Recostada ao tronco forte da velha
paineira próximo à sede da fazenda, Rosalina observa o voo das nuvens
brancas que assemelham-se a uma revoada de garças brancas e espera ansiosa
pelo momento em que as primeiras pinceladas de raios de sol irão colorir o céu com diferentes
nuances de cores quentes. Lentamente o
sol vai desaparecendo por trás do verde das montanhas. É o momento mágico da transição entre o dia e noite, ela ainda consegue avistar, na outra
margem do rio, um vaqueiro recolhendo o
gado que muge tristemente, como a dizer que prefere o frescor dos prados ao
calor dos estábulos. A jovem tenta
vencer a sonolência para que melhor possa ouvir o pio dos pássaros em
seu regresso aos ninhos no momento em que a tarde se expira. É lua nova! Em breve
a escuridão cobrirá a terra e o silêncio reinará em absoluto durante o
repouso da natureza. O seu rosto meigo, queimado pelo sol é iluminado por um
largo sorriso ao ouvir o relinchar distante do canarinho, o seu manso cavalo de sela, o único que o pai lhe
permite montar porque é um animal velho
que já não tem mais forças para puxar a charrete e correr em disparada
esbanjando força e vigor. Sem que ela percebesse
o dia expirou e a estrela vespertina
é o ponto de luz fascinante em
meio a treva. Rosalina suspira! Sente confortável junto à velha árvore que a
viu nascer e fica a divagar sobre a
segurança que é ter raízes e galhos
fortes que não podem ser arrancados
quando o vento do sul sopra furioso ao anunciar que uma forte tempestade
chegará em breve com raios, trovões e chuva em abundância que fará o rio
transbordar. Em dias chuvosos e também
nos de sol escaldante, o gado procura a
árvore para abrigar - se e ela
acolhe-os em sua generosidade! A
paineira velha é como um edifício de muitos andares porque abriga inúmeras
vidas e de suas painas, são fabricados os travesseiros dos ribeirinhos razão pela qual foi preservada quando os primeiros
moradores chegaram a região para fazer pastagem para alimentar o gado gir que chegara da
Índia, em grandes navios cargueiros. Rosalina
aprecia a vida no campo em
contato direito com a energia telúrica. Respirar ar puro e a cada
amanhecer, nutrir-se com a energia do sol e da terra e senti-la
percorrer todos os vasos sanguíneos é tudo que precisa para ser feliz. A
lida rural é dura, porém gratificante graças a sinergia homem/terra. Longe da
balbúrdia da cidade. Rosalina sente-se
feliz!
A noite chegou de mansinho, mil estrelas já brilham no céu graças a escuridão e no silêncio
é possível ouvir o som da
correnteza do rio que segue o seu curso
indiferente ao movimento de rotação da
terra. Nas profundezas do Velho Araguaia há segredos a serem descobertos. A
população ribeirinha narra histórias sobre o
Caboclo d’água, dizem, que ele é o protetor dos peixes e vira as canoas
dos pescadores, por isso é que eles pescam somente com vara à moda tradicional, sentados no barranco. A
estranha criatura não consegue andar em terra firme, ele é um ser aquático! Mas
como é a sua vida no fundo do rio é um
mistério a ser desvendado por algum mergulhador corajoso. O murmúrio das águas
mantém o pensamento de Rosalina firme e ela tenta imaginar como é a rotina do Caboclo D’água. Imagina-o uma
criatura de hábitos noturnos, porque este é o horário propício para pescaria, e tão logo o sol se
põe por trás das montanhas verdejantes, ele devora um suculento bife de jacaré
e sai à caça de pescadores
com o intuito de impedir que os
belos peixes fiquem reduzidos a
ensopados em alguma panela de barro. Com
o ouvido atento ao som das águas feridas
pelos remos ele vai nadando de mansinho para não dar alarme e de surpresa, vira a canoa e dezenas de peixes retornam aos
seus lares. Esta é a sua missão: proteger a vida destas pequenas criaturas indefesas.
