sábado, 14 de setembro de 2024

o relincho da liberdade

 

 

Era uma vez, em um rincão esquecido pelos mapas, uma aldeia onde o tempo parecia ter se enredado nas teias da aranha. As ruas, estreitas e tortuosas, abrigavam casas de adobe e janelas com cortinas de renda. A prefeitura, tão distante quanto a lua, pouco se importava com os animais que vagueavam livremente, como fantasmas desgarrados.

Nesse cenário, vivia um homem de semblante enrugado e mãos calejadas. Seu nome? Ah, pouco importa. Chamemo-lo de João das Carroças. João possuía uma charrete, um veículo de madeira carcomida que rangia como um velho ao se levantar da cama. E, como fiel escudeiro, um pangaré de pelagem baça, olhos melancólicos e ossos salientes. O pangaré, coitado, não tinha nome; era apenas “o pangaré de João”.

João, porém, enfrentava um dilema. O pangaré, faminto e sedento, não encontrava pasto nas ruas de paralelepípedo. João não tinha onde deixá-lo livre para pastar, e sua bolsa, mais vazia que o coração de um ermitão, não permitia tratamentos extravagantes. Assim, o pangaré perambulava, farejando mato em terrenos baldios e implorando aos moradores que o acolhessem em seus lotes cercados.

— Deixe-o aqui, João — diziam as pessoas, com olhos piedosos. — Ele não faz mal a ninguém, e economizamos com o capinador.

E assim, o pangaré se tornou um mendigo de gramíneas, um andarilho de ervas secas. Seu lombo curvado carregava a fome e a tristeza, enquanto João observava, impotente, a agonia do animal.

Mas o destino, esse tecelão de tramas cruéis, tinha outros planos. João cobiçava o quarto de milha de um sitiante abastado. Um cavalo de raça, altivo como um príncipe, que relinchava com a nobreza dos que não conhecem o arado. João propôs a troca, alegando que o quarto de milha não se rebaixaria a puxar uma charrete. E ele, João, precisava da charrete para escoar sua produção de milho e feijão, além de outras atividades do sítio.

O sitiante, ingênuo ou ganancioso, aceitou a barganha. O pangaré, com olhos sem brilho, trocou de mãos. E o quarto de milha, agora sob o jugo da charrete, perdeu peso e vigor. Suas patas finas tremiam ao puxar a carga, e seu pelo lustroso deu lugar a uma pelagem em desalinho.

Menos de um mês se passou, e o quarto de milha definhou. Não mais transportava crianças, nem mesmo um saco de grãos. O novo dono, arrependido, quis desfazer a troca. Mas João, astuto como um corvo, recusou. O pangaré, agora de volta a seu antigo lar, pastava nos campos do sitiante, recuperando forças.

Revoltado, o  antigo dono do pangaré, invadiu o sítio de João. Gritou aos quatro ventos que o antigo proprietário roubou seu cavalo. Mas o pangaré, com olhos tristes e um relincho rouco, testemunhava a verdade: a ganância de João havia selado o destino de ambos.

E assim, nas esquinas empoeiradas da pequena cidade, ecoava o lamento do quarto de milha, enquanto o pangaré, resign

Ah, permita-me, caro leitor, desdobrar os véus do tempo e conduzi-lo ainda mais fundo nessa trama de destinos entrelaçados. O pangaré e o quarto de milha, agora personagens de um drama rural, dançavam sua dança de infortúnios.

O pangaré, outrora esquecido, encontrou nos pastos do sitiante um refúgio. Suas patas, antes trôpegas, agora se firmavam na terra, como se agradecessem aos deuses por um pouco de verde e água. Ele não esquecera João, o homem de mãos calejadas, mas o rancor não encontrava morada em seu coração equino. Ele era um sobrevivente, um filósofo de cascos gastos.

— Ah, quarto de milha — relinchava o pangaré ao vento. — Você, que já foi nobre, agora se arrasta sob o jugo da charrete. A ganância de João nos uniu, mas também nos separou. Somos irmãos de infortúnio, você e eu.

O quarto de milha, magro e abatido, não compreendia os desígnios do destino. Seus olhos, outrora altivos, agora refletiam a melancolia das tardes sem fim. Ele se lembrava dos campos amplos, onde galopava como um raio, crina ao vento. Agora, suas patas se afundavam na lama, e o peso da charrete parecia esmagá-lo.

— Pangaré — sussurrava o quarto de milha, com voz rouca. — Por que trocamos? Por que aceitei essa sina? Eu, que já fui o orgulho dos pastos, agora sou um espectro de ossos e desesperança.

João, o artífice dessa tragédia rural, observava de longe. Seus olhos, pequenas fendas no rosto enrugado, brilhavam com uma mescla de triunfo e arrependimento. Ele escoava sua produção na charrete, enquanto o quarto de milha se arrastava, e o pangaré pastava, resignado.

Mas o pangaré, esse sábio de focinho encardido, tinha um plano. Ele se aproximou do quarto de milha, cascos afundando na terra úmida, e sussurrou:

— Irmão, não somos prisioneiros de João. O destino é uma teia, mas podemos tecer nossos próprios fios. O que dizes de uma aliança?

O quarto de milha ergueu a cabeça, olhos sem brilho fixos no pangaré.

— Uma aliança? Como?

— João é ganancioso, mas não é imortal. Ele envelhece como todos nós. Quando a noite cair, quando as estrelas bordarem o céu, escapemos. Deixemos para trás a charrete, os campos exauridos e as lembranças amargas. Sigamos rumo ao desconhecido, como dois cavaleiros errantes em busca de redenção.

E assim, na penumbra daquela noite, o pangaré e o quarto de milha escaparam. Suas patas, agora unidas pelo mesmo propósito, galoparam sob a lua. João, ao acordar, encontrou a charrete vazia e praguejou contra os céus.

E o pangaré, com um relincho de liberdade, disse ao quarto de milha:

— Irmão, somos cavalos de uma mesma estrela. Que nossos cascos nos levem além das cercas e dos lamentos. Que sejamos livres, mesmo que por uma noite.

E assim, entre os campos e as colinas, eles seguiram, dois destinos entrelaçados, em busca de um horizonte sem amarras.

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