Em todas as fases de sua vida, a solidão sempre foi a fiel companheira de Rosalina, como uma sombra inseparável. Ao seu lado, caminhava a carestia crônica, que o obrigava a escolher sempre o mais barato, o que a vida oferecia de mais modesto: o pão amanhecido no balcão de promoções, a oferta do dia. No que dizia respeito ao lazer, ela somente desfrutava do que fosse gratuito, acessível ao público em geral. E, por isso, não podia se queixar — frequentara diversas exposições de arte nos centros culturais do Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e FIESP. Entretanto, verdade seja dita, Rosalina jamais conseguira captar plenamente a beleza das obras ou entender a mensagem que os artistas tentavam transmitir. Seu conhecimento escolar, escasso e fragmentado, jamais lhe permitiu adentrar nos mistérios da arte. Ela fora à escola, passara de ano, mas o saber, esse, se perdera em algum canto da sala de aula, esquecido, talvez, entre carteiras vazias e dias nublados. Hoje, sequer sabia calcular uma porcentagem. Sua linguagem era desajeitada, quase inábil, mas o vazio existencial que carregava era tão vasto que ela se via vagando sem rumo, à procura de algo que preenchesse, ainda que por poucos instantes, sua alma solitária.
sábado, 28 de setembro de 2024
O Silêncio da Alma Solitária
sexta-feira, 20 de setembro de 2024
O Caso do Cão Mais Famoso da Cidade
Vivemos em tempos modernos, onde ser oportunista
virou quase um talento nato. É a era da litigância de má fé, do enriquecimento
ilícito e da busca desenfreada por aquele delicioso "dinheirinho
fácil". Então, para evitar complicações jurídicas (para ninguém querer enriquecer com indenizações ao
meu custo), vou contar essa história, omitindo nomes e cidades, mas deixando a
ironia correr solta.
A cena se passa em uma dessas cidades onde o
aniversário da fundação é o evento mais esperado do ano, com direito àquela
exposição agropecuária tradicional. Afinal, nada melhor do que juntar os
festejos para atrair mais público e, claro, uma desculpa para estourar os
cofres públicos. O ponto alto, como sempre, é a contratação de uma dupla
sertaneja famosa — porque, convenhamos, é isso que o povo quer: cantar
sofrência e beber pinga. Como de costume, essas duplas vêm da roça, crescidas
entre vacas e bois, e carregam consigo aquela simplicidade que é de dar inveja
até ao humilde milho plantado no quintal.
No centro desse causo está a dupla fictícia que vou
chamar de Berrante & Boiadeiro. Certo dia, Boiadeiro, que como todo
bom sertanejo é do tipo que vê a beleza até na poeira da estrada, decidiu
sentar num banco de praça, ali em frente ao hotel. O coração mole desse cantor
se apaixonou perdidamente... por um cachorro de rua. Sim, desses vira-latas que
fazem da praça o seu território, sem amarras, sem dono, com aquela liberdade
que nós, meros mortais, só sonhamos em ter.
Eis que, movido por um altruísmo digno de filme de
sessão da tarde, o Boiadeiro decidiu: "Vou levar esse bichinho
comigo!" Além disso, como se fosse um verdadeiro anjo dos caninos, ele
ainda comprou uma dúzia de sacos de ração para alimentar outros cachorros
famintos da cidade. O homem queria transformar a vida canina local, quem diria!
Mas, como nesta vida nem tudo são flores e boas
ações, e onde há fama, há quem queira um pedaço dela, surge nossa heroína
oportunista. Mal soube do gesto nobre do sertanejo, ela, com uma sede
imensurável pelos seus quinze minutos de fama, consegue o contato da assessoria
da dupla. Num plot digno de novela das nove, ela se apresenta como a verdadeira
dona do cão. E o que faz o simples Boiadeiro? Em vez de questionar ou ao
menos checar o CPF da senhora, ele, generoso como sempre, pega o cãozinho,
coloca-o em seu jato particular e devolve para a tal "dona". Claro,
porque nada é mais simples do que despachar um cachorro num jatinho, não é
mesmo?
