A minha primeira
percepção de Natal cabia inteira dentro de um terço. Era assim: noite de vinte
e quatro, e também no dia eguinte, todos reunidos para rezar. Longas orações,
daquelas que até meu pai, homem firme e impaciente, não conseguia escapar.
E havia o almoço especial: frango ensopado, simples e saboroso. Nada mais.
Nenhum brilho, nenhum enfeite, tampouco Papai Noel. E sabe que eu nem sofria?
Como sentir falta daquilo que nunca se viu? Eu vivia sem perceber a pobreza —
cultural e financeira — que nos rodeava. Era o que era. E ponto.
Quando adolescente,
mudei para a cidade e descobri um novo vocabulário natalino: missa do galo,
decoração, luzes. Fui, claro, à famosa missa. E, veja só, o galo não cantou.
Voltei frustrada. Também não havia dinheiro para decorar a casa, nem para
aquela tal ceia que eu apenas ouvira falar. Mas, como antes, eu não sentia
falta: desconhecimento também é uma forma de anestesia.
No início da vida
profissional, porém, meu repertório natalino ganhou aromas e sabores. A empresa
onde trabalhava oferecia uma ceia farta aos funcionários do turno noturno. Eu
amava — sem culpa! Trabalhava feliz, e sejamos honestos: era, sobretudo, pela
comida diferente e deliciosa. Reclamava quando a regra interna me impedia de
trabalhar dois feriados seguidos, porque eu queria repetir a dose. Jovem é
assim: sincera até a raiz.
Mais tarde, em
outro emprego, desta vez diurno, fui obrigada a pesquisar sobre o Natal. A
partir desse estudo, compreendi a grandiosidade dessa festa que, ao que tudo
indica, é um dos maiores exemplos de sincretismo religioso e de pluralidade
cultural do mundo ocidental.
E, se você me permite, leitor, vou testar aqui a memória e revisitar os muitos
elementos que compõem esse mosaico natalino.
Jesus de Nazaré — o
aniversariante — nasceu, viveu e morreu como judeu, num tempo em que os judeus
sequer tinham o costume de comemorar aniversários natalícios. Celebrar o
nascimento de alguém é hábito antigo, mas veio de outras bandas. No Egito, o
aniversário do faraó marcava sua transformação em divindade; na Grécia,
acendiam-se velas em bolos oferecidos à deusa Ártemis. Os romanos, guerreiros e
práticos que são, instituíram as comemorações de aniversários das pessoas
comuns.
Do norte gelado da
Europa, durante o solstício de inverno, vem outra peça importante desse
quebra-cabeça: Odin, o deus nórdico, que percorria o céu montado em seu cavalo
de oito patas. As crianças deixavam comida para o animal em suas botinhas — e
ganhavam presentes em troca.
Com o avanço do
cristianismo e a proibição das festas pagãs, Odin foi aos poucos se
transmutando em outra figura: Papai Noel. A generosidade do bispo Nicolau de
Mirra ajudou a dar forma ao bom velhinho, que trocou o cavalo por renas, as
botas por meias e entrou pelas chaminés como o bispo que lançara dotes pela
janela para ajudar três jovens pobres.
Nos Estados Unidos, a Coca-Cola completou o serviço, fixando a imagem que
conhecemos hoje.
A árvore de Natal e
a guirlanda também são elementos pagãos que foram abraçados pela tradição
cristã. E que beleza elas emprestam às ruas, não?
Já o presépio, esse sim, veio pela mão sensível de São Francisco de Assis. E os
Reis Magos? Sua origem é incerta, mas a tradição aponta para a Pérsia.
Trouxeram ouro para reconhecer o rei, incenso para honrar o divino e mirra para
lembrar a humanidade — símbolos que continuam tocando a imaginação até hoje.
E então chegamos ao
presente, onde o Natal costuma ser acusado de excessivamente comercial. Mas, se
olharmos com calma, veremos que ele também é profundamente inclusivo. É a festa
que gera trabalho durante o ano inteiro: da extração da matéria-prima à
confecção dos enfeites, do cuidado com os animais ao preparo das bebidas e
pratos natalinos. Para muitos, é oportunidade de renda, dignidade e esperança.
As igrejas, por sua
vez, oferecem o espaço para o ritual, para o mergulho espiritual e para a
mensagem central do Menino Deus: a fraternidade. E as prefeituras que decoram
os espaços públicos merecem aplauso, pois o ser humano precisa do belo — e não
apenas por capricho.
A neurociência e a
psicologia ambiental já comprovaram que lugares cuidados, iluminados e
visualmente harmoniosos diminuem indicadores de tristeza e violência, além de
aumentar o senso de pertencimento e bem-estar.
O belo nos humaniza. O feio nos endurece. Talvez por isso tantas cidades
floresçam em dezembro — e com elas, nós também.
No fim das contas,
percebo que o Natal é, acima de tudo, uma celebração inclusiva. Honra um judeu
com elementos de culturas diversas, incorpora tradições antigas sem perder a
essência da mensagem original: comunhão. Jesus também ceou com seus apóstolos;
não é à toa que a ceia se tornou símbolo dessa noite.
O Natal não é
apenas espiritualidade: é reflexão, é memória, é adaptação ao tempo presente.
E, curiosamente, é também um lembrete do princípio bíblico de ajudar o próximo
— porque poucas formas de ajuda são tão dignas quanto oferecer trabalho. O
trabalho, afinal, dignifica o homem.
E você, leitor?
Que memórias de Natal lhe visitam quando as luzes se acendem?
Talvez, como eu, você descubra que, no fundo, o Natal sempre esteve menos nas
coisas e mais naquilo que elas despertam em nós.
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