Um frio súbito percorreu-lhe a espinha quando Ana pisou na antiga estação de trem — palco onde, décadas antes de seu nascimento, seu avô partira para nunca mais regressar.
O vento parecia sussurrar segredos que o tempo não ousara apagar.
Avistou, ao longe, a casa materna — outrora viva em risos e perfumes, agora muda, cansada de esperar.
A mãe, outrora atriz de palcos luminosos, terminara seus dias como sombra de si mesma, esquecida pela crítica e pelo público, mas fiel às próprias ilusões.
Vivendo de lembranças, encenava para as paredes o que o mundo negara aplaudir.
— A chave está embaixo do tapete! — bradou o vizinho, fechando o portão como quem fecha um coração.
Ao girar a fechadura, um hálito de pó e maquiagem antiga subiu-lhe às narinas. O ar estava saturado de perfumes vencidos, lágrimas secas e aplausos imaginários.
— Mãe... onde você está?
Nenhuma resposta. Apenas o eco dos próprios passos.
No quarto, sobre a penteadeira descascada, repousava uma pequena urna improvisada. A inscrição tremida dizia:
Beatriz de Alencastro — 1942–2024.
Ao vê-la, o peso do abandono caiu sobre Mirela como um pano de veludo negro.
— Perdão, mãe, por tê-la deixado sozinha na última cena — murmurou.
Com mãos trêmulas, retirou os brincos e o colar, cortou os cabelos e vestiu-se de luto. Cumpriria o ritual do esquecimento, como quem apaga os refletores de um teatro.
Entre caixas de figurinos e roteiros amarelados, encontrou uma bolsa de couro gasto, costurada à mão, objeto que sempre acompanhara a mãe nas turnês e que agora guardava o mistério de um passado não ensaiado.
Passou os dedos pela superfície ressecada, mas a bolsa, velha de tantas viagens, rasgou-se ao toque.
De dentro, como relíquia do acaso, surgiu uma pequena bota infantil e um colar de ouro, guardado entre panos finos.
— Mãe... o que mais escondias de mim?
Dentro da bota havia uma carta, dobrada com precisão de atriz que sabe o valor da última fala. Ana a desdobrou, e a letra trêmula de Beatriz ressuscitou no papel:
“Minha filha,
Quando te encontrei à porta do camarim, envolta em panos, o mundo desabava sobre mim. Eu, que perdera o papel principal e a esperança, ganhei de súbito o sentido da vida.
Foste entregue a mim como bilhete do destino.
Talvez desejes buscar tua origem — que seja, mas leva contigo este colar, talismã de sorte e de perdão.
Se o teatro é mentira, o amor é a única verdade que resta.
Tua mãe, Beatriz.”
Ana levou o colar ao peito, sentindo que a joia pulsava como um coração exilado.
As lágrimas lhe turvaram a visão quando um toque à porta a trouxe de volta ao mundo.
— Procuro Beatriz de Alencastro — disse um homem grisalho, de voz grave.
— Ela se foi. Restam apenas lembranças.
— E a filha dela, Ana?
— Sou eu.
— Vim buscar a bolsa que lhe deixei anos atrás. —
Hesitante, ela mostrou o objeto rasgado. O homem tocou o couro, como quem acaricia um passado que já doeu demais.
— Dentro dela costurei um segredo. — Retirou um pequeno papel, escondido no forro, e leu em voz embargada:
“Sou músico errante. Minha esposa morreu no parto.
Peço à atriz Beatriz que crie minha filha, até que o destino me permita reencontrá-la.”
O silêncio que se seguiu foi denso como cortina prestes a cair.
O homem ergueu os olhos marejados:
— Cumpri minha pena e minha promessa. Vim buscá-la, Ana.
Ela o fitou em espanto. Tudo o que sabia sobre si mesma desfez-se como cenário de teatro ao fim do espetáculo.
Entre a luz e a sombra, o som e o silêncio, compreendeu-se filha de duas ruínas e de uma redenção.
Nenhum comentário:
Postar um comentário