Só que a vida, ah, ela tem um senso de humor
peculiar. O desfecho? A senhora oportunista agora tem a responsabilidade
perpétua de cuidar do cachorro até o fim dos tempos. E não, o universo não
deixou barato. Todas as vezes que o cão, esse ser espiritualmente livre,
escapava para sua praça querida, onde já havia conquistado seu espaço, os funcionários
do hotel ligavam para ela, lembrando-a que, segundo a própria, ela era a
dona do bichinho.
E assim, o castigo veio a cavalo, ou melhor, a
cachorro. Enquanto Boiadeiro segue sua vida de fama e palcos, ela terá que
correr atrás de um cachorro que nunca foi dela, mas que, ironicamente, ela
reivindicou. Porque às vezes, o preço da fama é cuidar de algo que você nunca
quis de verdade.
terça-feira, 17 de setembro de 2024
O labirinto da burocracia
Durante
os quinze anos em que a filha caçula esteve à frente dos negócios da família,
tudo parecia correr sob o manto da normalidade. A morte do patriarca, porém,
trouxe à tona os segredos ocultos por debaixo daquela fachada de tranquilidade.
O inventário tornou-se inevitável, e, como de praxe, os problemas explodiram —
mas, claro, não nas mãos da astuta caçula, que, muito perspicaz, evitou assumir
as rédeas desse fardo. Tal responsabilidade caiu sobre os ombros da irmã mais
velha, que, retornando após anos de ausência, desconhecia as irregularidades
que, como ervas daninhas, infestavam os negócios. Ela, que até sua
aposentadoria fora secretária em um escritório conhecido pela pontualidade e
excelência, chocou-se com a desordem.
Logo de
início, deparou-se com a primeira dificuldade: os imóveis urbanos e rurais não
estavam regularizados. Com a diligência de quem se habituara a lidar com
papéis, iniciou o processo pelo georreferenciamento. Encontrar um agrimensor,
contudo, revelou-se um drama digno dos antigos folhetins. Quando finalmente o
contratou, desabaram as temidas águas de verão, impossibilitando os trabalhos,
já que os equipamentos não suportavam a chuva. Com o término das chuvas, o
ajudante, contratado para dar assistência ao agrimensor, foi acometido pela
Covid e veio a falecer. Quando, após luto e novos esforços, outro auxiliar foi
recrutado, o agrimensor, por sua vez, contraiu dengue. Seis meses se passaram,
e, ao fim, o terreno foi medido. Mas a saga estava longe do término: restava
colher as assinaturas dos confrontantes e registrá-las em cartório.
E, como
se não bastassem os percalços do caminho, surgiu uma discrepância nos hectares
que exigia o pagamento de uma taxa à prefeitura. Nossa inventariante, com a
disposição que ainda lhe restava, dirigiu-se à repartição municipal. O
funcionário, com a burocracia em mente e o enfado na voz, informou que a guia
para o pagamento deveria ser retirada no cartório. Ela lá se foi. O atendente
do cartório, como quem joga uma peteca, disse-lhe que tal responsabilidade
cabia ao contador. E ela, exausta, mas ainda obediente à engrenagem do sistema,
procurou o contador, que, por sua vez, não tinha o formulário. Teve de recorrer
a um colega de outro escritório. De posse, enfim, do tão esperado documento,
voltou à prefeitura. Mas o funcionário responsável, com a pontualidade própria
do serviço público, não estava em seu posto. Seu colega recomendou-lhe que
deixasse os papéis e retornasse às catorze horas.
À tarde,
retornou. O funcionário, agora em seu lugar, emitiu o boleto e ordenou que ela
pagasse e retornasse com o comprovante. Ela pagou. Voltou. E, com o documento
em mãos, finalmente viu-se à beira de concluir o labirinto burocrático... mas,
nesse momento, caiu desfalecida. Infartou. Agora, encontra-se internada na UTI,
e o desfecho deste relato, caro leitor, encontra-se nas mãos do destino.
Será que,
ao sair do hospital, ela verá o fim dessa história? Ou será o labirinto da
burocracia que a engolirá de vez? O final, prezado leitor, está em suas mãos.
domingo, 15 de setembro de 2024
O advogado procrastinador
Ah, a intrigante dança dos herdeiros e advogados em um
inventário litigioso! Permita-me contar a história do nosso advogado, cuja
procrastinação rivalizava com a lentidão de um caracol em um campo de melado.
