segunda-feira, 3 de novembro de 2025

Quem Ousa Profanar o Túmulo do Meu Amor?

 

 

Ontem, dia consagrado à memória dos mortos, em que os vivos se curvam diante da eternidade, pus-me a caminho do campo santo, onde jazem os ossos venerandos de meus antepassados. Mal havia iniciado minha peregrinação fúnebre, quando o destino, cruel e zombeteiro, lançou-me ao chão com violência inaudita: caí, como se a terra quisesse me engolir, e ralei os joelhos e a mão direita, esta que agora pulsa como se nela residisse toda a dor do mundo.

No instante da queda, fui tomada por um pavor lancinante, um medo ancestral de que mais uma vez os ossos se rebelassem contra mim, e eu, pobre criatura, fosse condenada ao suplício do gesso, à imobilidade forçada, à prisão do corpo. Hesitei em levantar-me, como se o chão fosse mais seguro que o incerto erguimento. Mas, ao me erguer, vi que o estrago era menor que o susto — ainda que o susto fosse imenso, como um trovão que ressoa na alma.

Enquanto ali jazia, caída como uma mártir sem altar, movimentei o pé com cautela, como quem interroga os ossos: estais íntegros? E eles, silenciosos, responderam com ausência de dor. Os joelhos, ainda que feridos, não clamavam por socorro. Mas a mão — ah, a mão! — esta que se interpôs entre meu corpo e o chão, esta sofre, esta geme, esta se ressente. Os punhos, embora não perfeitos, ainda obedecem à vontade.

E então, quando enfim alcancei o túmulo de meu esposo — aquele que em vida abominava o artifício e reverenciava a natureza — fui acometida por uma visão que me fez empalidecer como quem vê um fantasma ao meio-dia: flores de plástico! Sim, flores de plástico, profanas, impuras, indignas! E eu não as levei. Não tivemos filhos, seus irmãos precederam-no na morte, os sobrinhos são sombras distantes, o afilhado nunca existiu. Quem, então, ousa adornar o túmulo de meu marido com tais simulacros da beleza natural?

Não é pessoa de posses, pois as flores — miseráveis flores! — são das mais baratas, vendidas em lojas de conveniência como quem vende esquecimento. Ou então, é uma alma miserável, que transita entre túmulos como ladra de homenagens, arrancando flores de um para depositar noutro, como quem joga dados com os mortos.

E o mais estarrecedor: as visitas são regulares! As flores, azuis como o céu que ele tanto amava, foram colocadas há pouco, antes de minha chegada. Isto é obra de mulher, sim, mulher sem juízo, sem pudor, sem reverência! Pois ele, meu esposo, defensor da natureza, jamais aceitaria tal afronta. Flores artificiais! Que insulto à memória de quem viveu em comunhão com o verde, com o vento, com o ciclo sagrado da vida!

E agora, como me sinto? Não é preciso perguntar. Sinto-me como quem carrega um fardo invisível, um peso que não se vê, mas que esmaga a alma. Minha cabeça é um templo de angústia, e meu coração, um relicário de indignação.

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