. Era mais do que uma simples oferta; era um cuidado, um carinho inesperado que aquecia o coração num dia frio de saudades. E no cartão que acompanhava o presente, uma frase tão simples e verdadeira: “Que as lembranças daqueles que amamos permaneçam sempre vivas, inspirando nossos corações e iluminando nossos caminhos.”

Saí dali com uma paz rara, consciente de que o amor que dedicamos aos que partiram reverbera em nós, feito eco de um amor que nunca se apaga, mesmo nas horas de despedida.

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

A nora desonesta

 

Era uma vez, numa pequena cidade chamada Vila Esperança, um senhor chamado Seu Joaquim. Ele era um homem idoso, muito querido por todos, e vivia tranquilamente em sua casinha rodeada de árvores frutíferas. Seu Joaquim, que já tinha trabalhado a vida inteira, guardava suas economias com muito carinho, pensando em viver seus últimos anos com tranquilidade.

Seu Joaquim tinha um filho, Carlos, que era casado com uma moça chamada Isabel. Isabel, sempre muito ambiciosa, sonhava em abrir uma loja de roupas e, especialmente, uma loja de lingerie. Ela acreditava que esse negócio a tornaria muito rica e famosa. Carlos, que trabalhava como mecânico, apoiava os sonhos da esposa, mas sabia que eles não tinham dinheiro suficiente para abrir a loja.

Um dia, Isabel teve uma ideia desonesta. Ela sabia que Seu Joaquim guardava suas economias em um cofre, no quarto. Sempre que visitava o sogro, Isabel aproveitava a distração dele e, pouco a pouco, começou a pegar pequenas quantias de dinheiro, acreditando que ele nem perceberia. A cada semana, Isabel tirava mais e mais, até conseguir o suficiente para abrir sua tão sonhada loja de lingerie.

A loja abriu com grande entusiasmo. Isabel decorou o espaço com cores vibrantes e belas vitrines. No início, as pessoas da cidade visitavam, curiosas para ver o novo negócio. Mas logo Isabel percebeu que administrar uma loja não era tão fácil quanto imaginava. Ela não sabia controlar as despesas, pagava fornecedores errados e acabava perdendo clientes por falta de organização.

Enquanto isso, Seu Joaquim começou a notar que suas economias estavam sumindo. Ele não sabia o que estava acontecendo, mas confiava que sua família cuidaria bem dele, então ficou em silêncio. Infelizmente, ele adoeceu gravemente e, alguns meses depois, faleceu, deixando todos muito tristes.

Após a morte de Seu Joaquim, Isabel continuou com a loja, mas sem o dinheiro furtado, ela não conseguiu manter o negócio de pé. Logo as dívidas se acumularam e a loja faliu. Isabel ficou arrasada, não só por perder o que tanto desejava, mas também por carregar o peso de sua desonestidade. A culpa a seguia como uma sombra, e ela sabia que havia cometido um grande erro.

Carlos, que sempre fora honesto e trabalhador, ficou desapontado ao descobrir o que Isabel havia feito. Ele explicou para ela que o caminho da desonestidade nunca traz bons frutos, e que construir algo com base em mentiras e roubos só leva à tristeza e ao fracasso.

Isabel aprendeu uma lição muito valiosa. Ela entendeu que, se tivesse pedido ajuda ao sogro ou trabalhado duro para economizar, teria conquistado seus sonhos de forma honesta. Ela passou a se dedicar a causas que ajudavam idosos e a ensinar outras pessoas sobre a importância da honestidade.

E assim, a história de Isabel e Seu Joaquim serviu de exemplo para todos em Vila Esperança. Afinal, como dizia Seu Joaquim: “O que vem fácil, vai fácil. Mas o que é construído com honestidade e trabalho, permanece para sempre.”

A loja que nao durou

 

Era uma vez uma mulher chamada Clara, que sonhava em ter uma loja de lingerie. Ela era nora de um idoso muito gentil chamado Seu Alfredo, que já estava bastante frágil com a idade, mas sempre foi generoso com todos ao seu redor. Clara, no entanto, não tinha paciência para pedir ajuda. Ela achava que o jeito mais rápido de realizar seu sonho era desonesto.

Certo dia, Clara começou a pegar pequenas quantias de dinheiro do cofre do Seu Alfredo sem que ele soubesse. Pouco a pouco, ela juntou uma quantia grande o suficiente para abrir sua loja de lingerie. Ela estava animada, acreditando que agora seria uma empresária de sucesso.

No início, a loja parecia promissora, com clientes visitando e elogiando seus produtos. Mas Clara não sabia como administrar um negócio. Ela gastava mais do que ganhava e, aos poucos, a loja começou a ter problemas. Clara tentava disfarçar, mas o estresse tomava conta.

Então, veio um dia triste: Seu Alfredo faleceu. Clara, além de lidar com o luto, percebeu que sem o apoio e a confiança que o sogro lhe dava, tudo ficou ainda mais difícil. A loja, que já estava com dificuldades, faliu completamente. Clara ficou sem nada, nem loja, nem a confiança das pessoas ao seu redor.