Era uma vez, em um escritório
empoeirado no centro da cidade, o advogado Dr. Eustáquio “Procrastinador”
Pereira. Ele herdara o ofício de seu pai, o lendário Dr. Aristides “Acordo
Fácil” Pereira, que costumava resolver disputas com um aperto de mão e um sorriso.
A história começa quando a Sra.
Gertrudes, uma herdeira de cabelos prateados e olhar desconfiado, entrou no
escritório do Dr. Eustáquio. Ela trazia consigo um testamento amarelado e uma
expressão que dizia: “Prepare-se para a batalha, jovem advogado.”
O falecido Sr. Felisberto, viúvo
e dono de vastas terras, deixara um legado complicado. Ele se unira à Sra.
Odete, uma viúva esperta e com um filho adulto, o mal-humorado Sr. Osvaldo. O
casamento deles? Bem, digamos que foi selado com mais cláusulas do que um
contrato de licitação.
O testamento do Sr. Felisberto
era um labirinto jurídico. Ele deixava a maior parte da herança para a Sra.
Odete, mas também mencionava o neto, o Sr. Leopoldo, e a nora, a Sra.
Rosângela. O Dr. Eustáquio coçou a cabeça, imaginando como resolver essa
equação.
Dr. Eustáquio era um homem de
paz. Ele preferia um acordo a uma briga no tribunal. Quando os herdeiros se
reuniram na sala de audiências, ele tentou mediar. “Que tal dividirmos as
terras em partes iguais?”, sugeriu, suando sob a gravata.
Mas a Sra. Odete tinha outros
planos. Ela olhou para o Dr. Eustáquio com um sorriso gélido. “Meu caro
advogado, você não entende. Eu e o Sr. Felisberto tínhamos um amor… financeiro.
Ele me prometeu essas terras em troca de suas habilidades culinárias. Sim, eu
sou a verdadeira chef da família!”
O Dr. Eustáquio, com seu jeito
hesitante, decidiu investigar. Ele vasculhou os arquivos, encontrou recibos de
jantares e até uma receita secreta de pudim de leite condensado. “Eureka!”
exclamou, quase derrubando a pilha de processos.
No tribunal, o Dr. Eustáquio
apresentou sua descoberta. A Sra. Odete corou, e o Sr. Osvaldo bufou. O juiz
coçou a cabeça, confuso. “Isso é um inventário ou um episódio de MasterChef?”
Após semanas de debates, acordos
e algumas lágrimas (principalmente do Dr. Eustáquio), a herança foi dividida.
As terras foram fatiadas como um bolo de casamento, e o Dr. Eustáquio ganhou
uma nova alcunha: “O Advogado do Pudim”.
E assim, com um suspiro de
alívio, ele voltou à sua procrastinação habitual, enquanto os herdeiros
continuavam a discutir quem herdaria a panela de pressão.
E assim termina nossa crônica,
caro leitor. Que lições podemos tirar dessa história? Bem, talvez que a
procrastinação não seja tão ruim quando se trata de inventários complicados. Ou
talvez apenas que o amor e o direito podem ser uma combinação mais explosiva do
que dinamite em um formigueiro.
O legado da procrastinação
Em uma tarde plúmbea, carregada de uma densa melancolia, o advogado Jaime, filho de um renomado jurista, caminhava pelas ruas úmidas, sentindo o peso do legado que lhe fora imposto. A neblina, lenta e sinuosa, envolvia o escritório que herdara, assim como herdara os temores de seu pai – uma figura de respeito e sabedoria, mas que, em vida, construíra um nome sem sombras, um pilar de segurança jurídica. Jaime, contudo, havia herdado apenas o reflexo dessa grandeza, sua sombra projetada nas paredes da tradição.
Era fim de tarde quando a herdeira lhe bateu à porta. Marta, de olhar firme e alma inquieta, trazia nos gestos uma urgência sufocada. Seu pai, um comerciante que havia acumulado fortuna após a morte da esposa, deixara um rastro de disputas em torno de seu espólio. O velho comerciante, solitário na viuvez, sucumbira ao que muitos julgavam ser um casamento de interesse, enlaçando-se com Dona Clotilde, uma viúva de intenções escusas, que, junto com seu filho, neto e nora, enredara o viúvo numa união fria, desprovida de amor, mas rica em ambições. Nada haviam construído juntos, e a viúva, ao contrário do que muitos sabiam, não teria direito algum ao patrimônio que jamais lhe pertencera por mérito de vida comum.
