Na vastidão dos tempos, onde outrora vigoravam a
honra e o respeito, fui lançada ao mundo como descendente de pais de retidão
cristalina, tão imaculados quanto as lousas celestes dos sermões de Vieira.
Eram honrados, admirados e respeitados — adjetivos que hoje soam como sinos
rachados em igrejas abandonadas.
Porém, desgraça maior recaiu sobre mim e meus
irmãos: herdamos bens de raiz, robustos na aparência, mas frágeis na alma, tal
qual edifícios de orgulho corroídos pelo tempo. Com mãos incapazes de lavrar ou
cuidar, reduzimos a solidez ao pó das ruínas. As paredes que já ouviram preces
de prosperidade hoje testemunham murmúrios de desventura.
Mas o mais cruel foi o que nos foi negado — o
respeito. Ah, esse tesouro invisível que não se herda por testamento! Amigos e
conhecidos afastaram-se como se nossas desgraças fossem contagiosas. Até mesmo
a Polícia Militar, que se supõe guardiã da ordem, nos brindou com a indiferença
de quem vê mais uma pedra no caminho.
Foi assim que nossa propriedade, destituída de inquilinos
e sorte, tornou-se refúgio de almas errantes: drogados, andarilhos e espíritos
perdidos. Ali depositaram seus pertences como quem marca território em terras
sem lei.
Chamei as autoridades com a expectativa de justiça.
Vieram como inquisidores cansados, mas sem vontade de acender fogueiras.
Recusaram-se a registrar o boletim, sugerindo que eu mesma tocasse fogo nos
pertences — que proposta mais divina e sutil! Fosse eu senhora de engenho,
talvez aceitasse o conselho inflamável.
Porém, ciente de que o mundo do crime não perdoa
ofensas nem incêndios, preferi um ato mais cristão: recolhi cada objeto e o
dispus cuidadosamente na rua, como oferenda aos deuses da sobrevivência.
Devolvi-lhes tudo, não por misericórdia, mas para proteger o pouco que ainda me
restava: a prudência e o desejo de evitar mais tragédias.
E assim sigo, herdeira de ruínas e desprezo, à
espera de um milagre barroco que restaure não só as paredes desmoronadas, mas
também o respeito perdido — esse bem mais raro que qualquer pedra preciosa
escondida sob a terra infértil da desilusão.
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