quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

Natal solitário



       Nasci no alto do Morro, pelas mãos da parteira Dona Zica, uma santa, que acudia as parturientes da favela em sua hora. Quem já ouviu, na voz da grande Marlene, o samba de carnaval, Lata d’água,  dos compositores Luiz Antônio de Jota  Júnior, consegue imaginar  que a vida daquelas mulheres, no início do século XX não era fácil, moravam em barracos, sem nenhum saneamento básico e parindo um filho por ano. A criançada, em meio a tanta miséria, era feliz porque não conhecia outra forma de viver, algumas privilegiadas, como eu, quando completavam sete anos de idade, passavam a frequentar a  escola, que ficava a uns três quilômetro do Morro e com a ampliação de meus horizontes de  favelada,  começou a minha infelicidade porque comecei a desejar o que eu  sequer sabia que existia, como comemorações de aniversário e natal. Não sei a razão pela qual  minha família e vizinhos não frequentavam  a igreja, e assim, ao ouvir as novas colegas falarem do Menino Deus e  papai Noel, minha imaginação  entrava em ação. Eu era discriminada pela minha timidez e aparência maltrapilha, pés descalços e  nenhuma etiqueta social, apenas ouvia as  colegas discorrerem sobre as alegrias das comemorações natalina e  presentes  generosos que esperavam receber do bom velhinho. Uma vez arrisquei a perguntar à minha mãe  quem era o papai Noel e o que eu deveria fazer para ganhar  um presente dele, com desdém, ela respondeu que ele presenteava apenas as crianças ricas, que colocam os sapatinhos na janela, na noite de natal.  Meu barraco não tinha janela, e eu não sabia qual noite era a de natal e acalentei este sonho durante uns três anos. Quando mudamos para um barraco melhor, que havia uma janela, eu já contava com  uns dez anos de idade, já havia feito uma ou duas amizades  na escola e um fio de esperança nasceu em  meu coração e graças a estas amizades descobri tudo sobre o natal, do ponto de vistas de meninas, com um poder aquisitivo bem maior que o meu.
       Enfim chegou a tão esperada noite de natal! Fiquei na cama acordada até ouvir o ressonar dos meus pais, aí, levantei-me na ponta dos  pés, coloquei minhas sandálias gastas  na janela e entreguei-me aos braços de Morfeu  e  não ouvi  o cantar do galo anunciando a aurora. Fui acordada com  as gargalhadas de deboche de meus pais, rindo de minha inocência ao acreditar que o papai Noel fosse subir o Morro para deixar um brinquedo  para  mim e até o  último suspiro, eles lembram   deste episódio o que deixava-me profundamente humilhada e crescia o desejo secreto de   vivenciar o natal tradicional, como os ricos: Missa do galo, ceia de   natal, presentes, abraços. Isto não aconteceu enquanto eu residi com os meus pais, mas como quem nasce na periferia, apenas troca de periferia, fui trabalhar em casa de família,  enquanto todos festejavam, eu servia-os e depois, recolhia em  lágrimas, à solidão de meu quarto de empregada.
       Os anos  se passaram, saí do emprego doméstico e fui para uma empresa de prestação de serviço 24 por dia, 365 dias por ano e finalmente, eu consegui vivenciar pela primeira vez a tão sonhada experiência natalina: Amigo secreto, ceia oferecida pelo patrão, abraços e retorno ao trabalho. Foi  lindo!  Durante  vinte  longos anos, eu fazia questão de trabalhar na véspera de natal, simplesmente para  estar ao lado de alguém porque confraternizar com estranhos, é melhor que estar sozinha. Com a minha melhora financeira, finalmente acreditei que enfim, iria comemorar em família esta data, mas não deu certo, mais uma vez minha boa vontade foi desdenhada. Tentei trazer  as amigas para o meu natal, mas esbarrei em outro obstáculo, já que todas optam por comemorar com os parentes.  Em uma medida de desespero, ofereci-me como voluntária na igreja, para de uma maneira ou outra, ter com quem comemorar e foi mais uma derrota, minha falta de tato social, fez com que eu fosse gentilmente  convidada a deixar o voluntariado.
       A aposentadoria chegou e com ela  o baixo salário, o círculo de amizades renovou-se, com pessoas do mesmo poder aquisitivo, porém, com boas relações familiares e que não desejam mulher avulsa agregada para festejar e o que já era triste permanece triste já que esta é a sina de quem não pode fazer um cruzeiro ou qualquer outra viagem  nesta data, menos ainda, comprar o peru para assar para uma ceia solitária.

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