Jaime, ao ouvir a história de Marta, sentiu a angústia vibrar no peito. Os dedos dela, finos e trêmulos, tocavam a borda da mesa de mogno com ansiedade. Ela exigia justiça, mas o advogado, de postura rígida e voz sussurrante, sempre hesitara quando o caminho se mostrava litigioso. Preferia, como de costume, o caminho mais brando, o da conciliação. Naquele momento, porém, a sombra do pai parecia pairar sobre seus ombros, como um fardo invisível que o amarrava à complacência.
— Marta, compreendo sua dor — murmurou Jaime, evitando o olhar da jovem. — No entanto, creio que um acordo pode ser mais sensato, evitaria o desgaste emocional...
Marta o fitou com olhos cortantes. Sua determinação contrastava com a fraqueza que ele tentava disfarçar sob as palavras cautelosas. Ela sabia que o destino de sua herança estava nas mãos de alguém que hesitava em enfrentar os lobos que cercavam sua fortuna. Ela já tinha visto esse tipo de timidez nos olhares daqueles que temiam se enredar nas teias da justiça.
— Acordo? — sua voz ecoou como um trovão abafado pela bruma. — Eles querem tudo, e a senhora Clotilde, que jamais contribuiu para o sustento de meu pai, não merece sequer uma migalha! O senhor acha que ela cederá com meras palavras de conciliação?
Jaime, ainda mais encolhido em sua cadeira de couro, sentia-se asfixiado. Ele sempre preferira os acordos, as palavras suaves, o caminho menos tortuoso, ainda que, por vezes, prejudicasse aqueles que nele confiavam. Sua procrastinação era um manto que vestia com a desculpa da prudência, quando, na verdade, era o medo da batalha que o mantinha inerte.
O relógio na parede parecia fazer eco com seu coração ansioso. Os ponteiros arrastavam-se como um tribunal adiado, uma decisão nunca tomada. Ele sabia que a viúva Clotilde não tinha direito ao patrimônio. Sabia que, legalmente, o espólio pertencia apenas a Marta e seus irmãos. E, no entanto, a ideia de enfrentar os tribunais, de romper com sua natureza retraída, lhe trazia calafrios.
Os dias passaram, e Jaime, mais uma vez, adiou os confrontos. Tentou dialogar com Clotilde, tentou acordos mornos, sempre pendendo em favor de uma conciliação que, no fundo, sabia ser injusta. E assim, o tempo escoava por entre seus dedos como areia fria, as heranças se dissipando em mãos que não as mereciam.
A cada adiamento, Marta se tornava mais distante, mais pálida. A frustração tomava conta de sua alma, vendo sua herança, o legado de seu pai, ser tragado pela astúcia da viúva e pela covardia de quem deveria protegê-la. Jaime, por sua vez, já não suportava o peso da própria inação, mas o medo de falhar nos tribunais continuava a pará-lo, como uma serpente enroscada em torno de seus pensamentos.
Até que, um dia, em meio à mesma neblina que parecia habitar permanentemente seus dias, Marta não voltou mais. Desiludida, ela encontrara outro advogado, um jovem ousado e destemido, que, ao contrário de Jaime, enfrentou a viúva e sua prole com o vigor necessário. O caso foi resolvido com rapidez, e o direito de Marta foi assegurado sem concessões.
Jaime, ao saber do desfecho, permaneceu em seu escritório, envolto em sombras, com a certeza amarga de que, mais uma vez, fora vencido por seu próprio medo. E, assim, sua procrastinação tornou-se seu legado, tão insípido quanto a fumaça que enchia o ambiente, uma presença sem substância, uma justiça que nunca chegou.
