Era uma
vez, em um rincão esquecido pelos mapas, uma aldeia onde o tempo parecia ter se
enredado nas teias da aranha. As ruas, estreitas e tortuosas, abrigavam casas
de adobe e janelas com cortinas de renda. A prefeitura, tão distante quanto a
lua, pouco se importava com os animais que vagueavam livremente, como fantasmas
desgarrados.
Nesse
cenário, vivia um homem de semblante enrugado e mãos calejadas. Seu nome? Ah,
pouco importa. Chamemo-lo de João das Carroças. João possuía uma charrete, um
veículo de madeira carcomida que rangia como um velho ao se levantar da cama.
E, como fiel escudeiro, um pangaré de pelagem baça, olhos melancólicos e ossos
salientes. O pangaré, coitado, não tinha nome; era apenas “o pangaré de João”.
João, porém, enfrentava um dilema. O
pangaré, faminto e sedento, não encontrava pasto nas ruas de paralelepípedo.
João não tinha onde deixá-lo livre para pastar, e sua bolsa, mais vazia que o
coração de um ermitão, não permitia tratamentos extravagantes. Assim, o pangaré
perambulava, farejando mato em terrenos baldios e implorando aos moradores que
o acolhessem em seus lotes cercados.
— Deixe-o
aqui, João — diziam as pessoas, com olhos piedosos. — Ele não faz mal a
ninguém, e economizamos com o capinador.
E assim,
o pangaré se tornou um mendigo de gramíneas, um andarilho de ervas secas. Seu
lombo curvado carregava a fome e a tristeza, enquanto João observava,
impotente, a agonia do animal.
Mas o
destino, esse tecelão de tramas cruéis, tinha outros planos. João cobiçava o
quarto de milha de um sitiante abastado. Um cavalo de raça, altivo como um
príncipe, que relinchava com a nobreza dos que não conhecem o arado. João
propôs a troca, alegando que o quarto de milha não se rebaixaria a puxar uma
charrete. E ele, João, precisava da charrete para escoar sua produção de milho
e feijão, além de outras atividades do sítio.
O sitiante, ingênuo ou ganancioso, aceitou a
barganha. O pangaré, com olhos sem brilho, trocou de mãos. E o quarto de milha,
agora sob o jugo da charrete, perdeu peso e vigor. Suas patas finas tremiam ao
puxar a carga, e seu pelo lustroso deu lugar a uma pelagem em desalinho.
Menos de
um mês se passou, e o quarto de milha definhou. Não mais transportava crianças,
nem mesmo um saco de grãos. O novo dono, arrependido, quis desfazer a troca.
Mas João, astuto como um corvo, recusou. O pangaré, agora de volta a seu antigo
lar, pastava nos campos do sitiante, recuperando forças.
Revoltado,
o antigo dono do pangaré, invadiu o
sítio de João. Gritou aos quatro ventos que o antigo proprietário roubou seu
cavalo. Mas o pangaré, com olhos tristes e um relincho rouco, testemunhava a
verdade: a ganância de João havia selado o destino de ambos.
E assim, nas
esquinas empoeiradas da pequena cidade, ecoava o lamento do quarto de milha,
enquanto o pangaré, resign
Ah, permita-me, caro
leitor, desdobrar os véus do tempo e conduzi-lo ainda mais fundo nessa trama de
destinos entrelaçados. O pangaré e o quarto de milha, agora personagens de um
drama rural, dançavam sua dança de infortúnios.
O
pangaré, outrora esquecido, encontrou nos pastos do sitiante um refúgio. Suas
patas, antes trôpegas, agora se firmavam na terra, como se agradecessem aos
deuses por um pouco de verde e água. Ele não esquecera João, o homem de mãos
calejadas, mas o rancor não encontrava morada em seu coração equino. Ele era um
sobrevivente, um filósofo de cascos gastos.
— Ah,
quarto de milha — relinchava o pangaré ao vento. — Você, que já foi nobre,
agora se arrasta sob o jugo da charrete. A ganância de João nos uniu, mas
também nos separou. Somos irmãos de infortúnio, você e eu.
O quarto
de milha, magro e abatido, não compreendia os desígnios do destino. Seus olhos,
outrora altivos, agora refletiam a melancolia das tardes sem fim. Ele se
lembrava dos campos amplos, onde galopava como um raio, crina ao vento. Agora,
suas patas se afundavam na lama, e o peso da charrete parecia esmagá-lo.
— Pangaré — sussurrava o quarto de milha,
com voz rouca. — Por que trocamos? Por que aceitei essa sina? Eu, que já fui o
orgulho dos pastos, agora sou um espectro de ossos e desesperança.
João, o
artífice dessa tragédia rural, observava de longe. Seus olhos, pequenas fendas
no rosto enrugado, brilhavam com uma mescla de triunfo e arrependimento. Ele
escoava sua produção na charrete, enquanto o quarto de milha se arrastava, e o
pangaré pastava, resignado.
Mas o
pangaré, esse sábio de focinho encardido, tinha um plano. Ele se aproximou do
quarto de milha, cascos afundando na terra úmida, e sussurrou:
— Irmão,
não somos prisioneiros de João. O destino é uma teia, mas podemos tecer nossos
próprios fios. O que dizes de uma aliança?
O quarto
de milha ergueu a cabeça, olhos sem brilho fixos no pangaré.
— Uma
aliança? Como?
— João é
ganancioso, mas não é imortal. Ele envelhece como todos nós. Quando a noite
cair, quando as estrelas bordarem o céu, escapemos. Deixemos para trás a
charrete, os campos exauridos e as lembranças amargas. Sigamos rumo ao
desconhecido, como dois cavaleiros errantes em busca de redenção.
E assim,
na penumbra daquela noite, o pangaré e o quarto de milha escaparam. Suas patas,
agora unidas pelo mesmo propósito, galoparam sob a lua. João, ao acordar,
encontrou a charrete vazia e praguejou contra os céus.
E o
pangaré, com um relincho de liberdade, disse ao quarto de milha:
— Irmão,
somos cavalos de uma mesma estrela. Que nossos cascos nos levem além das cercas
e dos lamentos. Que sejamos livres, mesmo que por uma noite.
E assim,
entre os campos e as colinas, eles seguiram, dois destinos entrelaçados, em busca
de um horizonte sem amarras.
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