sábado, 29 de fevereiro de 2020

Anastacia e suas muletas

               
            Eu sou Anastácia. Nascida em  uma família de evangélicos fervorosos, cujos nomes eram predominantes bíblicos; um dia, questionei meus pais a razão pela qual escolheram este nome pitoresco para mim, que me causava desgosto, porque era vítima constante  de bullyng na escola. Com toda a paciência que é peculiar aos pais, quando estes  são obrigados a responder perguntas inesperadas, disseram que era uma homenagem a Anastácia Romanova,  filha do czar Nicolau II da Rússia  e da Czarina Alexandra Feodorovna, os últimos governantes autocráticos da Rússia Imperial. Mas ter nome uma nobre não fez de mim uma pessoa forte e determinada, capaz de lutar pelos seus objetivos. Um dos meus piores defeitos, o qual luto com ele há sete décadas, é a minha imbecilidade de oferecer ajuda material e conselhos  para que as pessoas  direcionem suas vidas da melhor forma possível. Foi necessário  anos  dobrando o joelho no altar, pedindo a Deus uma luz para que eu percebesse o papel ridículo que fiz durante tantos anos, e, infelizmente, continuo fazendo! Uma pessoa que sequer conseguiu  comprar um carro, engatar um namoro sério e  até o que é peculiar a toda mulher: a maternidade! Eu não fui capaz sequer de  gerar um filho e vivo  tentando ensinar às jovens mães como cuidar de sua prole. Que credibilidade tenho eu? Não sou pediatra, enfermeira, psicóloga, pedagoga especializada em educação infantil; nem sequer, especialista formada pela internet em cursos grátis. Meu tempo on-line é perdido assistindo post de imbecilidades. Não consigo concentrar em algo mais produtivo como uma palestra, um texto científico e  de autores de credibilidade internacional, pesquisadores das grandes universidades.   Devo ser tão pedante porque  nenhum familiar ou amiga, deu-me a cria para eu batizar.  Faz algum tempo que  percebi que a minha aparente generosidade não é sincera, é a maneira que eu encontrei para não admitir que sou uma incompetente e covarde, que não tenho a coragem necessária para enfrentar as dificuldades inerentes à vida, e uso a solidariedade como muleta para amparar as minhas derrotas, já que estava  dedicando os meus esforços em ajuda  a terceiros e, portanto, sem tempo e dinheiro para seguir  meu   caminho. A mais cretina de todas as desculpas para não assumir que não tenho garra, que sou covarde e temo constantemente o fracasso e a derrota.
            A minha intromissão na vida alheia começou cedo. Aos dezoito anos saí de casa em busca do sonho de ser uma modelo rica e famosa. Sem apoio de meus genitores,  tive que arrumar um emprego em um salão de beleza, como manicura, para arcar com os custos de moradia e alimentação. Como vivia obcecada pela possibilidade de uma vida glamourosa, não  terminei o ensino médio, e sempre  fui aprovada graças a misericórdia dos professores do ensino fundamental, já que  por força da pressão de meus país eu não podia faltar às aulas e não dava trabalho em sala de aula, mas a cobrança veio rápido, tive dificuldade em encontrar trabalho bem remunerado e, ao invés de retomar os estudos com seriedade, dediquei meu tempo livre e os minguados trocados em intromissão na vida de uma colega de trabalho, que soube bem tirar proveito da situação, não a culpo, porque  eu que ofereci ajuda, ela nunca me pediu nada. Ela engravidou solteira, foi abandonada pela família e também, pelo pai da criança, que apenas pagava o aluguel para ela. Após a licença maternidade ela foi demitida e que eu fiz?  Propus a ela  ajuda mútua. Eu iria morar na casa dela, assim eu economizaria o dinheiro do aluguel e a ajudaria nas despesas da casa e com a criança. Ela aceitou e minha vida se resumia em  trabalhar, pagar contas de luz, água e mercado, sem lazer, sem dinheiro e tempo  para procurar  cursos profissionais, e assim os anos iam passando, eu ficando mais velha e a possibilidade de ser uma  modelo famosa cada dia mais distante. E nesta vida, trabalho e casa, dez anos se passaram, ela conheceu um homem de outro estado, foi embora com ele e  nunca mais deu notícias. Eu fique sozinha, sem condições de arcar com  a despesa do aluguel e chorando de saudade da criança, a quem eu havia apegado muito.  Aparentemente havia aprendido a lição e fui estudar e correr atrás do sonho responsável por eu ter abandonado meus pais.
