sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Epístola Barroca de Rosalina à Prima Amada

 

Rosalina amada,

Espero que esta missiva encontre-te em perfeita saúde e disposição de espírito. Eis que me vejo obrigada a recorrer ao artifício da escrita mecânica, pois minha caligrafia, qual hieróglifo indecifrável, torna-se mais desregrada a cada dia que passa.

Permita-me trazer à tua lembrança a augusta sabedoria de tua bisavó paterna, Dona Bella Célia da Silveira, mulher de fibra e entendimento singular, que, com suas palavras certeiras, legou-nos conselhos eternos. Não raro, ela alertava: "Nunca permita que friagem assente-se em teu peito ou em teus pés." Ora, não era vã essa advertência, pois de seu ventre vieram ao mundo treze almas, todas conduzidas à idade adulta por sua diligência e cuidados.

Agora que o verão se aproxima, trazendo consigo tormentas e ventos impiedosos, minha alma inquieta pensa em ti, que habitas distante, e temo que as intempéries possam encontrar-te despreparada.

Por isso, deixo-te um conselho prático, amparado pela sabedoria herdada: na Rua Princesa  Leopoldina, nas cercanias dos Correios e próximo ao Varejão de Grãos, há uma loja de variedades. Ali, podes adquirir uma capa de chuva, tão necessária para que te protejas das águas imprevistas. E, se o troco permitir, adquira também uma sombrinha, pois a precaução nunca é exagerada.

Quanto ao mais, tudo caminha em ordem. Tua mãe goza de boa saúde, e por aqui os dias seguem em seu ritmo ordinário.

Recebe o afeto sincero de tua prima,
Amélia

 

terça-feira, 19 de novembro de 2024

No Dia da Bandeira: Reflexões de Um Brasileiro

 

Na praça central da minha cidade, ergue-se um mastro altíssimo. Lá no alto, tremula altaneira a Bandeira Nacional, sempre presente, mas nem sempre notada. Hoje, 19 de novembro, ela parece ter despertado mais olhares, embora ainda resista em silêncio, como quem observa, paciente, o vai e vem apressado da vida.

Verde, amarelo, azul e branco. Cores tão familiares que, para muitos, tornaram-se banais. Mas, ali, ao encarar o movimento suave daquele tecido ao vento, percebo que a bandeira é muito mais do que um simples símbolo. É como um álbum de memórias tecido em seda e história, carregando as glórias, lutas e esperanças que nos trouxeram até aqui.

Lembro-me das aulas da infância, quando o hino ecoava nas manhãs de segunda-feira e a bandeira era hasteada sob nossos olhos infantis. Naquele tempo, o significado de "Ordem e Progresso" era um mistério, e as cores da bandeira, apenas um exercício de decoração nos cadernos. Hoje, cada linha, cada tom carrega um peso maior, refletindo as complexidades de ser brasileiro: as contradições, as riquezas culturais, a capacidade de recomeçar.

Penso também em como negligenciamos, às vezes, esse símbolo. Quantas vezes a bandeira fica esquecida, dobrada em algum canto, enquanto os desafios do dia a dia nos afastam do senso de pertencimento? É fácil perder de vista o que ela representa: não apenas um pedaço de tecido, mas uma conexão invisível entre milhões de histórias, passadas e presentes.

Neste 19 de novembro, minha reflexão é simples: respeitar a bandeira é, antes de tudo, respeitar a nós mesmos. Não é um gesto vazio ou cerimonial. É um lembrete de que, apesar das diferenças, existe algo que nos une. Somos versos distintos compondo um mesmo poema, e a bandeira é a métrica que dá ritmo à nossa identidade.

Ao final do dia, quando o sol se despede e a bandeira ainda tremula na praça, sinto um misto de orgulho e responsabilidade. Que o "Ordem e Progresso" inscrito nela não seja apenas uma promessa distante, mas uma construção diária. Afinal, a bandeira é nossa – e nós somos dela.

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Encontros com o Irônico Oráculo da Natureza

 

Não sei o que tem se passado comigo ultimamente. Talvez a amarga decepção com a humanidade tenha lentamente deslocado meu olhar para o reino da natureza, como quem, ao perder a fé nos homens, tenta buscá-la nas plantas e nos bichos. Mas que não se confunda minha inclinação: não tenho o menor apreço por esse costume antiquado de sequestrar uma criatura do seu habitat, arrancá-la de seus iguais e trancá-la em uma casa, adornada com travesseiros e coleiras, sob a desculpa de um “bem-estar” inventado. Como se a felicidade do animal estivesse em perder sua liberdade para a estimação de algum humano bem-intencionado.