As crianças da história aprenderam uma grande lição: Clara descobriu tarde demais que a desonestidade não leva a lugar algum. Se tivesse pedido ajuda, trabalhado duro e agido com honestidade, talvez as coisas tivessem sido diferentes. O sonho dela desmoronou porque foi construído sobre mentiras e traições. E assim, as crianças souberam que a honestidade e o trabalho duro são os verdadeiros caminhos para o sucesso.

E a história de Clara serviu de exemplo para muitos na cidade: desonestidade pode até trazer algo por um tempo, mas nunca dura, e sempre acaba trazendo sofrimento.

segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Esperança silenciada

 Amanheceu um dia comum, mas o peso no meu peito anunciava que as coisas não seriam fáceis de digerir. A apuração já havia terminado, e as ruas, agora silenciosas, pareciam refletir o vazio que senti ao descobrir o resultado. Era como se a cidade inteira estivesse em um luto silencioso, o luto por uma oportunidade perdida, uma esperança que se esvaiu com o soar do último voto computado.

O candidato que tanto me empenhei em apoiar não venceu. Não por falta de preparo, de vontade ou de ética. Pelo contrário, ele tinha todas as qualidades que buscamos em quem deveria nos representar. Conhecia de perto as necessidades da região, tinha a confiança de quem realmente poderia fazer a diferença. Mas isso, aparentemente, não bastou. Não foi o suficiente. E o que restou foi uma sensação amarga, um desalento difícil de descrever.

Fico pensando no que leva uma cidade a se render ao mais despreparado dos candidatos. No que faz as pessoas escolherem o caminho mais curto, mais barato, mas também mais sombrio. No fim, foi isso: o preço de um voto valeu uma cesta básica, um alívio imediato, que vai saciar a fome de um dia, talvez dois. E depois? Depois, a fome volta. Mas quem poderia trazer algo mais duradouro, quem poderia garantir o futuro de todos, ficou para trás.

É triste ver como o preparo e o conhecimento foram derrotados pela compra descarada de votos. Cada cesta distribuída, cada promessa vazia, cada sorriso cínico, valeram mais do que seis leitos de UTI que poderiam salvar vidas. Cada mão estendida em troca de migalhas deu as costas para uma chance real de mudança.

E agora, só resta a tristeza de ver a cidade escolhendo a continuidade do abandono. A vida segue, mas para quem se preocupa, para quem acreditava na possibilidade de dias melhores, o desânimo pesa. A frustração de ver a ética e a honestidade serem vencidas por estratégias tão sujas é difícil de suportar. E o pior é saber que, ao longo dos próximos anos, essas decisões vão nos assombrar, silenciosamente, a cada falta de atendimento, a cada sonho de desenvolvimento enterrado.

No fim, o que restou foi o silêncio das urnas e o eco de uma esperança sufocada.

domingo, 6 de outubro de 2024

A Dança das Eleições e o Destino do Futuro


As eleições, sempre envoltas em sua complexidade, se assemelham a uma dança meticulosamente coreografada, onde cada movimento, por mais sutil que seja, pode alterar o curso do futuro. Em meio a debates, promessas e expectativas, o eleitor torna-se um dançarino nesse cenário cívico, equilibrando-se entre o peso de suas escolhas e o desejo de ver um país mais justo e próspero.

Assim como numa dança, onde o ritmo dita o andamento, as eleições seguem seu próprio compasso: os candidatos se apresentam, expõem suas visões e, como num bailado, procuram cativar a audiência. Mas, diferentemente de um espetáculo, onde o público apenas assiste, nas eleições, cada pessoa tem um papel decisivo. O voto é o gesto que quebra a passividade e transforma cada um em protagonista.

A cada ciclo eleitoral, a esperança de mudança se renova, mas também se impõe a responsabilidade. A escolha feita na cabine de votação vai além de uma simples marcação na urna; ela é um reflexo de valores, ideais e, sobretudo, de uma visão coletiva para o país. Em meio às divergências de opinião e às paixões que surgem, a essência da democracia reside no respeito à diversidade de pensamentos e na busca pelo bem comum.

O destino da sociedade, então, é moldado por essa dança entre os eleitores e os eleitos. É uma dança que requer paciência, discernimento e, acima de tudo, consciência. Pois, ao final, o que está em jogo não é apenas quem estará no poder, mas qual será o rumo que, juntos, como nação, decidimos tomar.

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

O misterioso desconto da Prefeitura

         Era uma vez, nas longínquas terras da burocracia brasileira, uma heroína. Sim, a nossa protagonista não enfrentava dragões, mas algo muito mais temido: o georreferenciamento das terras da família. A ordem vinha de cima, do governo, que com uma canetada mágica decretava que, sim, todos deveriam mapear suas propriedades ou enfrentar o temível exército de multas. E lá foi ela, com humildade e uma pitada de esperança, bater nas portas da prefeitura local.

Munida de paciência (que, convenhamos, era quase sobrenatural), ela explicou a sua situação. Queria saber, de forma educada e simples, quanto precisaria juntar para pagar o tributo pela atualização da área. O simpático atendente, que claramente estudou anos para se especializar em cara de tédio, consultou os pergaminhos da prefeitura e sentenciou: “Seis mil reais”. Um valor que fez o coração da heroína dar uma leve tremida, mas nada que o bom e velho planejamento financeiro não resolvesse.