Rosalina espreguiça-se suavemente, depois acaricia a
casca grossa da velha paineira, sente-lhe a textura e sonha com o dia, quando
já adulta, for proprietária deste pedaço
de chão. Construirá uma nova casa em
estilo colonial, pintada de branco com janelas azuis com um jardim grande à
frente, no qual plantará rosas brancas, dálias, crisântemos, jasmim, hibisco,
primaveras de várias cores e muitos cravos amarelos e também plantará um
pomar e terá uma horta com variedades de verduras, legumes e
ervas e o alecrim reinará em absoluto; também poderá ter uma plantação de milho para
poder criar porcos e galinhas. Mas o que de melhor há de ter em sua fazenda é o
estábulo para a criação de cavalos manga
larga marchador. Somente quem aprecia
longas cavalgadas é capaz de
reconhecer o valor de um animal
marchador de porte médio, ágil de estrutura forte, ativo e dócil, cujo
movimento marchado proporciona conforto
à amazona ou cavaleiro. Não, ela não está a reclamar do velho canarinho, que
em seu passo lento, a leva onde precisa, mas ele é um campolina que passou a juventude e idade adulta
puxando charrete e arado. É lhe muito grata porque com o seu cavalgar troteado, está sempre pronto a servi-la, mas depois
de tantos anos de prestação de serviço, ela reconhece que ele merece descanso.
Rosalina sente a friagem da noite e tudo parece
mágico: ela, a terra e a velha paineira.
Apura os ouvidos e ouve apenas o cantar
distantes das águas, sente a energia telúrica e ela sabe que ali é o seu
lugar. A palavra partir soa como uma
blasfêmia, ela vibra e anseia por um milagre, que a permitirá ficar neste chão sagrado até o seu
último dia de vida e no ventre da grande mãe repousar eternamente. Olha as
estrelas piscando indiferentes as
injustiças sociais que faz com que camponeses abandonem a sua gleba para amontoarem-se em cortiços
nas cidades. Vaga-lumes piscam e ela percebe que o sonho é como a semente,
se plantada e cuidada, florescerá na
primavera e ela conhece a lida do campo; ás vezes, enfrentam longos períodos de
estiagem e quando tudo parece perdido, o céu derrama água sobre a terra seca e
a vida volta a florescer, tão certo como o sol que ilumina a terra depois da
escuridão da noite. A dor e a incerteza
que agora assola o seu coração juvenil
irão dissipar assim como as trevas após o primeiro beijo dos raios solares.
O sol levanta preguiçosamente e sua luz cria
diferentes tonalidades de amarelo
nas água frias do rio. O dia começa com prenúncio de calor, o ar esta parado. Sentada à margem
do caudaloso Araguaia, Rosalina ponteia a viola
de seu pai. Seus pais e seus
irmãos foram à cidade para consultar com o
Doutor, e ela, como está com a saúde boa, ficou para apartar as vacas de
seus bezerros, e alimentar os animais
doméstico. Eles irão demorar, foram de charrete, o único meio de transporte que
dispõem no sertão de Goiás, onde o acesso por automóvel é difícil e privilégios dos grandes fazendeiros. Apesar
da rudez de sua vida, ela é feliz neste
pedaço de chão, e aproveita a ausência da família para exercitar-se no
instrumento musical de sua preferência – “viola é coisa de homens, mulheres ricas tocam pianos e as pobres,
esfregam roupa no tanque ao som do rádio de pilha,” dizem os seus pais. Ela
aprendeu a tocar sozinha, apenas observando e abraçada à velha viola caipira,
sentindo a carícia vaga de uma brisa
mansa improvisa uns versos que brotam
espontaneamente e misturam-se ao murmúrio das águas.
Veio
galopando esta mágoa
Sem
dar aviso;
Dos
meus olhos escorrem água,
E
meus pais não percebem isso.
Adeus!
Direi ao belo aljofre.
Patrão
inclemente;
Faz
chorar quem sofre,
A
dor da saudade de quem sente.
Adeus direi aos abrolhos
As
flores que os campos povoaram.
Por
elas chorarão os meus olhos,
Estas
belezas de mim tomaram.
Deus!
Tire de mim está mágoa,
Por
ela ainda estar novinha.
De
meus olhos escorrem água,
Triste
sina é a minha.
Adeus
salamandra,
De
olhos tão mesquinhos.
Meu
caminho é cheio de pedras,
Meu
coração ferido por espinhos.
No
outono a árvore desfolha,
Sobre
a terra e resvala,
E
repousa distante a folha
Sem
que ninguém vá perturbá-la
Aparência feliz e
risonha,
Felicidade
no peito, nunca.
O
coração sonha
Em eterna busca.
Bem
aventurada corrida
De
uma folha ao sabor do vento.
Folha
livre e perdida,
Sem
se preocupar com o tempo.
Lentamente
sangra a minha mágoa
Seja
lá por onde eu for
Adeus
cristalinas águas,
Levo
comigo apenas dor.