E o advogado, perdido em sua imobilidade, seguiu vivendo como quem se arrasta nas margens da vida, temendo, sempre, atravessar o rio turvo da litigância. A herança que jamais lutara para defender escorria como as últimas horas do crepúsculo, enquanto ele, eternamente envolto em brumas, esperava por algo que nunca viria: a coragem de ser o advogado que seu pai um dia fora.
sábado, 14 de setembro de 2024
o relincho da liberdade
Era uma
vez, em um rincão esquecido pelos mapas, uma aldeia onde o tempo parecia ter se
enredado nas teias da aranha. As ruas, estreitas e tortuosas, abrigavam casas
de adobe e janelas com cortinas de renda. A prefeitura, tão distante quanto a
lua, pouco se importava com os animais que vagueavam livremente, como fantasmas
desgarrados.
Nesse
cenário, vivia um homem de semblante enrugado e mãos calejadas. Seu nome? Ah,
pouco importa. Chamemo-lo de João das Carroças. João possuía uma charrete, um
veículo de madeira carcomida que rangia como um velho ao se levantar da cama.
E, como fiel escudeiro, um pangaré de pelagem baça, olhos melancólicos e ossos
salientes. O pangaré, coitado, não tinha nome; era apenas “o pangaré de João”.
João, porém, enfrentava um dilema. O
pangaré, faminto e sedento, não encontrava pasto nas ruas de paralelepípedo.
João não tinha onde deixá-lo livre para pastar, e sua bolsa, mais vazia que o
coração de um ermitão, não permitia tratamentos extravagantes. Assim, o pangaré
perambulava, farejando mato em terrenos baldios e implorando aos moradores que
o acolhessem em seus lotes cercados.
— Deixe-o
aqui, João — diziam as pessoas, com olhos piedosos. — Ele não faz mal a
ninguém, e economizamos com o capinador.
E assim,
o pangaré se tornou um mendigo de gramíneas, um andarilho de ervas secas. Seu
lombo curvado carregava a fome e a tristeza, enquanto João observava,
impotente, a agonia do animal.
Mas o
destino, esse tecelão de tramas cruéis, tinha outros planos. João cobiçava o
quarto de milha de um sitiante abastado. Um cavalo de raça, altivo como um
príncipe, que relinchava com a nobreza dos que não conhecem o arado. João
propôs a troca, alegando que o quarto de milha não se rebaixaria a puxar uma
charrete. E ele, João, precisava da charrete para escoar sua produção de milho
e feijão, além de outras atividades do sítio.
O sitiante, ingênuo ou ganancioso, aceitou a
barganha. O pangaré, com olhos sem brilho, trocou de mãos. E o quarto de milha,
agora sob o jugo da charrete, perdeu peso e vigor. Suas patas finas tremiam ao
puxar a carga, e seu pelo lustroso deu lugar a uma pelagem em desalinho.
Menos de
um mês se passou, e o quarto de milha definhou. Não mais transportava crianças,
nem mesmo um saco de grãos. O novo dono, arrependido, quis desfazer a troca.
Mas João, astuto como um corvo, recusou. O pangaré, agora de volta a seu antigo
lar, pastava nos campos do sitiante, recuperando forças.
Revoltado,
o antigo dono do pangaré, invadiu o
sítio de João. Gritou aos quatro ventos que o antigo proprietário roubou seu
cavalo. Mas o pangaré, com olhos tristes e um relincho rouco, testemunhava a
verdade: a ganância de João havia selado o destino de ambos.
E assim, nas
esquinas empoeiradas da pequena cidade, ecoava o lamento do quarto de milha,
enquanto o pangaré, resign
Ah, permita-me, caro
leitor, desdobrar os véus do tempo e conduzi-lo ainda mais fundo nessa trama de
destinos entrelaçados. O pangaré e o quarto de milha, agora personagens de um
drama rural, dançavam sua dança de infortúnios.
O
pangaré, outrora esquecido, encontrou nos pastos do sitiante um refúgio. Suas
patas, antes trôpegas, agora se firmavam na terra, como se agradecessem aos
deuses por um pouco de verde e água. Ele não esquecera João, o homem de mãos
calejadas, mas o rancor não encontrava morada em seu coração equino. Ele era um
sobrevivente, um filósofo de cascos gastos.
— Ah,
quarto de milha — relinchava o pangaré ao vento. — Você, que já foi nobre,
agora se arrasta sob o jugo da charrete. A ganância de João nos uniu, mas
também nos separou. Somos irmãos de infortúnio, você e eu.