Meses se passaram. Nesses intervalos, nossa heroína enfrentou algumas batalhas pessoais, com saúde fragilizada, mas jamais perdeu o foco. Conseguiu economizar, centavo por centavo, até reunir a quantia necessária. Agora, já que os deuses da saúde não estavam sendo generosos, pediu ao fiel contador para que fosse à prefeitura pagar a dívida.

E foi aí que a surpresa veio. O contador retornou com uma novidade de fazer qualquer um engasgar: o valor agora era de... três mil reais! Três mil! Como assim?! A área das terras não havia mudado. A heroína, com toda sua lógica imbatível, começou a questionar. Será que a alíquota havia diminuído misteriosamente? Algum decreto de última hora? Ou, quem sabe, um feitiço que só funcionava para quem enviava um homem à prefeitura?

A conclusão era inevitável: ou o georreferenciamento tinha poderes mágicos de ajustar preços conforme a pessoa que pedia o orçamento, ou talvez, apenas talvez, a simpatia masculina rendesse algum tipo de desconto oculto. E assim, com uma mistura de sarcasmo e resignação, ela aprendeu que na terra das tributações, o valor das coisas é tão flutuante quanto as justificativas dos atendentes.

Mas tudo bem. Afinal, se o preço da próxima vez fosse ainda menor, quem sabe ela começaria a enviar o cachorro para fazer essas simulações.

sábado, 28 de setembro de 2024

O Silêncio da Alma Solitária

 Em todas as fases de sua vida, a solidão sempre foi a fiel companheira de Rosalina, como uma sombra inseparável. Ao seu lado, caminhava a carestia crônica, que o obrigava a escolher sempre o mais barato, o que a vida oferecia de mais modesto: o pão amanhecido no balcão de promoções, a oferta do dia. No que dizia respeito ao lazer, ela somente desfrutava do que fosse gratuito, acessível ao público em geral. E, por isso, não podia se queixar — frequentara diversas exposições de arte nos centros culturais do Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e FIESP. Entretanto, verdade seja dita, Rosalina jamais conseguira captar plenamente a beleza das obras ou entender a mensagem que os artistas tentavam transmitir. Seu conhecimento escolar, escasso e fragmentado, jamais lhe permitiu adentrar nos mistérios da arte. Ela fora à escola, passara de ano, mas o saber, esse, se perdera em algum canto da sala de aula, esquecido, talvez, entre carteiras vazias e dias nublados. Hoje, sequer sabia calcular uma porcentagem. Sua linguagem era desajeitada, quase inábil, mas o vazio existencial que carregava era tão vasto que ela se via vagando sem rumo, à procura de algo que preenchesse, ainda que por poucos instantes, sua alma solitária.

Com uma aposentadoria modesta, Rosalina decidira mudar-se para o interior, fugindo da humilhação de mendigar nas ruas. Escolhera bem, ao menos em termos de dignidade, mas, mesmo assim, não conseguira fazer amizades. Vagava pelas ruas da pequena cidade em busca de algo que pudesse atenuar sua tristeza. Naquele dia, encontrou uma feira de empreendedorismo infantil, organizada por crianças do ensino fundamental. Embora as apresentações fossem desajeitadas e sem graça, ela sabia que aquele era o melhor que a cidade tinha a oferecer. E, com o coração resignado, sentiu-se grato. Afinal, ainda tinha um teto sobre a cabeça e um prato de comida na mesa,  e lazer gratuito, o que, em sua longa jornada, já era motivo suficiente para agradecer

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

O Caso do Cão Mais Famoso da Cidade

 


Vivemos em tempos modernos, onde ser oportunista virou quase um talento nato. É a era da litigância de má fé, do enriquecimento ilícito e da busca desenfreada por aquele delicioso "dinheirinho fácil". Então, para evitar complicações jurídicas (para  ninguém querer enriquecer com indenizações ao meu custo), vou contar essa história, omitindo nomes e cidades, mas deixando a ironia correr solta.

A cena se passa em uma dessas cidades onde o aniversário da fundação é o evento mais esperado do ano, com direito àquela exposição agropecuária tradicional. Afinal, nada melhor do que juntar os festejos para atrair mais público e, claro, uma desculpa para estourar os cofres públicos. O ponto alto, como sempre, é a contratação de uma dupla sertaneja famosa — porque, convenhamos, é isso que o povo quer: cantar sofrência e beber pinga. Como de costume, essas duplas vêm da roça, crescidas entre vacas e bois, e carregam consigo aquela simplicidade que é de dar inveja até ao humilde milho plantado no quintal.

No centro desse causo está a dupla fictícia que vou chamar de Berrante & Boiadeiro. Certo dia, Boiadeiro, que como todo bom sertanejo é do tipo que vê a beleza até na poeira da estrada, decidiu sentar num banco de praça, ali em frente ao hotel. O coração mole desse cantor se apaixonou perdidamente... por um cachorro de rua. Sim, desses vira-latas que fazem da praça o seu território, sem amarras, sem dono, com aquela liberdade que nós, meros mortais, só sonhamos em ter.

