segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Corroída pela inveja




Eu sou Caetana, goiana, tenho 70 anos e esta é a história  de  meus fracassos, consequências de  eu ter despendido muito tempo e energia em ruminar  a imensa inveja que sinto de minha irmã adotiva e de todo o carinho e admiração a ela dispensada  por parte de minha genitora, e a mim, filha legítima, desde a mais tenra idade, além da falta de atenção, críticas exacerbadas, todo o trabalho pesado da casa, daqueles idos tempos em que a tecnologia   avançada  em casa de pobre era o fogão a lenha com serpentina e  que proporcionava um delicioso banho de chuveiro  e quente, e o melhor, adeus  aos banhos  em grandes bacias de alumínios, o famoso banho de canequinha. A  minha rotina era pesada! Eu  pulava da cama às seis horas da manhã e iniciava a lida, enquanto minha irmã ficava na cama  até a hora do almoço, sendo que eu era a mais nova, quem deveria gozar deste privilégio. Após  o jantar, ela recolhia-se aos seus aposentos enquanto eu tinha que cuidar da louça, alimentar os animais domésticos e às vezes, de tão exausta, sequer escovava os dentes  antes de ir para a cama. Não sei precisar a data  em que este destrutivo sentimento penetrou em meu coração e fez dele o seu lar definitivo, apenas  que em todas as minhas lembranças, ele se faz  presente.
Eu sempre invejei:
I – O carinho dispensado a ela pelos nossos pais;
II – A sua inteligência;
III – A sua educação;
IV – A sua facilidade  nos estudos, sua capacidade de discernimentos dos texto mais complexos,  sua fluência verbal, o uso impecável da língua materna;
V - O seu bom gosto musical, literário e para se vestir;
VI – A sua capacidade de concentração na leitura;
VII – A sua facilidade em atrair a atenção dos  rapazes;
VIII - A  sua facilidade em fazer amizades fiéis e duradouras;
XIX -  A sua diplomacia;
X – A sua capacidade  estratégica para alcançar os seus objetivos sem muito esforço;
XI - A sua inimitável capacidade de vitimizar – se para eximir-se de culpa e transferi-la a outrem;
XII – A sua capacidade de fazer-se amada e  admirada em coisas pequenas e também, a sua altivez;
XIII = A sua  facilidade em conseguir  bons trabalhos;
XIV - A  sua inacreditável capacidade de receber ajuda financeira de parentes , sem necessidade de retorno;
XV - A sua  admirável  habilidade em não ser  flagrada  infringindo as  regras da família e, quando acusada,  fazer-se acreditar por todos em suas  explicações fictícias.
          Consumindo meus dias  com este sentimento destrutivo, sem entusiasmo  nos estudos e em subempregos, rejubilei-me quando  os  percalços da vida fizeram com que ela caísse em desgraça financeira  e conjugal, e eu solícita e amorosa ofereci ajuda econômica, não por generosidade, por amor ao próximo, mas para que os familiares e amigos percebessem o quão  boa eu era ao ampará-la, quanto todos lhe viraram as coisas, porém, a razão maior que fez com que eu, por dez  anos, a sustentasse  e também  aos seus filhos  é inconfessável: o prazer de vê-la dependendo  justo de mim, a quem ela dizia que tinha uma inteligência limitada e  hoje, com uma  profunda dor e vergonha, admito que  minha irmã adotiva tinha razão. Enquanto eu me  regozijava com um plano de vingança pueril,  ela  estudava uma  estratégia para  sair da situação de dependência e conseguiu. Atualmente, enquanto eu faço empréstimo consignado para um bate e volta  na praia, com a inseparável caixa de isopor com a cerveja e os salgados, ela desfruta da gastronomia portuguesa, em Lisboa. Ela compra suas roupas na Europa, eu no  Brás. Ela vai às compras de carro em grandes hipermercados, eu vou a feira, puxando carrinho. Ela mora em uma cobertura, eu em um quarto e cozinha  com lavanderia coletiva. Ela freqüenta coquetéis,  teatro, exposições, eu  os shows promovidos  pela prefeitura  em espaço aberto gratuitos.
          A inveja, um dos sete pecados capitais   é a verdadeira responsável pelas privações de minha velhice porque dediquei anos de minha vida a observar e desejar o que era da outra, a planejar  vingança, quando poderia ter utilizado o tempo dedicado à cobiça ao aprimoramento pessoal para conseguir o que eu realmente desejava:  ser amada e admirada pelos  meus pais, um trabalho bem remunerado, um esposo, enfim, um lar feliz e com uma prole numerosa, férias em família e em Las Vegas.  Estou colhendo o que plantei. Não nos falamos, quando precisei de seu apoio financeiro, ela simplesmente virou-me as costas; não posso culpá-la afinal, quem quer estar ao lado de uma pessoa com inteligência limitada e invejosa?

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