Tudo era escasso: roupas, sapatos, adereços e alimentos. Confesso que não sinto saudades daquelas noites em que antes de ir para a cama, eu não tomava um copo de leite, mas um copo de água com açúcar, porque era a única coisa que havia no armário e para abrandar a fome, dava asas a imaginação e ficava a vagar sobre o dia em que eu faria todos os cursos disponíveis no mercado e tornar-me-ia uma pessoa culta e próspera. Graças a este sonho, sobrevive aos desmandos da política que oprime a classe trabalhadora e consegui o maior de todos os sonhos do pobre: aposentar e junto com ela a pandemia do coronavírus, as intermináveis quarentenas, isolamento social e solidão.
Sem poder interagir com as pessoas da comunidade religiosa, a única opção que restou foi navegar na internet em busca de algo interessante com a capacidade de preencher o meu vazio existencial. Felizmente a oferta de cursos online gratuitos é farta e optei por um que prometia a cura das feridas da criança interior. Arrisquei e já na segunda aula, senti que feridas profundas, aparentemente esquecidas poderiam voltar a sangrar, mas decidi enfrentá-las. Não tenho nada a perder. Não consegui ser uma pessoa culta; não consigo conversar sobre política, filosofia, artes,tecnologia, discorro apenas sobre os preços de supermercados, farmácias e papos de novela e demais frivolidades da vida. Também não sou rica, nem mesmo posso ser classificada como uma pessoa com uma folga financeira, porém, tenho um computador e uso wi fi do prédio e posso desfrutar do prazer do saber de pessoas inteligentes.
O bom do curso é que a mestra combina teoria e prática e na segunda aula, a reflexão girou em torno das necessidades básicas da criança, mas que o foco fosse a criança que um dia, nós alunas fomos. Já na primeira pergunta lagrimas silenciosas brotaram em abundância de meus olhos.
Toda criança precisa ser
bem-vinda. Não, eu não fui bem-vinda e menos ainda desejada. Tudo estava
preparado para receber o primogênito, o varão, aquele que iria honrar o nome da família, com trabalho e integridade. Eu fui aceita? Claro que não,
fui tolerada porque não havia outra opção, já que nasci em uma família de
católicos fervorosos, que juraram
perante Deus que criariam todos os filhos
que Deus lhes confiasse. Tiveram que suportar-me, meu pai o fez com resignação,
mas minha mãe lembrou-me até o dia de sua morte que eu não era o filho que ela
queria ter. Quanto à atenção, se recebi? Recebi o suficiente para crescer sem
trágicos acidentes domésticos e sentia-me segura no ambiente em que eu vivia,
com alimentação nas horas certas e naturais, porém, não tenho lembranças de
ser abraçada e beijada pelos meus pais. Mas tenho uma vaga lembrança de
brincadeiras
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