Eis que, movido por um altruísmo digno de filme de sessão da tarde, o Boiadeiro decidiu: "Vou levar esse bichinho comigo!" Além disso, como se fosse um verdadeiro anjo dos caninos, ele ainda comprou uma dúzia de sacos de ração para alimentar outros cachorros famintos da cidade. O homem queria transformar a vida canina local, quem diria!

Mas, como nesta vida nem tudo são flores e boas ações, e onde há fama, há quem queira um pedaço dela, surge nossa heroína oportunista. Mal soube do gesto nobre do sertanejo, ela, com uma sede imensurável pelos seus quinze minutos de fama, consegue o contato da assessoria da dupla. Num plot digno de novela das nove, ela se apresenta como a verdadeira dona do cão. E o que faz o simples Boiadeiro? Em vez de questionar ou ao menos checar o CPF da senhora, ele, generoso como sempre, pega o cãozinho, coloca-o em seu jato particular e devolve para a tal "dona". Claro, porque nada é mais simples do que despachar um cachorro num jatinho, não é mesmo?

Só que a vida, ah, ela tem um senso de humor peculiar. O desfecho? A senhora oportunista agora tem a responsabilidade perpétua de cuidar do cachorro até o fim dos tempos. E não, o universo não deixou barato. Todas as vezes que o cão, esse ser espiritualmente livre, escapava para sua praça querida, onde já havia conquistado seu espaço, os funcionários do hotel ligavam para ela, lembrando-a que, segundo a própria, ela era a dona do bichinho.

E assim, o castigo veio a cavalo, ou melhor, a cachorro. Enquanto Boiadeiro segue sua vida de fama e palcos, ela terá que correr atrás de um cachorro que nunca foi dela, mas que, ironicamente, ela reivindicou. Porque às vezes, o preço da fama é cuidar de algo que você nunca quis de verdade.

 

terça-feira, 17 de setembro de 2024

O labirinto da burocracia

 

Durante os quinze anos em que a filha caçula esteve à frente dos negócios da família, tudo parecia correr sob o manto da normalidade. A morte do patriarca, porém, trouxe à tona os segredos ocultos por debaixo daquela fachada de tranquilidade. O inventário tornou-se inevitável, e, como de praxe, os problemas explodiram — mas, claro, não nas mãos da astuta caçula, que, muito perspicaz, evitou assumir as rédeas desse fardo. Tal responsabilidade caiu sobre os ombros da irmã mais velha, que, retornando após anos de ausência, desconhecia as irregularidades que, como ervas daninhas, infestavam os negócios. Ela, que até sua aposentadoria fora secretária em um escritório conhecido pela pontualidade e excelência, chocou-se com a desordem.

Logo de início, deparou-se com a primeira dificuldade: os imóveis urbanos e rurais não estavam regularizados. Com a diligência de quem se habituara a lidar com papéis, iniciou o processo pelo georreferenciamento. Encontrar um agrimensor, contudo, revelou-se um drama digno dos antigos folhetins. Quando finalmente o contratou, desabaram as temidas águas de verão, impossibilitando os trabalhos, já que os equipamentos não suportavam a chuva. Com o término das chuvas, o ajudante, contratado para dar assistência ao agrimensor, foi acometido pela Covid e veio a falecer. Quando, após luto e novos esforços, outro auxiliar foi recrutado, o agrimensor, por sua vez, contraiu dengue. Seis meses se passaram, e, ao fim, o terreno foi medido. Mas a saga estava longe do término: restava colher as assinaturas dos confrontantes e registrá-las em cartório.

E, como se não bastassem os percalços do caminho, surgiu uma discrepância nos hectares que exigia o pagamento de uma taxa à prefeitura. Nossa inventariante, com a disposição que ainda lhe restava, dirigiu-se à repartição municipal. O funcionário, com a burocracia em mente e o enfado na voz, informou que a guia para o pagamento deveria ser retirada no cartório. Ela lá se foi. O atendente do cartório, como quem joga uma peteca, disse-lhe que tal responsabilidade cabia ao contador. E ela, exausta, mas ainda obediente à engrenagem do sistema, procurou o contador, que, por sua vez, não tinha o formulário. Teve de recorrer a um colega de outro escritório. De posse, enfim, do tão esperado documento, voltou à prefeitura. Mas o funcionário responsável, com a pontualidade própria do serviço público, não estava em seu posto. Seu colega recomendou-lhe que deixasse os papéis e retornasse às catorze horas.

À tarde, retornou. O funcionário, agora em seu lugar, emitiu o boleto e ordenou que ela pagasse e retornasse com o comprovante. Ela pagou. Voltou. E, com o documento em mãos, finalmente viu-se à beira de concluir o labirinto burocrático... mas, nesse momento, caiu desfalecida. Infartou. Agora, encontra-se internada na UTI, e o desfecho deste relato, caro leitor, encontra-se nas mãos do destino.

Será que, ao sair do hospital, ela verá o fim dessa história? Ou será o labirinto da burocracia que a engolirá de vez? O final, prezado leitor, está em suas mãos.


domingo, 15 de setembro de 2024

O advogado procrastinador

 

Ah, a intrigante dança dos herdeiros e advogados em um inventário litigioso! Permita-me contar a história do nosso advogado, cuja procrastinação rivalizava com a lentidão de um caracol em um campo de melado.

