Apesar do desconforto da viagem de ônibus e do sofrimento decorrente da perda de sua mãe, a pequena Rosalina conseguiu dormir. Horas depois, despertou com um raio de luz batendo em cheio em seu rosto. Olhou pela janela e avistou uma paisagem rural onde pastava gado nelore, com uma brancura que contrastava com o verde dos campos. As árvores retorcidas, típicas do cerrado mineiro chamaram a sua atenção, vez ou outra, cruzavam com charretes e carros de boi, meios de transportes até então desconhecidos dela, desejou saber mais, mas faltava-lhe coragem para perguntar à assistente social que a acompanhava, uma mulher séria e de poucas palavras que sempre respondia a mesma coisa, não importava qual fosse o questionamento: - Não se preocupe, tudo vai ficar bem, parecia um robô programado para repetir sempre a mesma frase. – o que a entristecia, pois acreditava que nunca mais poderia ser feliz, sua mãe saiu para trabalhar e não voltou. Os vizinhos chamaram a polícia e agora, ela seria entregue aos avós maternos, que não conhecia, e não sabia o motivo pelo qual nunca fora visitá-los. Sempre que demonstra interesse em conhecer os familiares, a resposta da mãe, era sempre a mesma: - Eu sou a sua família, você é a minha família, a luz da minha vida e mudava de assunto.
Ás doze horas em ponto, o ônibus estacionou na plataforma de
desembarque do terminal rodoviário e o motorista anunciou em voz alta o término da viagem. Desceram e enquanto esperavam a bagagem, um
rapaz de pele queimada pelo sol, com
roupas bem gastas, chapéu de palha, e um chicote de couro
sete tiras trançado, nas mãos aproximou-se.
- Venho pela menina, a mando do patrão, as levarei em casa.
- Eu não irei, disse a assistente social e com uma expressão séria no rosto completou: - esta é a bagagem da
criança, tenha cuidado pois os
documentos da guarda judicial estão aí.
Disse dirigindo-se ao jovem. Voltou-se
então para Rosalina e repetiu a sua
frase preferida: - Não se preocupe tudo vai ficar bem.
Rosalina
e o rapaz seguiram de charrete para a fazenda de seus avós, nem uma palavra foi
pronunciada durante o trajeto; enquanto conduzia o veículo, o jovem assoviava músicas regionais, parecia indiferente a sua presença, vez ou
outra os cavalos assustavam com algum animal silvestre, e se não fosse pelos bons reflexos do condutor, ela teria
sido atirada longe várias vezes. A
estrada era de terra e os solavancos,
a deixava enjoada e com o corpo
dolorido. Foram recebidos pelo avô que a
olhou bem e disse – então, você é a minha neta! Deve estar com fome, venha, na
cozinha, um copo de leite e biscoitos de
queijo esperam por você. Assim que
terminar de comer, vá para o seu quarto, a primeira porta a direita, e fique lá
até a sua avó chegar.
O quarto era simples, uma cama, um
guarda-roupa de duas portas e na parede, um quadro com a foto de sua mãe, ainda
jovem. Rosalina estava triste e sozinha.
- Nunca mais verei a minha mãe, o policial
disse que poderá demorar muito até ela
ser encontrada. Para eu ser paciente, esperar e confiar na Polícia. Estou com
muito medo. Pegou o celular para conversar
com a sua amiga Arsu, a filha da
vizinha. Não havia sinal. Enquanto as
lágrimas umedeciam o travesseiro de paina, o sono cerrou os seus olhos e
ela adormeceu. – Acorda pequena. Vamos preparar o jantar, já é tarde
e seu avô vai chegar com fome. Rosalina
despertou assustada e viu à sua frente, uma simpática senhora de cabelos
brancos, presos em coque na nuca que, sem dizer mais nada, a pegou pela mão e dirigiram-se
à cozinha.
