domingo, 8 de dezembro de 2024

Vergonha e Escombros

 

Na vastidão dos tempos, onde outrora vigoravam a honra e o respeito, fui lançada ao mundo como descendente de pais de retidão cristalina, tão imaculados quanto as lousas celestes dos sermões de Vieira. Eram honrados, admirados e respeitados — adjetivos que hoje soam como sinos rachados em igrejas abandonadas.

Porém, desgraça maior recaiu sobre mim e meus irmãos: herdamos bens de raiz, robustos na aparência, mas frágeis na alma, tal qual edifícios de orgulho corroídos pelo tempo. Com mãos incapazes de lavrar ou cuidar, reduzimos a solidez ao pó das ruínas. As paredes que já ouviram preces de prosperidade hoje testemunham murmúrios de desventura.

Mas o mais cruel foi o que nos foi negado — o respeito. Ah, esse tesouro invisível que não se herda por testamento! Amigos e conhecidos afastaram-se como se nossas desgraças fossem contagiosas. Até mesmo a Polícia Militar, que se supõe guardiã da ordem, nos brindou com a indiferença de quem vê mais uma pedra no caminho.

Foi assim que nossa propriedade, destituída de inquilinos e sorte, tornou-se refúgio de almas errantes: drogados, andarilhos e espíritos perdidos. Ali depositaram seus pertences como quem marca território em terras sem lei.

Chamei as autoridades com a expectativa de justiça. Vieram como inquisidores cansados, mas sem vontade de acender fogueiras. Recusaram-se a registrar o boletim, sugerindo que eu mesma tocasse fogo nos pertences — que proposta mais divina e sutil! Fosse eu senhora de engenho, talvez aceitasse o conselho inflamável.

Porém, ciente de que o mundo do crime não perdoa ofensas nem incêndios, preferi um ato mais cristão: recolhi cada objeto e o dispus cuidadosamente na rua, como oferenda aos deuses da sobrevivência. Devolvi-lhes tudo, não por misericórdia, mas para proteger o pouco que ainda me restava: a prudência e o desejo de evitar mais tragédias.

E assim sigo, herdeira de ruínas e desprezo, à espera de um milagre barroco que restaure não só as paredes desmoronadas, mas também o respeito perdido — esse bem mais raro que qualquer pedra preciosa escondida sob a terra infértil da desilusão.

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