Em menos de um mês, fui agraciado com encontros, digamos, insólitos. Primeiramente, duas serpentes deslizaram pelo meu caminho. Uns diriam que trazem maus presságios, outros juram que é sinal de renovação e transformação – afinal, elas têm a exótica habilidade de largar suas peles, como se a cada ciclo tivessem o luxo de deixar para trás o passado indesejado. Em seguida, deparei-me com um besouro de antenas descomunais. Se o velho Egito conferia ao escaravelho o título de amuleto da sorte, talvez devesse então aguardar meus dias de glória.

Mas não acabou por aí. Um estranho ser rastejante me desafiou a lógica: grande demais para ser minhoca, pequeno demais para ser cobra. Talvez uma piada interna do universo para testar minha paciência. E para encerrar com um toque de teatro natural, dei de cara com uma seriema, que abriu o bico com entusiasmo no exato instante em que passamos um pelo outro. O que dizer? Senti-me lisonjeado, como se o próprio cosmos tivesse feito um breve espetáculo para mim. Que sejam bons augúrios, pois preciso crer que, ao menos, a natureza ainda reserva alguma poesia para o meu desassossego.

 

terça-feira, 12 de novembro de 2024

O Guardião do Crepúsculo: Uma Amizade Inesperada

 

Pelos encantados e misteriosos caminhos de Minas, deparei-me com um simpático sapo, desses que parecem saídos das histórias antigas, onde animais e homens se entendem em silêncios e gestos. Imediatamente, uma ideia peculiar me ocorreu: por que não contratá-lo como um aliado natural, capaz de combater as pequenas pragas que insistem em perturbar a tranquilidade de minha casa? Afinal, no requintado cardápio deste pequeno guardião habitam aranhas, besouros, gafanhotos, pernilongos, moscas, formigas… Dizem que um sapo adulto é capaz de devorar, num só dia, o equivalente a três xícaras cheias de moscas.

E o mais extraordinário de tudo é a proteção que carrega consigo: a pele desse simpático anfíbio exala substâncias que o guardam de bactérias e fungos, o que torna a convivência com ele mais segura do que com os amáveis cães ou gatos. Em minha mente já começo a visualizar este novo companheiro como um funcionário dedicado, o sapo de olhos serenos e hábitos noturnos, velando pelo bem-estar de meu lar.

Entretanto, duas dúvidas me tomam o coração: primeiramente, no equilíbrio da natureza, sei que o sapo é a presa da serpente. Temo, com isso, que sua presença venha a atrair as peçonhentas para perto de minha morada, trazendo um risco inesperado. E, quando meu amigo tiver concluído sua missão de livrar-me das pragas, o que farei? Como alimentarei aquele que, em sua lealdade e simplicidade, terá conquistado minha estima? Imagino que, com o tempo, a convivência estreite nossos laços e, ao final, não serei capaz de “demiti-lo”, pois nossa amizade será mais forte do que qualquer contrato.

sábado, 9 de novembro de 2024

Flores que alimentam o futuro

 

A doce laranjeira, enfim, vestiu-se de flores pela primeira vez! Essa planta singela foi plantada a pedido de um velho sábio, cujas forças já foram minadas pelo peso dos janeiros em seus ombros e pela lida do campo; bem sabia ele, que toda fartura brota do seio da terra e que a semente lançada ao solo há de precisar de mãos vigorosas e um coração generoso para florescer nos campos do amanhã. Agora, das estrelas, ele talvez contemple, com os olhos plenos de gratidão, a suave beleza de cada florzinha alva, sabendo que, um dia, seus frutos hão de alimentar alguém – fosse de seu sangue ou não, que importa? Pois sempre viveu com o propósito de plantar e colher para todos, espalhando alimento a quem viesse, fosse homem, fosse pássaro, fosse animal. Primeiro virão as abelhas com seu canto de zumbidos, depois os sabiás e, por fim, os periquitos esvoaçantes, cumprindo o ciclo que ele tanto prezava. Alimento para todos: era esse, eternamente, o seu desejo. (IA)

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Tributo a Renato Andrade e ao som da alma caipira

Eis que me ponho a discorrer sobre os prós e os contratempos de habitar uma vila acanhada, dessas onde a brisa leva devagar os dias, mas os traz de volta com escassez de encantos e manifestações culturais ao gosto de um povo simples. Ora, as apresentações que se oferecem aos moradores, mesmo quando chegam como novidades, custam muitas vezes o esforço de um fidalgo, sem jamais corresponder à excelência de uma noite de veras esplêndida.