Ao
contrário das avós de suas amigas, a
sua, não demonstrou alegria ao
conhecê-la, nem lhe perguntou se estava
com fome, o queria comer. Apenas dava ordens que ela não ousou questionar. Com
uma voz suave, paciência e didática das professoras da pré-escola, dizia-lhe o que fazer e como
executar a tarefa. – Pequena, hoje
vamos preparar apenas arroz com pequi. Primeiro temos que acender o fogo, a
lenha está na varanda, vamos buscá-la. É preciso controlar as chamas, este é o
segredo para a comida não queimar. Rosalina observa tudo com atenção. Era a primeira vez que via madeira queimar e as
labaredas a encantava. Tudo era diferente, os alimentos, a maneira de
prepará-los, porém, ela nada
questionava, apenas seguia as orientações da avó, estava como que anestesiada,
em virtudes dos últimos acontecimentos. -Esta receita não é difícil, primeiros
fritamos o alho e a cebola, na banha, depois acrescentamos o açafrão da terra,
para realçar a cor do fruto, depois acrescentamos o arroz, refogamos um pouco,
colocamos o pequi e o sal, misturamos bem, depois é só cobrir com água e deixar cozinhar. Não há segredo, finalizou
a anciã, que continuou a trabalhar
A primeira noite de Rosalina na fazenda
coincidiu com a lua nova e mais estrelas
reluziam no céu, o espetáculo de luz celestial formava um belo contraste com o
escuridão que cobria a terra. Mas ela não pôde apreciá-lo
porque a avó fechou a janela, depois, apagou
a lamparina e saiu do quarto sem dizer-lhe boa noite. Sentia falta de sua mãe! – Onde estará? O que
aconteceu? Por que ninguém responde as minhas
perguntas? Refletia. Fazia calor
e ela abriu a janela, uma brisa leve
acariciou-lhe o rosto. Era tarde
e seus olhos teimavam em permanecerem abertos, sem celular, televisão e ninguém
para conversar, sua atenção voltou-se
para os ruídos noturnos comuns na
natureza, porém, desconhecidos para as crianças urbanas; em poucos minutos
adormeceu.
Rosalina acordou assustada com o voo rasante
de uma criatura que a escuridão
da noite não lhe permitia ver. Sentiu
medo. Não tinha como acender a lamparina porque a caixa de fósforo
estava na cozinha e faltava-lhe a coragem necessária para ir buscá-la. Prestou
atenção. Nenhum ruído vinha do quarto dos avós, o silêncio só era quebrado pelo farfalhar de asas da invasora? - Seria uma
bruxa? Não, não é uma bruxa, mamãe sempre disse que as bruxas só existem nos
livros de contos de fadas. Será um vampiro?
Acho que não, eles só existem nos filmes. Posso gritar por socorro, mas o que meus avós
pensarão de mim? Já completei oito anos,
eles irão zombar de mim. O que farei? Antes mesmo de chegar a uma conclusão,
Rosalina percebeu o movimento de vários seres
alados entrando e saindo pela janela. Pulou da cama e tateando, encontrou o guarda-roupa, entrou, fechou a porta e
acomodou-se o melhor que pode. O sono
venceu o medo e o cansaço e ela enfim, pode repousar tranquila.
Antes
que o primeiro raio de sol brilhasse no horizonte, despertou. Ao longe se ouvia o cantar dos galos e o
mugido do gado no curral, que se misturavam a outras vozes de animais, desconhecidas para ela. Esfregou os
olhos para espantar o sono. Não
recordava bem porque estava dentro do guarda-roupa, e não em sua cama, pairou o
uma dúvida: - Eu sonhei ou de fato havia
criaturas aladas que emitiam sons estranhos
no quarto? Antes que a pequena chegasse a uma conclusão, a avó entrou no
quarto e lhe entregou um copo de
alumínio e disse – Vá até o curral, entregue
ao seu avó que está ordenhando as vacas, volte rápido, vamos fazer pão
de queijo com pequi.
- Fazer pão de queijo é simples, misture o polvilho e o sal
na gamela. Coloque o leite, a água e a banha de
porco para ferver. Quando
levantar fervura, escalde o polvilho, mexa com uma colher, e espere esfriar,
acrescente os ovos, a polpa de pequi e sove, por fim, junte o queijo misture
bem, enrole os pães e pronto, é só assar. Rosalina não prestou atenção nas
palavras da avó, os seres alados ocupavam
os seus pensamentos, na casa, tudo parecia estranhamente normal.
Todos executavam suas tarefas em
silêncio, e ela ajudada com as
atividades compatíveis com a
sua idade, Enquanto trabalhava,
Rosalina arquitetava um plano para
desmascarar os invasores. Aproveitou um momento de distração de todos e escondeu em seu quarto, uma vassoura e uma
caixa de fósforo.
Na
segunda noite, a avó seguiu o mesmo
ritual: colocou Rosalina na casa, fechou
a janela, apagou a lamparina, e silenciosamente, recolheu aos seus aposentos. Rosalina levantou com cuidado para não fazer
ruído, abriu a janela, deixou as armas ao alcance de suas mãos e
dormiu. O som do farfalhar de asas a despertou. Corajosamente acendeu a
lamparina, atacou os pequenos seres negros, que voavam em
zigue-zague pelo quarto na tentativa de escapar da luz e das vassouradas. O barulho acordou os
avós que foram em seu auxílio. Ao
deparar com a cena hilária, não riram, nem brigaram. A senhora, direcionou o facho de luz da lanterna para o telhado para
expulsar os mamíferos voadores, que não apreciam a claridade. O sisudo senhor,
colocou a neta no colo e com voz calma e amorosa disse:
– Não tenhas medo, pequena, são apenas morcegos. Eles entraram porque a janela estava aberta. Eles são seres crepusculares e
noturnos, daí a razão porque fechamos as
janelas ao entardecer. Não podemos matá-los.
