terça-feira, 3 de dezembro de 2024

O Testamento das Almas Ausentes

 


Nas sombras de um entardecer opaco, quando a brisa trazia ecos de palavras não ditas, Sofia sentava-se diante da escrivaninha antiga. O móvel, herdado junto aos imóveis alugados, parecia carregar em suas fibras a essência de seus pais. Ela e os irmãos haviam se reunido no mesmo espaço dias antes, lendo o testamento que não deixava dúvidas sobre o legado material, mas lançava sombras sobre o que nunca fora dito: o respeito que tanto buscavam.

Dois meses haviam passado desde o adeus aos progenitores, e os ecos das vozes dos inquilinos soavam como notas dissonantes em um réquiem. Primeiro veio o silêncio de um contrato ignorado, o vazio de um aluguel que não chegava. Depois, dois outros se arrastavam em um ritmo insuportável, com pagamentos que chegavam tarde, como um suspiro ao fim de uma longa asfixia.

Sofia contemplava a luz pálida do abajur, onde os insetos dançavam em espirais insanas. Não era apenas o dinheiro que a corroía, mas a confirmação cruel de uma suspeita antiga: ela e seus irmãos eram invisíveis, sombras de uma herança sem raízes. Entre amigos e familiares, o nome da família havia sido grande, mas sua geração não passava de um eco frágil.

Na mente de Sofia, os imóveis eram fantasmas, erguidos com suor, lágrimas e talvez um pouco de arrogância. Os pais, em vida, haviam comandado respeito e admiração, mas não haviam transferido esse legado imaterial aos filhos. O que significava, afinal, a propriedade, se ela era apenas uma concha vazia de autoridade?

Na penumbra do quarto, Sofia fechou os olhos e sentiu uma dor profunda, como se a própria casa em que estava lhe sussurrasse verdades incômodas. Eles não haviam herdado o respeito, e as paredes sabiam disso.

Enquanto a noite se tornava densa, Sofia sentiu que não era apenas o legado que lhes faltava. Era como se, na luta por serem vistos, eles tivessem deixado escapar a essência do que os conectava. O respeito não se herda em testamentos; é tecido em olhares e atos, em palavras ditas no momento certo.

Sofia olhou para a lua, que surgia como um olho prateado no céu, julgando-a. Naquele momento, percebeu que o respeito era como a luz da lua: só refletia aquilo que era capaz de iluminar. E talvez, só talvez, ela e seus irmãos precisassem encontrar sua própria luz, mesmo que a dor da ausência fosse insuportável.

 

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