quinta-feira, 6 de maio de 2021

Minha criança interior

                

             Tudo era escasso: roupas, sapatos, adereços  e alimentos. Confesso que não sinto saudades daquelas noites em que  antes de ir para a cama, eu não tomava um copo de leite, mas um copo de água com açúcar, porque era a única coisa  que havia  no armário e para abrandar a fome, dava asas a imaginação e ficava a vagar sobre o dia em que eu faria todos os cursos disponíveis no mercado e tornar-me-ia uma pessoa culta e próspera. Graças a este sonho, sobrevive aos desmandos da política que oprime a classe trabalhadora e consegui o maior de todos os sonhos do pobre: aposentar e junto com ela a pandemia do coronavírus,  as intermináveis quarentenas, isolamento social e solidão.

            Sem poder interagir com as pessoas da comunidade religiosa, a única opção que restou foi   navegar na internet em busca de algo interessante com a capacidade de preencher o meu vazio existencial. Felizmente a oferta de cursos online gratuitos é farta e optei por um que prometia  a cura  das feridas da criança interior. Arrisquei e já na segunda aula, senti que feridas profundas, aparentemente esquecidas poderiam voltar a sangrar, mas decidi enfrentá-las. Não tenho nada a perder. Não consegui  ser  uma  pessoa culta; não consigo conversar sobre política, filosofia, artes,tecnologia, discorro apenas sobre os preços de supermercados, farmácias e papos de  novela e demais frivolidades da vida. Também não sou rica,  nem mesmo posso ser classificada como uma pessoa com uma folga financeira, porém, tenho um computador e uso wi fi do prédio e  posso desfrutar do prazer  do saber de  pessoas inteligentes.

            O bom do curso é que  a mestra combina teoria e prática e na segunda aula, a reflexão girou em torno das necessidades básicas da criança, mas que o foco fosse a criança que um dia, nós alunas fomos.  Já na primeira pergunta lagrimas silenciosas brotaram em abundância de meus olhos.

Toda criança precisa ser bem-vinda. Não, eu não fui bem-vinda e menos ainda desejada. Tudo estava preparado para receber o primogênito, o varão, aquele que iria   honrar  o nome da família, com trabalho  e integridade. Eu fui aceita? Claro que não, fui tolerada porque não havia outra opção, já que nasci em uma família de católicos  fervorosos, que juraram perante Deus que  criariam todos os filhos que Deus lhes confiasse. Tiveram que suportar-me, meu pai o fez com resignação, mas minha mãe lembrou-me até o dia de sua morte que eu não era o filho que ela queria ter. Quanto à atenção, se recebi? Recebi o suficiente para crescer sem trágicos acidentes domésticos e sentia-me segura no ambiente em que eu vivia, com alimentação  nas horas certas  e naturais, porém, não tenho lembranças de ser abraçada e beijada pelos meus pais. Mas tenho uma vaga lembrança de brincadeiras em família.  Nada  aprendi sobre ser mulher, sobre trabalhos domésticos, tive que aprender praticamente sozinha porque minha genitora não tinha paciência para ensinar,  preferia  ela própria executar todas as tarefas domésticas. Mas tenho que reconhecer que com os seus intermináveis falatórios estimulava-me a ter independência financeira, ou seja, não depender do marido como ela, pois os tempos estavam mudando e casamento já não representava  mais segurança, desquites já estavam acontecendo  em todas as classes sociais, Quanto a ser forte e sentir-se empoderada, ela o desejou sim, porém, o fez de modo errado, minando minhas habilidades diariamente e conseguiu o oposto, uma filha insegura e complexada que não sabe  lidar com as frustrações e especialista em somatização que exige até hoje, tratamento continuo.O  meu direito a  expressar a  alegria  também me  foi negado e com muita palmada para  que  eu não fizesse  algazarra. Ao contrário da maioria das mães, que enxergam as qualidades  e beleza que os filhos não possuem, a minha fazia questão de  ressaltar as minhas fraquezas e como se isto não bastasse, completava que eu não prestava para  nada, que eu era um castigo na vida dela. E o meu direito de ser acalmada nos momentos de dor e desespero? Eram resolvidos com o chicote e varinha da amoreira do quintal; não tenho uma lembrança  sequer do aconchego do colo materno. Não consigo escrever mais, meus olhos estão turvos pelas lágrimas que escorrem como cascatas nas pedras frias. Profundamente grata a  mestra que fez-me chorar e aliviar  as dores de minha infância.

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