Era uma vez, em um escritório empoeirado no centro da cidade, o advogado Dr. Eustáquio “Procrastinador” Pereira. Ele herdara o ofício de seu pai, o lendário Dr. Aristides “Acordo Fácil” Pereira, que costumava resolver disputas com um aperto de mão e um sorriso.

A história começa quando a Sra. Gertrudes, uma herdeira de cabelos prateados e olhar desconfiado, entrou no escritório do Dr. Eustáquio. Ela trazia consigo um testamento amarelado e uma expressão que dizia: “Prepare-se para a batalha, jovem advogado.”

O falecido Sr. Felisberto, viúvo e dono de vastas terras, deixara um legado complicado. Ele se unira à Sra. Odete, uma viúva esperta e com um filho adulto, o mal-humorado Sr. Osvaldo. O casamento deles? Bem, digamos que foi selado com mais cláusulas do que um contrato de licitação.

O testamento do Sr. Felisberto era um labirinto jurídico. Ele deixava a maior parte da herança para a Sra. Odete, mas também mencionava o neto, o Sr. Leopoldo, e a nora, a Sra. Rosângela. O Dr. Eustáquio coçou a cabeça, imaginando como resolver essa equação.

Dr. Eustáquio era um homem de paz. Ele preferia um acordo a uma briga no tribunal. Quando os herdeiros se reuniram na sala de audiências, ele tentou mediar. “Que tal dividirmos as terras em partes iguais?”, sugeriu, suando sob a gravata.

Mas a Sra. Odete tinha outros planos. Ela olhou para o Dr. Eustáquio com um sorriso gélido. “Meu caro advogado, você não entende. Eu e o Sr. Felisberto tínhamos um amor… financeiro. Ele me prometeu essas terras em troca de suas habilidades culinárias. Sim, eu sou a verdadeira chef da família!”

O Dr. Eustáquio, com seu jeito hesitante, decidiu investigar. Ele vasculhou os arquivos, encontrou recibos de jantares e até uma receita secreta de pudim de leite condensado. “Eureka!” exclamou, quase derrubando a pilha de processos.

No tribunal, o Dr. Eustáquio apresentou sua descoberta. A Sra. Odete corou, e o Sr. Osvaldo bufou. O juiz coçou a cabeça, confuso. “Isso é um inventário ou um episódio de MasterChef?”

Após semanas de debates, acordos e algumas lágrimas (principalmente do Dr. Eustáquio), a herança foi dividida. As terras foram fatiadas como um bolo de casamento, e o Dr. Eustáquio ganhou uma nova alcunha: “O Advogado do Pudim”.

E assim, com um suspiro de alívio, ele voltou à sua procrastinação habitual, enquanto os herdeiros continuavam a discutir quem herdaria a panela de pressão.


E assim termina nossa crônica, caro leitor. Que lições podemos tirar dessa história? Bem, talvez que a procrastinação não seja tão ruim quando se trata de inventários complicados. Ou talvez apenas que o amor e o direito podem ser uma combinação mais explosiva do que dinamite em um formigueiro.

 

O legado da procrastinação

   Em uma tarde plúmbea, carregada de uma densa melancolia, o advogado Jaime, filho de um renomado jurista, caminhava pelas ruas úmidas, sentindo o peso do legado que lhe fora imposto. A neblina, lenta e sinuosa, envolvia o escritório que herdara, assim como herdara os temores de seu pai – uma figura de respeito e sabedoria, mas que, em vida, construíra um nome sem sombras, um pilar de segurança jurídica. Jaime, contudo, havia herdado apenas o reflexo dessa grandeza, sua sombra projetada nas paredes da tradição.

Era fim de tarde quando a herdeira lhe bateu à porta. Marta, de olhar firme e alma inquieta, trazia nos gestos uma urgência sufocada. Seu pai, um comerciante que havia acumulado fortuna após a morte da esposa, deixara um rastro de disputas em torno de seu espólio. O velho comerciante, solitário na viuvez, sucumbira ao que muitos julgavam ser um casamento de interesse, enlaçando-se com Dona Clotilde, uma viúva de intenções escusas, que, junto com seu filho, neto e nora, enredara o viúvo numa união fria, desprovida de amor, mas rica em ambições. Nada haviam construído juntos, e a viúva, ao contrário do que muitos sabiam, não teria direito algum ao patrimônio que jamais lhe pertencera por mérito de vida comum.

Jaime, ao ouvir a história de Marta, sentiu a angústia vibrar no peito. Os dedos dela, finos e trêmulos, tocavam a borda da mesa de mogno com ansiedade. Ela exigia justiça, mas o advogado, de postura rígida e voz sussurrante, sempre hesitara quando o caminho se mostrava litigioso. Preferia, como de costume, o caminho mais brando, o da conciliação. Naquele momento, porém, a sombra do pai parecia pairar sobre seus ombros, como um fardo invisível que o amarrava à complacência.

— Marta, compreendo sua dor — murmurou Jaime, evitando o olhar da jovem. — No entanto, creio que um acordo pode ser mais sensato, evitaria o desgaste emocional...

