Dona Eufrásia residia de favor, em um cômodo comercial, improvisado para residência, cedido por familiares; embora fosse exímia costureira, ela cobrava barato pelos seus serviços, alegando que suas clientes eram donas de casa de baixo poder aquisitivo, tinha freguesia fiel pois sua habilidade com tesouras e agulhas era lendária no bairro, muito embora tivesse um temperamento difícil e era de poucas palavras, há quem diga que nunca a viu sorrir, Em sua casa, o silêncio era quebrado somente pelo som constante da máquina de costura e dos latinos frenéticos de seu Nequito, seu velho e arisco cachorro, animal que confirma o dizer popular de que “é o cão quem escolhe o dono.” Até onde se sabe, Neguito era um cachorro de rua, que perambulava pela cidade e quando conheceu Dona Eufrásia, os populares dizem que foi amor à primeira vista, o animal entrou sem ser convidado e lá permanece até o seu último suspiro.
Neguito,
por outro lado, era uma criatura misteriosa! De pelagem negra e olhos
penetrantes, ele vagava pelo quintal e
pelas redondezas, como a temer que os seus segredos do passados fossem
descobertos e ele tivesse que retornar ao seu antigo lar. Embora fosse um vira-lata
comum, era cão de guarda, sempre dava sinal
com a proximidade das freguesas e os transeuntes evitavam o portão da costureira, temendo umas boas dentadas, já
que murmuravam a “boca miúda” que ele já
havia atacado várias pessoas, todas do sexo masculino e não moradores das
proximidades, e por prudência, iam pela outra calçada, que também os levava aos
mesmos destinos. Uma tarde, embora
concentrada na costura, ouviu um burburinho incomum do lado de fora, a vizinha,
Dona Arminda, aflita e bastante ofegante, viera lhe contar que o Neguito havia
mordido um adolescente, que não aceitou ajuda e, mesmo com a perna sangrando,
saiu correndo em direção ao bairro dos Tamboris. O fato deixou Dona Eufrásia
bastante envergonhada e preocupada, era por isso que ela nunca tivera um cão antes,
para evitar problemas. – O que eu faço agora? Eu não escolhi este animal, ele me
escolheu, deve ter uma razão para ele ter decido morar aqui? Disse consternada a
pobre costureira.
Preocupada
com a situação, ela comprou uma microcâmera e
amarrou no pescoço do animal, e do celular ela acompanhava os movimentos do cachorro. Colocou um aviso em sua porta que iria tirar
uns dias de folga para descanso. Em dois
dias de observações, ela percebeu um padrão nos ataques, ele ignorava crianças,
idosos, grávidas, portadores de necessidades especiais, pessoas olhando
celular, ele apenas as acompanhavam por algum tempo, caso houvesse algum outro
transeunte que não fosse da vizinhança, e claro, adorava latir e correr atrás
de ciclistas e motoqueiros. – Curioso, ela dizia em volta.
Lá pelo quarto dia, quando já estava mais prática com a tecnologia, próximo à meia-noite, ela observava uma senhora que trabalhava no hospital e voltava para casa, num ritmo que demonstrava cansaço. De repente surge um jovem de aparentemente uns 17 anos que a observava atentamente e era visível que ele estava seguindo a senhora, quando ele estava bem próximo, e já estendia a mão para puxar a bolsa da vítima em potencial, eis que neguito salta e morde a mão do jovem que fugiu apressadamente sem dar atenção aos gritos da mulher que perguntava se ele precisava de ajuda. – As incursões noturnas são para proteger o seu território e os moradores! disse em voz alta. Observou por mais uma semana, e quando viu que todos os ataques tinham uma justificava, chamou os vizinhos e mostrou as imagens das câmeras. Eles ficaram extasiados com a sabedoria do animal. Paulínia, a filha da bordadeira Joanita uma criança de cinco anos, porém muito esperta, pediu a palavra e disse: - Dona Eufrásia, costure um colete para o Neguito. Mamãe, a senhora pode bordar a frase: Neguito- guardião do bairro, para ele usar quando estiver patrulhando os bairros, como os policiais? Assim foi feito e a vida no bairro seguiu serena por muitos anos, mesmo depois do cão ter partido para o céu dos animais. O lendário Neguito é hoje uma lenda urbana, mas o mistério do porquê ele ter escolhido Dona Eufrásia, como sua dona, somente Deus, que tudo sabe e tudo vê, poderá dizer, mas como dizia dona Eufrásia, - esta curiosidade vai ficar comigo por muitos anos ainda, pois não tenho pressa de partir.
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