O quarto
de milha, magro e abatido, não compreendia os desígnios do destino. Seus olhos,
outrora altivos, agora refletiam a melancolia das tardes sem fim. Ele se
lembrava dos campos amplos, onde galopava como um raio, crina ao vento. Agora,
suas patas se afundavam na lama, e o peso da charrete parecia esmagá-lo.
— Pangaré — sussurrava o quarto de milha,
com voz rouca. — Por que trocamos? Por que aceitei essa sina? Eu, que já fui o
orgulho dos pastos, agora sou um espectro de ossos e desesperança.
João, o
artífice dessa tragédia rural, observava de longe. Seus olhos, pequenas fendas
no rosto enrugado, brilhavam com uma mescla de triunfo e arrependimento. Ele
escoava sua produção na charrete, enquanto o quarto de milha se arrastava, e o
pangaré pastava, resignado.
Mas o
pangaré, esse sábio de focinho encardido, tinha um plano. Ele se aproximou do
quarto de milha, cascos afundando na terra úmida, e sussurrou:
— Irmão,
não somos prisioneiros de João. O destino é uma teia, mas podemos tecer nossos
próprios fios. O que dizes de uma aliança?
O quarto
de milha ergueu a cabeça, olhos sem brilho fixos no pangaré.
— Uma
aliança? Como?
— João é
ganancioso, mas não é imortal. Ele envelhece como todos nós. Quando a noite
cair, quando as estrelas bordarem o céu, escapemos. Deixemos para trás a
charrete, os campos exauridos e as lembranças amargas. Sigamos rumo ao
desconhecido, como dois cavaleiros errantes em busca de redenção.
E assim,
na penumbra daquela noite, o pangaré e o quarto de milha escaparam. Suas patas,
agora unidas pelo mesmo propósito, galoparam sob a lua. João, ao acordar,
encontrou a charrete vazia e praguejou contra os céus.
E o
pangaré, com um relincho de liberdade, disse ao quarto de milha:
— Irmão,
somos cavalos de uma mesma estrela. Que nossos cascos nos levem além das cercas
e dos lamentos. Que sejamos livres, mesmo que por uma noite.
E assim,
entre os campos e as colinas, eles seguiram, dois destinos entrelaçados, em busca
de um horizonte sem amarras.
terça-feira, 10 de setembro de 2024
O Voo do Destino
Na calma de uma noite estrelada, envolta pelas brisas suaves que percorriam as montanhas e vales, a natureza parecia repousar em sua plenitude. No entanto, entre as sombras do crepúsculo, havia uma figura singular que, apesar de muitas vezes desprezada, desempenhava um papel grandioso no enredo da criação: o morcego, aquele que dançava nos ares com uma elegância obscura, quase como se fosse um mistério guardado pelos segredos noturnos.
Ao deslizar sob o céu escuro, o morcego, pequeno e ligeiro, traçava sua jornada
entre árvores e flores. Sua presença, muitas vezes temida por olhares humanos,
era, de fato, a de um guardião silencioso. Ele percorria os ares, movido por
uma missão secreta e nobre, como um herói ignorado, que, em seu humilde papel,
sustentava a delicada trama da vida. Ao devorar insetos que, sem sua
intervenção, poderiam disseminar doenças sobre a humanidade, o morcego combatia
as sombras da enfermidade, mesmo sem o reconhecimento daqueles que ele
silenciosamente protegia.
Por entre os galhos retorcidos e as flores que se abriam sob a luz da lua,
ele se movia com destreza. Sua proximidade com as flores era íntima; ele, com
um toque gentil, polinizava essas criaturas fragéis, dando-lhes a chance de
continuarem o ciclo perpétuo da vida. Assim, não era apenas um ser alado que
percorria os céus à busca de sustento. Ele, com suas pequenas asas de veludo,
era o mensageiro da perpetuidade, semeando, através das florestas, a promessa
de novas gerações de plantas e flores silvestres.
Mas não era apenas isso. Ao se nutrir de frutas delicadas, encontradas nos
recantos mais secretos das matas, o morcego, quase como um jardineiro
involuntário, dispersava sementes ao longo de vastas terras. E essas sementes,
ao encontrarem o solo fértil, germinavam e floresciam, perpetuando o verde que
a tantos encantava. As árvores cresciam, as flores desabrochavam, e os frutos
amadureciam — e tudo isso, movido pela ação quase invisível de um ser que,
muitas vezes, passava despercebido.
