domingo, 5 de outubro de 2025

O Despacho do Velho Antero

 

 Na cidade onde até os pardais parecem cochichar segredos, aconteceu um episódio digno de novela mexicana — daquelas que passam depois do almoço, quando o calor faz a gente duvidar da própria sanidade. O protagonista? Velho Antero, 95 anos de pele marcada pelo tempo e pelo câncer, que foi despachado para um asilo como quem manda um sofá velho para o depósito da prefeitura.

Antero morava com a sobrinha caçula, Dona Filomena, mulher de fibra, magra como uma promessa de dieta milagrosa, lutando contra as sequelas de um câncer de mama e contra a inflação que transforma o arroz em artigo de luxo. Filomena cuidava do tio com o que tinha — e, principalmente, com o que não tinha. Ainda assim, mantinha o velho em casa, entre os cheiros familiares e os barulhos conhecidos, como quem protege um pedaço da própria história.

Mas eis que, num dia qualquer, surge uma assistente social. Sim, do nada. Como quem aparece para fiscalizar o uso do sal na feijoada de domingo. E, com uma autoridade que beira o divino, decide que Filomena não pode mais cuidar do tio. Sem aviso, sem conversa, sem café. Antero foi levado para o asilo no mesmo dia. Rápido como quem cancela assinatura de streaming.

Filomena chorou como se tivessem enterrado o tio. E, de certa forma, enterraram mesmo — não o corpo, mas a rotina, os afetos, o direito de envelhecer entre os seus. A notícia chegou até mim pela Lívia, minha vizinha. Ah, Lívia... Se eu fosse dar um apelido, seria “parasita gourmet”. Ela não suga sangue, suga refeições. Almoça aos domingos na casa da Filomena, visita no meio da semana na hora do café, e ainda se faz de amiga quando o cardápio é bom. Já fui vítima. E não fui o único.

Em tempos de carne com preço de joia e pão que parece feito de ouro, Lívia não se constrange. Economiza no mercado e gasta na cara de pau. E foi aí que a pulga atrás da minha orelha começou a coçar. A rapidez com que Antero foi internado, a ausência de processo, a vaga que apareceu como milagre... Tudo muito conveniente. Principalmente para quem gosta de se fazer necessária.

Tenho cá minhas suspeitas — e elas têm nome: Lívia. Aposto que foi ela quem fez a denúncia anônima. Talvez tenha dito que Filomena alimentava o tio com ração de gato. Ou que ele dormia no forno. Não sei. Mas sei que ela é capaz. E mais: capaz de provocar a depressão da amiga só para se oferecer como ombro amigo — desde que o ombro venha com café e bolo.

Crueldade tem muitas formas. Algumas usam salto alto e batom nude. Lívia convive com quem lhe rende algo. Se não rende, ela descarta. Como fazemos com o lixo. E Antero, que viveu quase um século, foi tratado como entulho emocional. Tirado do mundo que conhecia, jogado entre estranhos, como se o afeto fosse um luxo que não cabe no orçamento.

E assim seguimos, numa sociedade onde o velho é peso, a amizade é moeda, e a solidariedade tem prazo de validade — geralmente até a sobremesa acabar.

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