Antero morava com a sobrinha caçula, Dona Filomena,
mulher de fibra, magra como uma promessa de dieta milagrosa, lutando contra as
sequelas de um câncer de mama e contra a inflação que transforma o arroz em
artigo de luxo. Filomena cuidava do tio com o que tinha — e, principalmente,
com o que não tinha. Ainda assim, mantinha o velho em casa, entre os cheiros
familiares e os barulhos conhecidos, como quem protege um pedaço da própria
história.
Mas eis que, num dia qualquer, surge uma assistente
social. Sim, do nada. Como quem aparece para fiscalizar o uso do sal na
feijoada de domingo. E, com uma autoridade que beira o divino, decide que
Filomena não pode mais cuidar do tio. Sem aviso, sem conversa, sem café. Antero
foi levado para o asilo no mesmo dia. Rápido como quem cancela assinatura de
streaming.
Filomena chorou como se tivessem enterrado o tio.
E, de certa forma, enterraram mesmo — não o corpo, mas a rotina, os afetos, o
direito de envelhecer entre os seus. A notícia chegou até mim pela Lívia, minha
vizinha. Ah, Lívia... Se eu fosse dar um apelido, seria “parasita gourmet”. Ela
não suga sangue, suga refeições. Almoça aos domingos na casa da Filomena,
visita no meio da semana na hora do café, e ainda se faz de amiga quando o
cardápio é bom. Já fui vítima. E não fui o único.
Em tempos de carne com preço de joia e pão que
parece feito de ouro, Lívia não se constrange. Economiza no mercado e gasta na
cara de pau. E foi aí que a pulga atrás da minha orelha começou a coçar. A
rapidez com que Antero foi internado, a ausência de processo, a vaga que
apareceu como milagre... Tudo muito conveniente. Principalmente para quem gosta
de se fazer necessária.
Tenho cá minhas suspeitas — e elas têm nome: Lívia.
Aposto que foi ela quem fez a denúncia anônima. Talvez tenha dito que Filomena
alimentava o tio com ração de gato. Ou que ele dormia no forno. Não sei. Mas
sei que ela é capaz. E mais: capaz de provocar a depressão da amiga só para se
oferecer como ombro amigo — desde que o ombro venha com café e bolo.
Crueldade tem muitas formas. Algumas usam salto
alto e batom nude. Lívia convive com quem lhe rende algo. Se não rende, ela
descarta. Como fazemos com o lixo. E Antero, que viveu quase um século, foi
tratado como entulho emocional. Tirado do mundo que conhecia, jogado entre
estranhos, como se o afeto fosse um luxo que não cabe no orçamento.
E assim seguimos, numa sociedade onde o velho é
peso, a amizade é moeda, e a solidariedade tem prazo de validade — geralmente
até a sobremesa acabar.
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