segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Morcego amigo

 

         Apesar do desconforto da viagem de ônibus e do sofrimento decorrente da perda de sua mãe, a pequena Rosalina conseguiu dormir. Horas depois, despertou com um raio de luz batendo em cheio em seu rosto. Olhou pela janela  e avistou uma paisagem rural  onde  pastava gado nelore, com uma brancura que contrastava com o verde  dos campos.  As árvores retorcidas, típicas do cerrado mineiro chamaram a sua atenção, vez ou outra, cruzavam com charretes e carros de boi, meios de transportes até então desconhecidos  dela, desejou saber mais, mas faltava-lhe coragem para  perguntar à   assistente social que a acompanhava, uma mulher séria e   de poucas palavras que  sempre respondia a mesma coisa, não importava qual fosse o questionamento: -  Não se preocupe, tudo vai ficar bem, parecia um robô programado para repetir sempre a mesma frase. –  o que  a entristecia, pois acreditava que nunca  mais  poderia ser feliz, sua mãe saiu para trabalhar e  não voltou. Os vizinhos  chamaram  a polícia  e agora, ela seria entregue aos avós maternos, que não conhecia, e não sabia  o motivo pelo qual nunca fora visitá-los. Sempre que  demonstra interesse em conhecer os familiares, a resposta da mãe, era sempre a mesma: -  Eu sou a sua família, você é a minha família, a luz da minha vida  e mudava de assunto.

Ás doze horas em ponto,  o ônibus estacionou na plataforma de desembarque do terminal rodoviário e o motorista anunciou em voz alta   o término da viagem.   Desceram e enquanto esperavam a bagagem, um rapaz  de pele queimada pelo sol, com roupas bem gastas, chapéu de palha, e um chicote  de couro   sete tiras trançado,  nas mãos aproximou-se.

- Venho pela menina, a mando do  patrão, as levarei em casa.

-  Eu não  irei, disse a assistente social e  com uma expressão séria  no rosto completou: - esta é a bagagem da criança,  tenha cuidado pois os documentos da guarda  judicial estão aí. Disse  dirigindo-se ao jovem. Voltou-se então para Rosalina e repetiu  a sua frase preferida: - Não se preocupe tudo vai ficar bem.  

          Rosalina e o rapaz seguiram de charrete para a fazenda de seus avós, nem uma palavra foi pronunciada durante o trajeto; enquanto conduzia  o veículo, o jovem assoviava   músicas regionais,   parecia indiferente a sua presença, vez ou outra os cavalos assustavam com algum animal silvestre, e se não fosse  pelos bons reflexos do condutor, ela teria sido atirada longe várias vezes.  A estrada era de terra e os solavancos,  a  deixava enjoada e com o corpo dolorido.  Foram recebidos pelo avô que a olhou bem e disse – então, você é a minha neta! Deve estar com fome, venha, na cozinha,  um copo de leite e biscoitos de queijo  esperam por você. Assim que terminar de comer, vá para o seu quarto, a primeira porta a direita, e fique lá até a sua  avó chegar.

           O quarto era simples, uma cama, um guarda-roupa de duas portas e na parede, um quadro com a foto de sua mãe, ainda jovem. Rosalina estava triste e  sozinha. - Nunca mais verei a minha mãe,   o policial disse que  poderá demorar muito até ela ser encontrada. Para eu ser paciente, esperar e confiar na Polícia. Estou com muito medo. Pegou o celular  para  conversar  com a sua amiga Arsu, a  filha da vizinha. Não havia sinal.  Enquanto as lágrimas umedeciam o travesseiro de paina, o sono cerrou os seus olhos e ela  adormeceu. – Acorda  pequena. Vamos preparar o jantar, já é tarde e seu avô vai chegar com fome. Rosalina  despertou assustada e viu à sua frente, uma simpática senhora de cabelos brancos, presos em coque na nuca que, sem dizer mais nada, a pegou pela mão e dirigiram-se à  cozinha.

          Ao contrário das avós de suas amigas,  a sua,  não demonstrou alegria ao conhecê-la, nem lhe perguntou  se estava com fome, o queria comer. Apenas dava ordens que ela não ousou questionar. Com uma voz suave,  paciência  e didática das professoras da  pré-escola, dizia-lhe o que fazer e como executar a tarefa. – Pequena,   hoje vamos preparar apenas arroz com pequi. Primeiro temos que acender o fogo, a lenha está na varanda, vamos buscá-la. É preciso controlar as chamas, este é o segredo  para a comida não queimar.  Rosalina observa tudo com atenção. Era a  primeira vez que via madeira queimar e as labaredas a encantava. Tudo era diferente, os alimentos, a maneira de prepará-los,  porém, ela nada questionava, apenas seguia as orientações da avó, estava como que anestesiada, em virtudes dos últimos acontecimentos. -Esta receita não é difícil, primeiros fritamos o alho e a cebola, na banha, depois acrescentamos o açafrão da terra, para realçar a cor do fruto, depois acrescentamos o arroz, refogamos um pouco, colocamos o pequi e o sal, misturamos bem, depois é só cobrir com água  e deixar cozinhar. Não há segredo, finalizou a anciã,  que continuou a trabalhar em silêncio.  O amarelo ouro do  pequi e o seu forte aroma que se espalhou pela casa   abriu o apetite da menina, que ansiava pelo momento de  degustá-lo. Todos à mesa, o alerta sobre a peculiaridade do fruto veio da parte do sisudo avô. -  Atenção! No caroço, debaixo da polpa, há  centenas de minúsculos espinhos, que podem causar ferimentos à língua e aos lábios. É necessário extremo cuidado. Não pode morder o fruto, mas roê-lo,   disse-lhe  o ancião.  O sabor peculiar e característico, a polpa  macia e saborosa cativam o paladar de Rosalina, que esqueceu o medo dos espinhos e entregou-se ao prazer de desfrutar  da gastronomia local.

