Não é um conto de fadas com final feliz.
É um conto que fala das agruras da vida do cidadão comum e dos pequenos pretextos
para a explosão da violência. Em mil novecentos e vinte e seis, os corações da
pacata cidade interiorana batiam em compasso com a disputa eleitoral. Doutor
Preto e Doutor Branco, os dois candidatos a prefeito, travavam uma batalha
feroz pelas mentes e votos dos cidadãos. Nas ruas de paralelepípedos, onde o
sol se escondia timidamente entre as casas coloniais, o Meritíssimo Juiz
dedicava-se diariamente ao trabalho de alistamento de eleitores no salão do
Fórum. Ao seu lado, o enigmático escrivão Piau, cujo nome de batismo permanecia
um mistério, às más línguas diziam até
que não tinha recebido o sacramento por
ser filho de mãe solteira, razão pela qual permanecia solteiro aos 40 anos de
idade, afinal, qual moça de família arriscaria casar com um pagão?
Mas não eram apenas os votos que fervilhavam naquela cidade. O destacamento
policial, liderado pelo Anspeçada Genivaldo Paulo, impunha uma atmosfera de
apreensão. Genivaldo, homem de natureza forte e que levava a sério o dever, era
temido por todos aqueles que tinham uma conduta duvidosa. Suas ações severas fazendo cumpriro rigor da lei, geravam queixas amargas entre meliantes e admiração e gratidão ao restante da
população, e o medo pairava no ar como uma nuvem escura, não só pela honradez eficácia do
militar, mas temendo alteração dos ânimos entre os eleitores fanáticos.
Era um tempo de lembranças sombrias, quando o voto de cabresto rigoroso
do passado ainda ecoava nas memórias dos mais velhos, agora era somente um
compromisso verbal, sem o capanga ao lado, quebrando o sigilo do voto, para
conferir se o eleitor estava cumprido com o acordado. A tensão se fazia
palpável, pronta para explodir em ódio suprimido.
Em um dia quente de julho, que nem parecia inverno, que o destino de
Genivaldo tomou um rumo inesperado. Enquanto os trabalhos de alistamento
prosseguiam no pavimento superior do Fórum, no térreo, junto à porta de
entrada, um atrito irrompeu entre o Anspeçada e um homem conhecido como
Torresmo. Armado, decidido e encrenqueiro por natureza, Torresmo tentava subir
ao salão, mas Genivaldo não permitiria, era o regulamento. A luta foi intensa,
e das proximidades, homens armados e de
má fama, observavam, prontos para intervir,
e mudar o rumo da luta, a favor
deles.
Tiros ecoaram, contra
o Anspeçada, que respondeu com valentia e quando o combate cessou, não havia
sobreviventes. Na Praça da Matriz, à luz do dia, em frente à cadeia e sob o
olhar atento do juiz de direito, jaziam Genivaldo e Torresmo. Um indigente
curioso, a mula de carga e o cachorro de um eleitor que estavam amarrados no
limpador de pés, também compartilhavam o destino trágico.
O pânico se espalhou como fogo, dentro e fora do edifício. Os trabalhos
do juiz foram interrompidos, e um eleitor, apavorado, dirigiu-se ao magistrado.
É o Apocalipse Meritíssimo! Com um
sorriso amarelo o magistrado respondeu:-
Não, é apenas um entrevero entre homens que respeitam as Leis e os que as desrespeitam;
Naquele dia, soube-se
o quanto o militar era odiado pelos meliantes da cidade: seu corpo apresentava
quarenta e seis perfurações de bala. Em seu velório, compareceu em peso a
população honesta e trabalhadora, para despedir-se daquele que, com sua
severidade, tanto os havia protegido. E por muitos anos, ao pé do fogo, os avós
contavam aos netos, o episódio, no dia
em que o amor e o ódio, a política e a violência, honra e desonra, tudo se fundiu naquele momento,
como as águas de um rio que não pode voltar atrás.