Os primeiros raios de sol beijam a
terra molhada pelo sereno da
madrugada e a vida desperta
na fazenda. Nas chaminés das casas espirais de fumaça dispersam-se suavemente e
o aroma do café exala pelo ar, os vaqueiros param a ordenha por alguns instantes
e saboreiam rapidamente o desjejum e retornam a lida campeira. Rosalina acompanha esta rotinha desde o seu
nascimento e uma tristeza mansa invade o
seu coração ao pensar que terá que partir. Ela
não sente a dureza da vida porque não conhece outra forma de se viver. Lágrimas silenciosas escorrem de
seus olhos ao imaginar a nova vida talvez em um cortiço na cidade, tudo que lhe
é familiar será deixado, o ressonar
manso das águas do rio, a paineira velha, o cheiro da terra molhada, os animais
da fazenda. Abraçada ao velho e
troteador Canarinho, soluça baixinho. Ele ficará sozinho e esquecido a vagar pelos
campos como que a procurá-la para as tradicionais cavalgadas de final de tarde.
Ele é um animal inteligente; apesar de
não falar, entende a linguagem
dos sentimentos e vai sofrer com a sua partida e urge que ela saiba dizer as
palavras certas na hora do adeus. Ele conhece todos os seus medos, segredos e sonhos. Sempre que sente o coração apertado e precisa desabafar, ela
o procura e em um tom baixo e suave, conta-lhe as dores de sua alma jovem. As mazelas de uma criança da zona
rural, aos olhos dos adultos são pueris
e na melhor das hipóteses ignoradas, porque na maioria das vezes são motivo de
deboche e recordadas sempre como a afirmar a superioridade dos mais velhos
sobre os mais novos, mas com o cavalo é diferente, ele espeta as orelhas,
às vezes relincha enquanto ela
confidencia-lhe as suas mágoas e também
as perguntas típicas da primeira infância. A labuta do campo é árdua e
ninguém tem tempo para explicar a uma menina curiosa porque as
cobras trocam de pele e o jacaré não, porque as cigarras cantam somente na primavera e os sapos coaxam a
noite. Ela só deseja saber o
porquê das coisas da natureza e ninguém tem tempo para ouvi-la. O campolina é um bom ouvinte, ele a escuta, é um cavalo sabido e deve ter
alma como as pessoas e há de ir para o céu quando morrer e lá, eles irão se
reencontrar. Viverão um tempo separados e o abandono
o fará partir mais cedo. Ela já
percebe em seu olhar manso e tímido, vestígios de saudades. – Ele sofre como
eu. Suspira a jovem!
Enquanto se refresca nas águas
límpidas do Araguaia, Rosalina observa
os voos rasantes das garças e suas infalíveis
estratégias de pesca. Ah! Se ela fosse uma ave, voaria livre pelo cerrado goiano,
escolheria uma árvore bem bonita para
construir o seu ninho fá-lo-ia no galho mais alto para melhor
observar a beleza da natureza e fora do alcance dos bodoques dos
meninos malvados da cidade que, quando passam as férias na fazenda do pai, atiram pedras nas pobrezinhas pelo prazer de vê-las cair.
Parece que estas crianças cruéis
desconhecem o valor destas criaturas de Deus. Rosalina desconhece
a função de cada vida na
natureza, porém, acredita veemente, que se foi criada por Deus, é porque é
necessária na harmonia do todo, e até
ela que tem uma visão de mundo restrita, que resume- se
ao cerrado, lavouras e o rio Araguaia que sacia a sede e a fome das populações ribeirinhas, sabe que não se deve matar por matar. – Ah! Se um pássaro
fosse, a cada aurora, cantaria belas
canções e despertaria os animais com
o seu lindo trinado, depois,
observá-los-ia, um a um, no momento em
que fossem beber água. Qual seria o
primeiro? A onça? O tamanduá- bandeira?
O Lobo? O veado – campeiro? O ouriço - cacheiro? Lá das alturas, nas copas das árvores ela
estaria protegida e não seria atingida pelos espinhos do ouriço, caso ele se
enfurecesse. Até o vaqueiro mais valente
já correu do bicho, ele é perigoso; felizmente, ela nunca topou com ele. E este
risco, ela não correrá mais, doravante, serão outros perigos, que talvez, nem
sua mãe saberá orientá-la porque a matriarca da família
conhece pouco a vida na cidade. – “Felizes são os pássaros porque não estão subordinados às vontades
do patrão e não são obrigados a
partir, abandonar a terra amada, a doce
rotina do nascer ao pôr do sol, em
contato direto com os animais, as plantas e principalmente, com as águas calmas
do Araguaia. Suspira apreensiva!”