E assim, as corujas, majestosas e serenas em suas patrulhas noturnas, vinham
ao encontro desse pequeno guardião dos ares. Naquela relação entre predador e
presa, um equilíbrio sagrado era mantido, algo que poucos podiam enxergar. Cada
movimento no ciclo da vida ecoava em harmonia, desde o simples voo do morcego
até o olhar vigilante da coruja, criando uma sinfonia perfeita da natureza.
E quem diria que o homem, muitas vezes alheio às sutilezas da vida que o
cercava, também se beneficiava desse frágil mamífero? Sim, o ser humano, tão
ansioso por controlar o mundo ao seu redor, desconhecia que o morcego, com suas
asas discretas e movimentos silenciosos, era um dos responsáveis pela
manutenção dos ecossistemas que sustentavam sua própria existência.
Nesse cenário de mistérios e harmonia, o morcego era, em verdade, um herói
desconhecido. E, como tantas vezes acontece nas tramas da vida, o que aos olhos
humanos parecia desprezível e assustador, revelava-se, na essência, grandioso e
vital.
O Amor Alado dos Morcegos
Era uma noite de lua cheia, quando os morcegos dançavam nos céus como notas soltas de uma melodia secreta. Na pequena vila de São Sebastião, onde o tempo parecia suspenso entre as árvores centenárias, vivia um jovem chamado Augusto. Seus olhos, escuros como a noite, escondiam sonhos que se entrelaçavam com as asas dos morcegos.
Augusto era um estudante de biologia, apaixonado pelos mistérios da natureza. Ele caminhava pelas trilhas sombrias, observando os raios prateados que iluminavam os galhos retorcidos. E foi em uma dessas noites, quando o vento sussurrava segredos e as estrelas piscavam como olhos curiosos, que ele encontrou Maria.
Maria era diferente das outras moças da vila. Seus cabelos eram negros como a asa de um morcego, e seus olhos, profundos como abismos. Ela não temia a escuridão; ao contrário, parecia abraçá-la com ternura. Augusto a viu pela primeira vez junto ao riacho, onde os morcegos mergulhavam em busca de insetos. Ela os observava com um sorriso enigmático.
“Os morcegos têm um papel importante na cadeia alimentar”, disse Maria, sua voz suave como o farfalhar das folhas. “Eles são os guardiões da noite, os caçadores silenciosos que mantêm o equilíbrio.”
Augusto ficou fascinado. Maria sabia coisas que não estavam nos livros, segredos que só os morcegos compartilhavam com ela. Ela explicou como eles eram presas das corujas, mas também polinizadores das flores. Como consumiam frutas silvestres e, ao voar de árvore em árvore, espalhavam sementes, tecendo o destino da vegetação.
“Inacreditável”, murmurou Augusto, olhando para os morcegos que dançavam acima deles. “Como algo tão pequeno pode ter um papel tão vital?”
Maria riu, e o som ecoou como o bater de asas. “Assim como os morcegos, o ser humano também tem seu papel. Somos todos parte dessa teia invisível que sustenta a vida. Você, Augusto, é como um morcego: discreto, mas essencial.”
E assim começou o romance entre eles. Nas noites de lua cheia, Augusto e Maria se encontravam junto ao riacho, observando os morcegos. Ele aprendia com ela sobre a delicadeza das asas, sobre o amor alado que os unia. Ela lhe ensinava a ouvir o coração da natureza, a sentir o pulsar das estrelas.
Um dia, quando os morcegos voavam em círculos acima deles, Maria sussurrou: “Augusto, nosso amor é como o voo dos morcegos. Silencioso, mas poderoso. Ele também mantém o equilíbrio.”
E assim, nos recantos sombrios da vila, o amor alado dos morcegos se entrelaçou com o destino de Augusto e Maria. Eles se tornaram parte da noite, parte da dança secreta que ecoava pelos séculos. E quando os morcegos voavam, eles sabiam que o mundo estava em harmonia, graças a esse pequeno mamífero voador e ao amor que transcendia as sombras.
domingo, 8 de setembro de 2024
O Silêncio das Rodas
Rosália, com seus sessenta anos, encontrou-se presa entre o aço retorcido de um acidente de carro. A bacia quebrada, o fêmur deslocado — sua vida, outrora cheia de movimento, agora reduzida a uma imobilidade dolorosa. O cirurgião ortopedista traumotologista, com olhos sérios e palavras gentis, prescreveu meses de repouso absoluto. E assim, Rosália se viu confinada à cama, com a cadeira de rodas como sua fiel companheira.