            Mudei para um barracão, cujo aluguel era mais barato e bem próximo da estação do Trem urbano. Consegui um emprego melhor,  passei a frequentar as oficinas de teatro e dança oferecidas gratuitamente pela prefeitura, na esperança de desenvolver a expressão corporal para melhor ser fotografada, e finalmente, ser capa de revista de moda e mais uma vez, não fui adiante com o meu propósito de vida. Meu radar rapidamente sintonizou um desvio e lá fui eu, toda generosa, oferecer ajuda, frisando: ninguém pediu. Eu que fui, mais uma vez  intrometer na vida alheia. A  filha de uma vizinha, portadora de  doença mental, vivia bem, na medida do possível, mas a xereta aqui, acreditou que podia fazer alguma coisa para  melhorar a vida dela, e como ela tinha habilidades para o artesanato,  o que eu  fiz? Passei a comprar materiais para ela. Ela  iniciou a produção de artefatos que  tiveram grande aceitação. Acredito que eu ofereci  matéria prima  durante uns oito anos. Eu nunca cobrei e nem ela ofereceu para pagar.  Fiquei desempregada e parei com as compras. Nem ela e nem família  me estenderam a mão. Passei fome, frio, estive para ser despejada, mas consegui  um novo trabalho, mudei novamente e voltei ao mercado de trabalho, com um baixo salário que mal cobria as despesas essências  de moradia, alimentação e remédios, pois já estava ficando velha. Finalmente a aposentadoria chegou, sem razão para comemorar porque é somente um salário mínimo. Com ela veio o vazio existencial. Sem  dinheiro para o lazer merecido após ter trabalhado  40 anos, com um imenso desejo de  uma vida  divertida, de estudar, participar de eventos culturais, palestras, saraus, que somente o dinheiro pode proporcionar, porque mesmo sendo gratuito, tem-se o custo do transporte urbano e, mais uma vez farejei uma nova muleta: Duas jovens, com os mesmos sonhos que um dia eu tive, ávidas por realizá-los em tempo hábil porque o tempo é implacável com todos e eu estou repetindo com elas, que já deixaram claro que aceitam de bom grado, apenas o meu dinheiro e  serviços grátis, e quanto a minha presença, quanto mais longe melhor, sequer respondem mensagem de whatsApp, quando não há um favor a pedir. Mas  hoje, último dia do mês de  fevereiro, deste ano bissexto, eu juro para mim, que vou parar, definitivamente de  usar a generosidade como muleta para  eu não fazer as coisas que realmente gosto, comer os alimentos que aprecio. Meu sonho profissional ficou em passado distante e o de construir uma família também, isto é fato e eu preciso aceitá-lo. Pela expectativa de vida das mulheres brasileiras de  79 anos de idade, restam-me apenas nove e estes, quero vivê-los intensamente, aproveitar casa instante, ouvir mais, falar menos, e principalmente, não intrometer na vida alheia.
            Como estão as pessoas que  usei como muletas para disfarçar o meu medo de lutar pelo meus ideais? Elas sim, foram inteligentes, souberam aproveitar a oportunidade que a vida ofereceu. Pelas redes sociais acompanho o sucesso delas. A colega do salão de beleza, continua casada e financeiramente bem, vive postando fotos de viagem ao exterior, em  visita a filha que trabalha  e reside em Bruxelas. A jovem doente mental, com o apoio familiar na administração de  seu  pequeno ateliê, comprou casa e seus produtos estão  em feiras, exposições de artesanatos. E eu? Por ter preocupado mais com a vida do outro do que da minha, vivo sozinha em um barracão, sempre a  lamentar as grandes oportunidades que a vida proporcionou-me e eu não soube aproveitá-las.
Anastácia K. Q. da Silva

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