Rosalina não sabe quando vai partir,
tudo depende da vontade do patrão e em meio à incerteza, seu olhar repousa sob tudo que ela ama e que
sempre fez parte de sua história e deseja reter estas imagens vivas para quando
distante estiver e não puder controlar a
dor da saudade, resgatará do fundo de
seu coração, a beleza do céu azul anil, por onde vagueiam sem destino nuvens
brancas e neste mesmo céu, em noite de lua nova,
infinitos pontos de luz brilham enquanto na terra, um vaga-lume
solitário desperta os animais da
noite. Quais serão os sons noturnos na cidade? Os sons da noite na zona rural são
bonitos! O pio da coruja, o uivo do
lobo, o miado da onça, o cantar dos grilos, os coaxarem dos sapos, o murmúrio
do rio. Tudo precisa ficar registrado: a beleza das flores silvestres, as
infinitas tonalidades das plantações durante a colheita, os cheiros e sabores
dos frutos do cerrado, as formas, cores e vozes dos animais domésticos e do
suave despertar ao som do canto da seriema.
Tanto amor há em seu coração por esta terra que não é sua, mas este
detalhe não a impede de amá-la. Um amor tão forte e profundo que Rosalina não
sabe se conseguirá viver quando for arrancada de seu pedaço de chão. Poderá morrer de uma morte lenta e
dolorida! -“Qual dor é mais intensa, a
da morte ou a da saudade?” Ela se pergunta.
O amor está presente em todas as atividades do campo. Na
labuta do camponês que ara a terra,
semeia, cuida e colhe os frutos de seu
trabalho e entrega-os ao patrão com o
coração aliviado pelo dever cumprido. Na lida do vaqueiro no curral e nos
campos, cuidando e protegendo o gado das
doenças e dos predadores naturais; eles amam os animais como se fossem seus. As mulheres dispensam
cuidados excessivos às aves domésticas e
também aos cachorros, dois vira latas
que vivem soltos no terreiro e dão alarme com a proximidade da visita de alguma raposa
faminta e com gana de atacar uma
galinha gorda, o que nunca acontece porque as casinhas dos cães foram construídas em pontos estratégicos nas proximidades do galinheiro. Com igual cuidado, são tratados, pelos
homens, os cinco cachorros boiadeiros, féis companheiros dos peões durante a
rotina diária e à noite ainda ficam de
guarda do rebanho, sempre há a possibilidade de um algum filhote ser atacado
por uma onça, é a lei da natureza, mas o patrão não entende e zanga-se quando isto acontece, acusa-os de descuido e
ameaça descontar no salário deles o prejuízo. Imenso amor há na generosidade das flores que
oferecem seu néctar aos beija-flores, abelhas e borboletas coloridas; nas
árvores que oferecem sombra fresca aos viajantes cansados e moradia aos
pássaros e insetos, no vento que leva as sementes para germinarem distante, nas folhas secas que não lamentam a própria morte porque
sabem que irão fertilizar o solo para
que outras vidas possam florescer. Infinito é
o amor do caudaloso Araguaia que abriga diferentes formas de vida e mata a sede dos animas e das pessoas. Aquecer
a terra é a maneira com que o sol demonstra o seu amor, assim como a chuva que cai e por amor e
gratidão a terra floresce e a vida
renasce em todo o seu esplendor. Éh! o amor permeia a vida rural e nas cidades? Rosalina teme que seja
diferente!