Foi então que, ontem, me acometeu uma grata surpresa: um tributo digno ao mestre incomparável da viola caipira, Renato Andrade. Esse virtuoso, nascido em Abaeté num agosto do ano de 1932, alçou-se à glória não apenas como músico, mas como um verdadeiro poeta dos acordes. A trajetória de Renato é curiosa e valente: levado ainda jovem à capital, Belo Horizonte, para aprimorar-se ao violino, retornou um tempo depois à sua terra, onde escutou, como quem ouve o chamado de uma musa, o som da viola caipira. E ali, enamorado do instrumento, prometeu-lhe devoção eterna, a ponto de entrelaçar o popular e o erudito, emoldurando a viola em salões de concerto, como se fizesse justiça à grandeza que tão bem sabia habitar em suas cordas. Seu primeiro trabalho solo, "A Fantástica Viola de Renato Andrade", é relíquia de 1977, uma obra que faz jus à reputação do artista.

Oh, e que fortuna a minha: essa homenagem era franca! Era-lhe comum, segundo dizem, proferir gracejos tais como: “A viola é como a mortadela: todo mundo gosta, mas ninguém quer comer à vista dos outros.” E que me perdoe o poeta violeiro, pois não aprecio a mortadela; todavia, a viola, ah! essa pulsa em meu peito, enlevando-me com o sortilégio de sua sonoridade.

Aos que amo na arte da viola, após, bem o sabem, o ilustre Renato Andrade, incluo Tião Carreiro, Almir Sater, e Helena Meireles. Que benesse é ouvir-lhes os solos, especialmente em dias em que a procrastinação me acomete e os ânimos parecem esquecidos. Pois nada, senhores, eleva o espírito e desperta a disposição como o som da nossa querida viola. Com ela, a melancolia perde força, e a procrastinação se desvanece como névoa à luz do sol.

Sou, pois, grata ao destino por haver-me permitido presenciar este tributo a Renato Andrade, cuja viola, como a vida, é simples e grandiosa, bela e encantadora como um verso de amores que se recita ao coração.

 


sábado, 2 de novembro de 2024

No Dia dos Que Partiram, Flores e Gratidão


Hoje é Dia de Finados, e o coração se veste de memória e gratidão. É dia de lembrar, de agradecer àqueles que abriram os caminhos que percorremos agora, mais leves e mais amplos. Graças a esses passos passados, tenho uma vida que me chega com o perfume do esforço de quem me precedeu. E é com reverência que sigo até o cemitério municipal, onde a missa ecoa entre os túmulos floridos. As flores espalhadas entre as lápides me emocionam, um gesto tão simples e tão imenso: levamos flores aos que amamos. Elas ficam lá, como um abraço em nossa ausência, a beleza persistindo onde a presença já se foi.

Durante a missa, o celebrante comentou sobre o ato de ofertar flores. "Oferecemos flores a quem amamos", disse ele, com um olhar compassivo, como quem traduz para o coração o que as palavras nem sempre alcançam. E, ainda que nossos entes queridos tenham voltado à casa do Pai, as flores permanecem como mensageiras de nosso amor.

Em um instante de rara sensibilidade, o padre compartilhou uma tradição tocante. Lembrou-se de um sacerdote que, em missas de corpo presente ou no sétimo dia, pedia que todos rezassem uma Ave-Maria por aqueles que ainda iriam partir. O sentido da prece pairou no ar, como um convite à reflexão sobre nossa própria mortalidade, mas também como um alento, uma oração em compasso com o mistério da vida. No fim, rezamos juntos, cada um com suas intenções – pedi vida longa e saúde, silenciosa e serena em meio àquelas preces.

A caminhada entre as lápides me trouxe ainda uma surpresa gentil: o Grupo Zelo, que cuida de velórios e despedidas, havia deixado uma acolhida singela – café, chá, suco, biscoitos em saquinhos delicados, um terço e uma vela, todos embalados com carinho, quase um gesto de mãos dadas com nossa dor. Era mais do que uma simples oferta; era um cuidado, um carinho inesperado que aquecia o coração num dia frio de saudades. E no cartão que acompanhava o presente, uma frase tão simples e verdadeira: “Que as lembranças daqueles que amamos permaneçam sempre vivas, inspirando nossos corações e iluminando nossos caminhos.”

Saí dali com uma paz rara, consciente de que o amor que dedicamos aos que partiram reverbera em nós, feito eco de um amor que nunca se apaga, mesmo nas horas de despedida.