Marta o fitou com olhos cortantes. Sua determinação contrastava com a fraqueza que ele tentava disfarçar sob as palavras cautelosas. Ela sabia que o destino de sua herança estava nas mãos de alguém que hesitava em enfrentar os lobos que cercavam sua fortuna. Ela já tinha visto esse tipo de timidez nos olhares daqueles que temiam se enredar nas teias da justiça.

— Acordo? — sua voz ecoou como um trovão abafado pela bruma. — Eles querem tudo, e a senhora Clotilde, que jamais contribuiu para o sustento de meu pai, não merece sequer uma migalha! O senhor acha que ela cederá com meras palavras de conciliação?

Jaime, ainda mais encolhido em sua cadeira de couro, sentia-se asfixiado. Ele sempre preferira os acordos, as palavras suaves, o caminho menos tortuoso, ainda que, por vezes, prejudicasse aqueles que nele confiavam. Sua procrastinação era um manto que vestia com a desculpa da prudência, quando, na verdade, era o medo da batalha que o mantinha inerte.

O relógio na parede parecia fazer eco com seu coração ansioso. Os ponteiros arrastavam-se como um tribunal adiado, uma decisão nunca tomada. Ele sabia que a viúva Clotilde não tinha direito ao patrimônio. Sabia que, legalmente, o espólio pertencia apenas a Marta e seus irmãos. E, no entanto, a ideia de enfrentar os tribunais, de romper com sua natureza retraída, lhe trazia calafrios.

Os dias passaram, e Jaime, mais uma vez, adiou os confrontos. Tentou dialogar com Clotilde, tentou acordos mornos, sempre pendendo em favor de uma conciliação que, no fundo, sabia ser injusta. E assim, o tempo escoava por entre seus dedos como areia fria, as heranças se dissipando em mãos que não as mereciam.

A cada adiamento, Marta se tornava mais distante, mais pálida. A frustração tomava conta de sua alma, vendo sua herança, o legado de seu pai, ser tragado pela astúcia da viúva e pela covardia de quem deveria protegê-la. Jaime, por sua vez, já não suportava o peso da própria inação, mas o medo de falhar nos tribunais continuava a pará-lo, como uma serpente enroscada em torno de seus pensamentos.

Até que, um dia, em meio à mesma neblina que parecia habitar permanentemente seus dias, Marta não voltou mais. Desiludida, ela encontrara outro advogado, um jovem ousado e destemido, que, ao contrário de Jaime, enfrentou a viúva e sua prole com o vigor necessário. O caso foi resolvido com rapidez, e o direito de Marta foi assegurado sem concessões.

Jaime, ao saber do desfecho, permaneceu em seu escritório, envolto em sombras, com a certeza amarga de que, mais uma vez, fora vencido por seu próprio medo. E, assim, sua procrastinação tornou-se seu legado, tão insípido quanto a fumaça que enchia o ambiente, uma presença sem substância, uma justiça que nunca chegou.

E o advogado, perdido em sua imobilidade, seguiu vivendo como quem se arrasta nas margens da vida, temendo, sempre, atravessar o rio turvo da litigância. A herança que jamais lutara para defender escorria como as últimas horas do crepúsculo, enquanto ele, eternamente envolto em brumas, esperava por algo que nunca viria: a coragem de ser o advogado que seu pai um dia fora.

sábado, 14 de setembro de 2024

o relincho da liberdade

 

 

Era uma vez, em um rincão esquecido pelos mapas, uma aldeia onde o tempo parecia ter se enredado nas teias da aranha. As ruas, estreitas e tortuosas, abrigavam casas de adobe e janelas com cortinas de renda. A prefeitura, tão distante quanto a lua, pouco se importava com os animais que vagueavam livremente, como fantasmas desgarrados.

Nesse cenário, vivia um homem de semblante enrugado e mãos calejadas. Seu nome? Ah, pouco importa. Chamemo-lo de João das Carroças. João possuía uma charrete, um veículo de madeira carcomida que rangia como um velho ao se levantar da cama. E, como fiel escudeiro, um pangaré de pelagem baça, olhos melancólicos e ossos salientes. O pangaré, coitado, não tinha nome; era apenas “o pangaré de João”.

João, porém, enfrentava um dilema. O pangaré, faminto e sedento, não encontrava pasto nas ruas de paralelepípedo. João não tinha onde deixá-lo livre para pastar, e sua bolsa, mais vazia que o coração de um ermitão, não permitia tratamentos extravagantes. Assim, o pangaré perambulava, farejando mato em terrenos baldios e implorando aos moradores que o acolhessem em seus lotes cercados.

— Deixe-o aqui, João — diziam as pessoas, com olhos piedosos. — Ele não faz mal a ninguém, e economizamos com o capinador.

E assim, o pangaré se tornou um mendigo de gramíneas, um andarilho de ervas secas. Seu lombo curvado carregava a fome e a tristeza, enquanto João observava, impotente, a agonia do animal.

Mas o destino, esse tecelão de tramas cruéis, tinha outros planos. João cobiçava o quarto de milha de um sitiante abastado. Um cavalo de raça, altivo como um príncipe, que relinchava com a nobreza dos que não conhecem o arado. João propôs a troca, alegando que o quarto de milha não se rebaixaria a puxar uma charrete. E ele, João, precisava da charrete para escoar sua produção de milho e feijão, além de outras atividades do sítio.