É agosto! O vento sopra forte e levam com ele as folhas das árvores que irão parar no Araguaia,
e flutuando sob as águas cantantes
chegarão ao mar e no marulhar das ondas salgadas em alguma praia distante irão
repousar. Assim como as folhas, Rosalina também irá para longe e já sente a dor da saudade. Na
fazenda existe uma gruta de pedra com uma imagem de Nossa Senhora de Sant’Ana,
os olhos da santa são acolhedores e doces como o olhar das mães e quem sabe,
ela ouvirá as preces ingênuas de Rosalina que suplica por um milagre. O olhar meigo da imagem transmite força, bondade
e esperança, existe a possibilidade de
que seja atendida; ela já ouviu tantos
relatos de graças alcançadas por intermédio da Padroeira, como o caso do Pedrinho, acometido de uma febre que não
passava nunca; desesperada, a mãe do
menino dobrou os joelhos, no chão batido
diante da Virgem e teve uma conversa de mãe para mãe com Sant”Ana, e
em menos de dois dias, o moleque já estava na lida com o pai. Trêmula, olhos lacrimejantes e fixos no semblante da pequena escultura de barro, Rosalina esforça-se para acreditar que não
entendeu direito a conversa dos adultos
e que a tristeza estampada nos olhos deles é pela falta de chuvas que está judiando da plantação e do gado. Pode ser isto, e um fio de esperança surge e sua alma rejubila-se. Quem abandona o
sertão goiano, sente saudade. A filha do
Seu João, casou-se e foi morar em Fortaleza, apenas uma légua da praia e na carta que
escreveu à sua mãe, comentou sobre a
imensidão do mar. Que
importa se o Araguaia e seus afluentes
cabem dentro do mar e ainda sobra espaço para os outros rios? Que importa se
nas cidades grandes há postes com lâmpadas que clareiam a cidade quando a noite
cai? Aqui ela tem um céu estrelado em noites de lua nova, e na terra, centenas
de vaga-lumes que nunca cansam de piscar; em noites de lua cheia a luminosidade dos raios do luar afastam a escuridão da noite e tudo parece
mágico. É uma lindeza e aqui é o seu
lugar ela não cansa de repetir.
O vento do sul trouxe nuvens escuras
e a água caiu generosamente sobre a
terra, os lavradores não esperavam por esta benção e estão felizes. Canarinho, o velho cavalo
relincha no pasto, depois, abaixa a cabeça e continua a saborear o capim
fresco. As cores estão mais vivas e os pássaros cantam alegres, parece que a natureza está em festa, mas o coração de Rosalina pulsa triste porque ouviu
rumores de que o patrão quer vender o
animal para o circo que está na cidade, com certeza para alimentar os
leões e tigres. É uma maldade sem fim, depois de tantos anos de serviços
prestados sob sol ardente e chuvas torrenciais, puxando charrete e arado, ser entregue às feras, é uma injustiça. Ele
merece viver livre pelos campos até o dia
de sua morte e no ciclo da
natureza, alimentar os urubus, sempre
foi assim; quando morre um animal,
doméstico ou selvagem, não se faz enterro, fica a cargo destas aves
desaparecerem com o cadáver, razão pela qual os urubus são respeitados pelos
sertanejos e são chamados de faxineiros
do sertão. Imaginar a
possibilidade de o cavalo ser
jogado em uma jaula para ser devorado
pelas feras faz Rosalina chorar copiosamente. Ela imagina o pavor nos olhos calmos do Canarinho, frente a
frente com um tigre ansioso para saborear a sua carne. Ela é uma sertaneja e conhece empiricamente a cadeia alimentar e sabe que
diante de um bicho carnívoro faminto, um herbívoro não tem chance nenhuma de
sobreviver. Mediante a vontade do
proprietário, ela também nada poderá fazer, é apenas uma criança, nascida e
criada em uma fazenda que não pertence a
sua família, são trabalhadores assalariados que molham a terra com o suor de
seus rostos para entregar o fruto de seu
labor ao fazendeiro.
A dor que Rosalina sente é tão
grande, é como se alguém enfiasse uma faca afiada em seu coração bem divagar,
o sangue jorrando em abundância, mas a vida recusando a partir. Ela pensa que seria melhor morrer,
somente assim, poria fim ao seu sofrimento. Em um lapso de lucidez, pensa em
procurar a benzedeira Maria das Dores. Uma vez ela foi levada pela mãe à Senhora e após umas orações, sinal da cruz, o
quebranto desapareceu e ela voltou a
brincar alegre pelo terreiro e a não rejeitar nenhum tipo de alimento para a
tranqüilidade de seus pais e irmãos mais velhos. As lembranças daquela visita
vão ganhando formas em sua mente: uma pequena casa de pau a pique que fica na curva
do rio próximo ao jacarandá, onde a Idosa faz as suas benzeduras e
receita as melhores ervas para o caso. Terá ela um chá ou reza para abrandar a dor da separação e da
saudade? A menina não sabe, e é ciente
de que não poderá atravessar o Araguaia
sozinha para ir em busca de um alívio para a angústia de sua alma. Rosalina sofre e espera
um milagre!