Eles tem funções importantes na natureza.
Se não fosse pelo trabalho deles, ontem você não teria degustado uma iguaria deliciosa, o pequi,
porque eles são os seus principais polinizadores. À noite, a flor do pequizeiro exala um cheiro que
os atrai. Buscam-na porque há uma
recompensa esperando por eles, o néctar. É uma relação simbiótica e mutuamente vantajosa.
Lembre-se pequena, o homem precisa do morcego, o morcego não precisa do
homem. Agora durma, amanhã conversaremos
mais.
Após
a sesta, o avô convidou a neta
para conhecer a propriedade. E o que, no
entendimento de Rosalina, seria apenas um passeio, foi na realidade, uma
riquíssima aula de biologia. O
amplo conhecimento sobre plantas e animais encantou a pequena, descortinou-lhe um outro universo em sua
mente. À sombra do pequizeiro, sentaram para descansar e se alimentarem. O
lanche preparado pela avó estava delicioso; saciaram a sede com a água fresca de um pequeno riacho. A safra do pequi estava chegando ao fim,
restavam apenas alguns frutos verdes nos
galhos e outros maduros, espalhados pelo chão
à espera de serem recolhidos.
Rosalina observa tudo com atenção e desejou que sua mãe estivesse com ela, ouvindo os sons do cerrado. Era pura magia! A
voz do avô, a despertou de seu devaneio
e com a sua fala doce e sonora, retomou o assunto dos morcegos, que têm importante papel na
manutenção e equilíbrio dos ecossistemas,
enfatizava. Ciente de que a neta não
tinha nenhum conhecimento das peculiaridades das espécies, discorreu sobre as mais comuns no Brasil: os
frugívoras, que se alimentam de frutos e são dispersores de sementes. Os
insetívoros, que se alimentam de insetos, e controlam as pragas das lavouras e
por último, falou sobre os nectarívoras,
que se alimentam de néctar e pólen, e desta forma, realizavam a polinização de
diversas espécies de flores, inclusive a
do pequizeiro. Finalizou a explanação, contando algumas curiosidades sobre os
mamíferos voadores, entre elas, que a mamãe-morcego cuidam bem de seus
filhotes e quando sai para se alimentar, deixa-o dependurado no teto da gruta, junto aos outros
bebês. Quando retorna, emite um som que é
reconhecido pelo morceguinho, que responde ao chamado.
Deslumbrada com a sabedoria do ancião,
Rosalina demonstrou interesse em
conhecer o local onde vivem os morcegos. Em silêncio, o avô a pegou pela mão
e se embrenharam no cerrado em direção a gruta onde vivia uma colônia.
Caminharam em um ritmo lento, as árvores retorcidas características do bioma, os protegia do sol
escaldante; Diante de centenas de mamíferos voadores, Rosalina não sentiu medo,
sabia que se eles não se sentissem acuados,
nenhum mal lhe sucederia.
Aprendera com o avô, que é preciso viver em
harmonia com todos os seres vivos, sejam vegetais ou animais.
Cada amanhecer na fazenda, era
prenúncio de um novo aprendizado e Rosalina, observava cada detalhe,
esforçando-se para memorizar tudo. Embora sentisse falta da mãe, poderia dizer
que era feliz. Particularmente naquele fatídico
domingo, ela estava bem animada,
toda família iria à cidade participar das comemorações da festa de São Pedro, o padroeiro da região.
Partiram de charrete, por uma estrada de
terra, a poeira levantada pelos
carros que passavam prejudicava a visibilidade.
Rosalina despertou em um quarto de hospital, um
homem que aparentava no máximo
quarenta anos e que segurava a sua mão sorriu feliz.
- Que bom
que você acordou! Estava muito
preocupado. Eu sou o seu pai, e estou muito feliz por tê-la encontrado, minha filha querida. Agora
você vai morar comigo. Vai ter um quarto
só seu e muitos brinquedos, estudará em um bom colégio, fará novos amigos, conviverá com os seus primos e tios. - Onde estão os meus avós e a minha mãe?
Indagou assustada e com uma expressão de tristeza no rosto. Sério, ele
respondeu: - Eles não sobreviveram ao
acidente, no dia da festa, e quanto a sua mãe,
ela não voltou para casa porque fora atropelada por um ônibus e faleceu
no hospital. Mas não se preocupe tudo
vai ficar bem!
Rosalina não pode conter as lágrimas,
perdera todas as pessoas que amava e confiava. Primeiro foi à mãe, agora os
avós. Teria que partir novamente, e sem despedidas. A ideia de frequentar uma boa escola lhe
agradou. – Estudarei muito, e trabalharei para a proteção dos morcegos, esta vai ser a
minha missão de vida. Serei tão sábia e atuante quanto o meu avô!
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