O sitiante, ingênuo ou ganancioso, aceitou a barganha. O pangaré, com olhos sem brilho, trocou de mãos. E o quarto de milha, agora sob o jugo da charrete, perdeu peso e vigor. Suas patas finas tremiam ao puxar a carga, e seu pelo lustroso deu lugar a uma pelagem em desalinho.

Menos de um mês se passou, e o quarto de milha definhou. Não mais transportava crianças, nem mesmo um saco de grãos. O novo dono, arrependido, quis desfazer a troca. Mas João, astuto como um corvo, recusou. O pangaré, agora de volta a seu antigo lar, pastava nos campos do sitiante, recuperando forças.

Revoltado, o  antigo dono do pangaré, invadiu o sítio de João. Gritou aos quatro ventos que o antigo proprietário roubou seu cavalo. Mas o pangaré, com olhos tristes e um relincho rouco, testemunhava a verdade: a ganância de João havia selado o destino de ambos.

E assim, nas esquinas empoeiradas da pequena cidade, ecoava o lamento do quarto de milha, enquanto o pangaré, resign

Ah, permita-me, caro leitor, desdobrar os véus do tempo e conduzi-lo ainda mais fundo nessa trama de destinos entrelaçados. O pangaré e o quarto de milha, agora personagens de um drama rural, dançavam sua dança de infortúnios.

O pangaré, outrora esquecido, encontrou nos pastos do sitiante um refúgio. Suas patas, antes trôpegas, agora se firmavam na terra, como se agradecessem aos deuses por um pouco de verde e água. Ele não esquecera João, o homem de mãos calejadas, mas o rancor não encontrava morada em seu coração equino. Ele era um sobrevivente, um filósofo de cascos gastos.

— Ah, quarto de milha — relinchava o pangaré ao vento. — Você, que já foi nobre, agora se arrasta sob o jugo da charrete. A ganância de João nos uniu, mas também nos separou. Somos irmãos de infortúnio, você e eu.

O quarto de milha, magro e abatido, não compreendia os desígnios do destino. Seus olhos, outrora altivos, agora refletiam a melancolia das tardes sem fim. Ele se lembrava dos campos amplos, onde galopava como um raio, crina ao vento. Agora, suas patas se afundavam na lama, e o peso da charrete parecia esmagá-lo.

— Pangaré — sussurrava o quarto de milha, com voz rouca. — Por que trocamos? Por que aceitei essa sina? Eu, que já fui o orgulho dos pastos, agora sou um espectro de ossos e desesperança.

João, o artífice dessa tragédia rural, observava de longe. Seus olhos, pequenas fendas no rosto enrugado, brilhavam com uma mescla de triunfo e arrependimento. Ele escoava sua produção na charrete, enquanto o quarto de milha se arrastava, e o pangaré pastava, resignado.

Mas o pangaré, esse sábio de focinho encardido, tinha um plano. Ele se aproximou do quarto de milha, cascos afundando na terra úmida, e sussurrou:

— Irmão, não somos prisioneiros de João. O destino é uma teia, mas podemos tecer nossos próprios fios. O que dizes de uma aliança?

O quarto de milha ergueu a cabeça, olhos sem brilho fixos no pangaré.

— Uma aliança? Como?

— João é ganancioso, mas não é imortal. Ele envelhece como todos nós. Quando a noite cair, quando as estrelas bordarem o céu, escapemos. Deixemos para trás a charrete, os campos exauridos e as lembranças amargas. Sigamos rumo ao desconhecido, como dois cavaleiros errantes em busca de redenção.

E assim, na penumbra daquela noite, o pangaré e o quarto de milha escaparam. Suas patas, agora unidas pelo mesmo propósito, galoparam sob a lua. João, ao acordar, encontrou a charrete vazia e praguejou contra os céus.

E o pangaré, com um relincho de liberdade, disse ao quarto de milha:

— Irmão, somos cavalos de uma mesma estrela. Que nossos cascos nos levem além das cercas e dos lamentos. Que sejamos livres, mesmo que por uma noite.

E assim, entre os campos e as colinas, eles seguiram, dois destinos entrelaçados, em busca de um horizonte sem amarras.

terça-feira, 10 de setembro de 2024

O Voo do Destino

 

 

Na calma de uma noite estrelada, envolta pelas brisas suaves que percorriam as montanhas e vales, a natureza parecia repousar em sua plenitude. No entanto, entre as sombras do crepúsculo, havia uma figura singular que, apesar de muitas vezes desprezada, desempenhava um papel grandioso no enredo da criação: o morcego, aquele que dançava nos ares com uma elegância obscura, quase como se fosse um mistério guardado pelos segredos noturnos.

Ao deslizar sob o céu escuro, o morcego, pequeno e ligeiro, traçava sua jornada entre árvores e flores. Sua presença, muitas vezes temida por olhares humanos, era, de fato, a de um guardião silencioso. Ele percorria os ares, movido por uma missão secreta e nobre, como um herói ignorado, que, em seu humilde papel, sustentava a delicada trama da vida. Ao devorar insetos que, sem sua intervenção, poderiam disseminar doenças sobre a humanidade, o morcego combatia as sombras da enfermidade, mesmo sem o reconhecimento daqueles que ele silenciosamente protegia.