Abraçada
à velha paineira, Rosalina contempla as
últimas estrelas e os primeiros raios da aurora. O dia começa com um triste
presságio. Ela quer falar, mas falta-lhe palavras para dizer à árvore que
não é uma ingrata e que não deseja partir, está sendo expulsa. Os
soluços impedem-na de falar do tamanho de sua gratidão pela generosidade de sua sombra, de suas painas,
do conforto que é todas as noites,
deitar em uma cama quentinha e descansar a cabeça em um travesseiro macio feito
com as suas painas que anualmente são lançadas ao vento cobrindo de branco o
chão. Quisera ela ter braços grandes,
enormes, para que pudesse abraçar todas as plantas. No sertão, as crianças
aprendem deste a mais tenra idade que não é possível viver sem as árvores. Às
vésperas de seu nascimento, as mãos fortes e habilidosas de seu pai construíram o seu berço com madeira de lei, e desde os tempos antigos, galhos secos são
utilizados no fogão à lenha para cozinhar os alimentos e aquecer os casebres no inverno; dos troncos são construídas as
canoas e quando alguém morre, os homens
saem em busca de madeira para construir o caixão. Várias espécies dão frutos que alimentam as pessoas, as aves
e alguns animais. Ao longe, as águas
cantantes do Araguaia reclamam a sua presença, mas falta-lhe forças para
caminhar até a margem, pontear a viola caipira
e improvisar versos de amor e
despedida ao rio, banhar-se pela última
vez em suas águas transparentes. Pudera esta correnteza levar para longe
a tristeza que invade a sua alma.
É impossível! Nada poderá arrancar de seu peito a dor da separação. Rosalina teme que em sua nova casa não possa ver
a estrela vespertina brilhar ao
anunciar a chegada da noite e a lua cheia surgir no horizonte. As imagens e os sons serão outros e não haverá esta
sensação de pertencimento, se sentir-se parte de um todo. Deixar a vida
integrada à natureza assusta a menina e
ela observa todos os detalhes para que fiquem registrado em seu coração.
Deste paraíso, ela poderá levar apenas
lembranças, sua mãe avisou-a que ao
partir, serão revistados pelo capataz por ordem do patrão. Rosalina
conversa com a paineira velha. - Eu invejo tuas raízes profundas que não lhes
permite fugir para terras distantes e
misteriosas. Eu desejo ser os teus galhos fortes que parecem almejar
chegar as nuvens, mas se resignam e
rejubilam quando os pássaros neles
constroem os seus ninhos e criam seus filhotes, e nestes mesmos galhos,
descansam e encantam o cerrado com os
seus gorjeios variados. Ah! Eu seria
feliz se fosse uma de suas floradas brancas que atrai borboleta monarca. Breve seria a temporada de
minha beleza, mas eu seria útil, por ter alimentado centenas de pequenas vidas, e depois, seguindo a mágica da natureza, quando as flores caíssem ao chão, os frutos nasceriam,
e quando maduros e a casca abrisse,
painas leves e delicadas bailariam ao
sabor dos ventos lançando sementes que germinariam nas proximidades e novas paineiras cresceriam enraizadas no sertão
goiano. Nem mesmo quando um machado ferisse meu tronco para construir uma canoa
eu não sentiria tristeza porque as canoas são úteis aos ribeirinhos e feliz
estaria ao flutuar sob as águas serenas do Araguaia. Adeus
paineira velha! Agradeço por estas painas, delas farei um travesseiro e todas
as noites, abraçada a ele chorarei
baixinho de saudades do tempo em que eu
era feliz vivendo livre no cerrado. Eu não estou indo em busca de minha
felicidade, feliz aqui eu fui, sou e seria se assim fosse permitido. Eu sou uma criança vulnerável, sem poder de
argumentação e sem nenhuma utilidade para o patrão, que já não precisa dos braços fortes de meus pais
na lida diária. Quem sou eu? Uma boca a mais a ser alimentada por pais desempregados!
É
a última noite de Rosalina na fazenda e ela aprecia a
beleza do pôr do sol, com a branda luminosidade que realça as
tonalidades das cores em contrastes com as nuvens brancas. É a hora mágica em
que é possível observar os tons de
amarelo, vermelho e lilás que colorem o
azul celeste e na terra, o verde
da paisagem vai desaparecendo e a escuridão da noite cai sob a terra. O
ar está parado e quente, o velho cavalo Canarinho relincha
distante. – Adeus meu companheiro de
cavalgadas. Adeus rio Araguaia. Adeus
paineira velha. Amanhã, antes da
alvorada dos passarinhos e do cantar do galo
partiremos em direção de um
futuro incerto. Eu, a filha do vaqueiro mais respeitado da região, serei
apenas a filha de um desempregado,
assustado e acuado longe do seu torrão
natal. Terra Amada, adeus!
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