           A primeira noite de Rosalina na fazenda coincidiu com a lua nova e mais  estrelas reluziam no céu, o espetáculo de luz celestial formava um belo contraste com o escuridão que  cobria  a terra. Mas ela não pôde   apreciá-lo porque a avó fechou a janela, depois, apagou  a lamparina e saiu do quarto sem dizer-lhe boa noite.  Sentia falta de sua mãe! – Onde estará? O que aconteceu? Por que ninguém responde as minhas  perguntas? Refletia.  Fazia calor e ela  abriu a janela, uma  brisa leve  acariciou-lhe o rosto.  Era tarde e seus olhos teimavam em permanecerem abertos, sem celular, televisão e ninguém para conversar,  sua atenção voltou-se para os ruídos noturnos comuns  na natureza, porém, desconhecidos  para  as crianças urbanas; em poucos minutos adormeceu.

           Rosalina acordou assustada com  o voo rasante  de uma criatura  que a escuridão da noite não lhe  permitia ver. Sentiu medo.  Não tinha como  acender a lamparina porque a caixa de fósforo estava na cozinha e faltava-lhe a coragem necessária para ir buscá-la. Prestou atenção. Nenhum ruído vinha do quarto dos avós, o silêncio  só era quebrado pelo  farfalhar de asas da invasora? - Seria uma bruxa? Não, não é uma bruxa, mamãe sempre disse que as bruxas só existem nos livros de contos de fadas. Será um vampiro?  Acho que não, eles só existem nos filmes. Posso  gritar por socorro, mas o que meus avós pensarão de mim? Já  completei oito anos, eles irão zombar de mim.  O que farei?  Antes mesmo de chegar a uma conclusão, Rosalina percebeu o movimento de  vários seres alados entrando e saindo pela janela. Pulou da cama e tateando, encontrou  o guarda-roupa, entrou, fechou a porta e acomodou-se  o melhor que pode. O sono venceu o medo e o cansaço e ela enfim, pode repousar tranquila.

          Antes que o primeiro raio de sol brilhasse no horizonte, despertou.  Ao longe se ouvia o cantar dos galos e o mugido do gado no curral, que se misturavam a outras vozes de animais,   desconhecidas para ela. Esfregou os olhos  para espantar o sono. Não recordava bem porque estava dentro do guarda-roupa, e não em sua cama, pairou o uma dúvida: -  Eu sonhei ou de fato havia criaturas aladas que emitiam sons estranhos  no quarto? Antes que a pequena chegasse a uma conclusão, a avó entrou no quarto e lhe entregou  um copo de alumínio e disse – Vá até o curral, entregue  ao seu avó que está ordenhando as vacas, volte rápido, vamos fazer pão de queijo com pequi. 

          - Fazer pão de queijo é simples, misture o polvilho e o sal na gamela. Coloque o leite, a água e a banha de  porco  para ferver. Quando levantar fervura, escalde o polvilho, mexa com uma colher, e espere esfriar, acrescente os ovos, a polpa de pequi e sove, por fim, junte o queijo misture bem, enrole os pães e pronto, é só assar. Rosalina não prestou atenção nas palavras da avó, os seres alados ocupavam  os seus pensamentos, na casa, tudo parecia estranhamente normal. Todos  executavam suas tarefas em silêncio,  e ela ajudada com as atividades  compatíveis  com a  sua idade,  Enquanto trabalhava, Rosalina  arquitetava um plano para desmascarar os invasores. Aproveitou um momento de distração de todos e  escondeu em seu quarto, uma vassoura e uma caixa de fósforo.