Por entre os galhos retorcidos e as flores que se abriam sob a luz da lua, ele se movia com destreza. Sua proximidade com as flores era íntima; ele, com um toque gentil, polinizava essas criaturas fragéis, dando-lhes a chance de continuarem o ciclo perpétuo da vida. Assim, não era apenas um ser alado que percorria os céus à busca de sustento. Ele, com suas pequenas asas de veludo, era o mensageiro da perpetuidade, semeando, através das florestas, a promessa de novas gerações de plantas e flores silvestres.

Mas não era apenas isso. Ao se nutrir de frutas delicadas, encontradas nos recantos mais secretos das matas, o morcego, quase como um jardineiro involuntário, dispersava sementes ao longo de vastas terras. E essas sementes, ao encontrarem o solo fértil, germinavam e floresciam, perpetuando o verde que a tantos encantava. As árvores cresciam, as flores desabrochavam, e os frutos amadureciam — e tudo isso, movido pela ação quase invisível de um ser que, muitas vezes, passava despercebido.

E assim, as corujas, majestosas e serenas em suas patrulhas noturnas, vinham ao encontro desse pequeno guardião dos ares. Naquela relação entre predador e presa, um equilíbrio sagrado era mantido, algo que poucos podiam enxergar. Cada movimento no ciclo da vida ecoava em harmonia, desde o simples voo do morcego até o olhar vigilante da coruja, criando uma sinfonia perfeita da natureza.

E quem diria que o homem, muitas vezes alheio às sutilezas da vida que o cercava, também se beneficiava desse frágil mamífero? Sim, o ser humano, tão ansioso por controlar o mundo ao seu redor, desconhecia que o morcego, com suas asas discretas e movimentos silenciosos, era um dos responsáveis pela manutenção dos ecossistemas que sustentavam sua própria existência.

Nesse cenário de mistérios e harmonia, o morcego era, em verdade, um herói desconhecido. E, como tantas vezes acontece nas tramas da vida, o que aos olhos humanos parecia desprezível e assustador, revelava-se, na essência, grandioso e vital.

O Amor Alado dos Morcegos


Era uma noite de lua cheia, quando os morcegos dançavam nos céus como notas soltas de uma melodia secreta. Na pequena vila de São Sebastião, onde o tempo parecia suspenso entre as árvores centenárias, vivia um jovem chamado Augusto. Seus olhos, escuros como a noite, escondiam sonhos que se entrelaçavam com as asas dos morcegos.

Augusto era um estudante de biologia, apaixonado pelos mistérios da natureza. Ele caminhava pelas trilhas sombrias, observando os raios prateados que iluminavam os galhos retorcidos. E foi em uma dessas noites, quando o vento sussurrava segredos e as estrelas piscavam como olhos curiosos, que ele encontrou Maria.

Maria era diferente das outras moças da vila. Seus cabelos eram negros como a asa de um morcego, e seus olhos, profundos como abismos. Ela não temia a escuridão; ao contrário, parecia abraçá-la com ternura. Augusto a viu pela primeira vez junto ao riacho, onde os morcegos mergulhavam em busca de insetos. Ela os observava com um sorriso enigmático.

“Os morcegos têm um papel importante na cadeia alimentar”, disse Maria, sua voz suave como o farfalhar das folhas. “Eles são os guardiões da noite, os caçadores silenciosos que mantêm o equilíbrio.”

Augusto ficou fascinado. Maria sabia coisas que não estavam nos livros, segredos que só os morcegos compartilhavam com ela. Ela explicou como eles eram presas das corujas, mas também polinizadores das flores. Como consumiam frutas silvestres e, ao voar de árvore em árvore, espalhavam sementes, tecendo o destino da vegetação.

“Inacreditável”, murmurou Augusto, olhando para os morcegos que dançavam acima deles. “Como algo tão pequeno pode ter um papel tão vital?”

Maria riu, e o som ecoou como o bater de asas. “Assim como os morcegos, o ser humano também tem seu papel. Somos todos parte dessa teia invisível que sustenta a vida. Você, Augusto, é como um morcego: discreto, mas essencial.”

E assim começou o romance entre eles. Nas noites de lua cheia, Augusto e Maria se encontravam junto ao riacho, observando os morcegos. Ele aprendia com ela sobre a delicadeza das asas, sobre o amor alado que os unia. Ela lhe ensinava a ouvir o coração da natureza, a sentir o pulsar das estrelas.

Um dia, quando os morcegos voavam em círculos acima deles, Maria sussurrou: “Augusto, nosso amor é como o voo dos morcegos. Silencioso, mas poderoso. Ele também mantém o equilíbrio.”

E assim, nos recantos sombrios da vila, o amor alado dos morcegos se entrelaçou com o destino de Augusto e Maria. Eles se tornaram parte da noite, parte da dança secreta que ecoava pelos séculos. E quando os morcegos voavam, eles sabiam que o mundo estava em harmonia, graças a esse pequeno mamífero voador e ao amor que transcendia as sombras.