          Na segunda noite, a  avó seguiu o mesmo ritual: colocou  Rosalina na casa, fechou a janela, apagou a lamparina, e silenciosamente, recolheu aos seus aposentos.  Rosalina levantou com cuidado para não fazer ruído, abriu a janela, deixou  as armas  ao alcance de suas mãos  e  dormiu.  O  som do farfalhar de asas  a despertou. Corajosamente acendeu a lamparina,   atacou os pequenos seres negros, que voavam em zigue-zague pelo quarto na tentativa de escapar da  luz e das vassouradas. O barulho acordou os avós que foram em seu auxílio.  Ao deparar com a cena hilária, não riram, nem brigaram. A  senhora, direcionou o  facho de luz da lanterna para o telhado para expulsar os mamíferos voadores, que não apreciam a claridade. O sisudo senhor, colocou  a  neta no colo e com voz calma e amorosa disse: – Não tenhas medo, pequena, são apenas morcegos. Eles entraram porque a janela  estava aberta. Eles são seres crepusculares e noturnos, daí  a razão porque fechamos as janelas ao  entardecer. Não podemos matá-los. Eles  tem funções importantes  na natureza.  Se não fosse pelo trabalho deles, ontem você não teria  degustado uma iguaria deliciosa, o pequi, porque eles são os seus principais polinizadores. À noite, a  flor do pequizeiro exala  um cheiro que  os atrai. Buscam-na porque há  uma recompensa esperando por eles, o néctar. É  uma relação simbiótica e mutuamente vantajosa. Lembre-se pequena, o homem precisa do morcego, o morcego não precisa do homem.  Agora durma, amanhã conversaremos mais.

          Após  a sesta,  o avô convidou a neta para conhecer a propriedade.  E o que, no entendimento de Rosalina, seria apenas um passeio, foi na realidade,  uma  riquíssima aula de biologia.  O amplo conhecimento sobre plantas e animais encantou a pequena,  descortinou-lhe um outro universo em sua mente. À sombra do pequizeiro, sentaram para descansar e se alimentarem. O lanche preparado pela avó estava delicioso; saciaram a sede  com a água fresca de um pequeno riacho.           A safra do pequi estava chegando ao fim, restavam apenas alguns frutos  verdes nos galhos e  outros maduros, espalhados  pelo chão  à espera de serem  recolhidos. Rosalina observa tudo com atenção e desejou que sua mãe estivesse com ela,  ouvindo os sons do cerrado. Era pura magia! A voz do avô, a   despertou de seu devaneio e com a sua fala doce e sonora, retomou o assunto   dos morcegos, que têm importante papel na manutenção e equilíbrio dos  ecossistemas, enfatizava. Ciente de que a neta  não tinha nenhum conhecimento das  peculiaridades das espécies, discorreu  sobre as mais comuns no Brasil: os frugívoras, que se alimentam de frutos e são dispersores de sementes. Os insetívoros, que se alimentam de insetos, e controlam as pragas das lavouras e por último, falou  sobre os nectarívoras, que se alimentam de néctar e pólen, e desta forma, realizavam a polinização de diversas espécies de flores, inclusive  a do pequizeiro. Finalizou a explanação, contando algumas curiosidades  sobre os  mamíferos voadores, entre elas, que a mamãe-morcego cuidam bem de seus filhotes e quando sai para se alimentar, deixa-o  dependurado no teto da gruta, junto aos outros bebês. Quando retorna, emite um som que é  reconhecido pelo morceguinho, que responde ao chamado.

          Deslumbrada com a sabedoria do ancião, Rosalina  demonstrou interesse em conhecer o local onde vivem os morcegos. Em silêncio, o avô a pegou pela mão e  se embrenharam no  cerrado em direção a gruta onde vivia  uma colônia.  Caminharam em um ritmo lento, as árvores retorcidas  características do bioma, os protegia do sol escaldante; Diante de centenas de mamíferos voadores, Rosalina não sentiu medo, sabia que se eles não se sentissem acuados,  nenhum mal  lhe sucederia. Aprendera com o avô, que é preciso viver em  harmonia com todos os seres vivos, sejam vegetais ou animais.

          Cada amanhecer na fazenda, era prenúncio de um novo aprendizado e Rosalina, observava cada detalhe, esforçando-se para memorizar tudo. Embora sentisse falta da mãe, poderia dizer que era feliz. Particularmente naquele fatídico  domingo, ela estava bem animada,  toda família iria à cidade participar das comemorações da  festa de São Pedro, o padroeiro da região. Partiram de charrete, por uma estrada de  terra, a poeira  levantada pelos carros que passavam prejudicava a visibilidade.

          Rosalina  despertou em um quarto de hospital,  um  homem  que aparentava no máximo quarenta anos e que segurava a sua mão sorriu feliz.

- Que bom que você acordou!  Estava muito preocupado. Eu sou o seu pai, e estou muito feliz  por tê-la encontrado, minha filha querida. Agora você vai morar comigo.  Vai ter um quarto só seu e muitos brinquedos, estudará em um bom colégio, fará novos amigos,  conviverá com os  seus primos e tios.   - Onde estão os meus avós e a minha mãe? Indagou assustada e com uma expressão de tristeza no rosto. Sério, ele respondeu: -  Eles não sobreviveram ao acidente, no dia da festa, e quanto a sua mãe,  ela não voltou para casa porque fora atropelada por um ônibus e faleceu no hospital.  Mas não se preocupe tudo vai ficar bem! 

          Rosalina não pode conter as lágrimas, perdera todas as pessoas que amava e confiava. Primeiro foi à mãe, agora os avós. Teria que partir novamente, e sem despedidas.  A ideia de frequentar uma boa escola lhe agradou. – Estudarei muito, e trabalharei  para a proteção dos morcegos, esta vai ser a minha missão de vida. Serei tão sábia e atuante quanto o meu avô!

Nenhum comentário:

Postar um comentário