Os filhos mais velhos,
preocupados e pragmáticos, sugeriram uma casa de repouso. Mas Rosália, teimosa
e resiliente, recusou. Ela preferia a companhia de seu filho de dezoito anos e
de sua nora de dezesseis. Juntos, eles se tornaram seus guardiões, seus anjos
improvisados. Eles aprenderam a arte de cuidar, trocando fraldas, ajustando
travesseiros e sorrindo mesmo quando o cansaço os abraçava.
Um mês se passou desde a alta
hospitalar, e Rosália retornou àquele lugar de corredores brancos e cheiro de
desinfetante. Uma embolia pulmonar, traiçoeira como uma sombra, a atingiu.
Agora, sua situação era gravíssima. Seu filho mais velho, com o coração
apertado, teve que partir. A licença médica expirou, e ele voltou ao seu estado
de origem, deixando Rosália aos cuidados do tempo e da inexperiência.
Ele não compreendia que já havia
feito tudo o que podia. Alugou uma casa próxima ao hospital, instalou cercas
elétricas para segurança, adaptou o banheiro para acessibilidade e comprou cadeira de rodas e banho. Sua tia, uma voz
sensata no turbilhão de emoções, acionou a assistente social. Orientações foram
dadas, limites estabelecidos. O caçula, com o sumário de alta nas mãos, bateu à
porta do posto de saúde, implorando por visitas domiciliares.
A tia acreditava que todos haviam
feito o que estava ao alcance. Agora, era hora de silenciar e permitir que o
caçula se transformasse. Ele, que vivia da pensão do pai, sem trabalho ou
estudos, carregava o peso da responsabilidade. Cresceria pela dor, se não pelo
amor. As escolhas feitas em nome da vítima, Rosália, revelariam seus benefícios
ou consequências com o passar do tempo. Talvez todos amadurecessem, ou talvez a
negligência deixasse marcas indeléveis.
E assim, no silêncio das rodas
que deslizavam pelo chão, Rosália aguardava. Fisioterapia pulmonar e
ortopédica, medicação pontual, avaliações médicas regulares — tudo isso se
tornou seu novo mundo. Seu filho, agora distante, aprendia a ser homem, não
apenas pelo amor, mas também pela dor. E no coração de todos, a esperança e o
temor dançavam uma valsa incerta, enquanto o tempo seguia seu curso implacável.
As dores de Rosália
Rosália, aos 60 anos, teve sua vida virada de cabeça para baixo por um grave acidente de carro. A queda quebrou sua bacia e deslocou seu fêmur, e, por recomendação médica, ela deveria ficar acamada por meses, com uma cadeira de rodas como sua nova companheira inseparável. Nesse momento de fragilidade, sua irmã e o filho mais velho sugeriram uma casa de repouso para ajudá-la no período mais crítico, mas Rosália recusou firmemente. Quando lhe ofereceram pagar um cuidador, ela novamente recusou. Preferiu confiar nos cuidados de seu filho de 18 anos e sua jovem nora de apenas 16.
Passado um mês desde sua alta hospitalar, Rosália voltou ao hospital, desta vez por uma embolia pulmonar que agravou ainda mais seu quadro. O filho mais velho, já sem a licença para acompanhar a mãe, teve que retornar à sua casa, em outro estado, com o coração partido. Ele sentia que havia feito tudo o que estava ao seu alcance: alugou uma casa próxima ao hospital, instalou cercas elétricas para maior segurança e fez adaptações no banheiro para garantir acessibilidade. Comprou cadeiras de rodas e de banho, buscando ao máximo atender às necessidades da mãe.
Contudo, nem todas as preocupações se dissiparam. A tia, sempre vigilante, acionou a assistente social do hospital para orientá-los sobre como lidar com a nova realidade. Ela aconselhou que o sobrinho mais novo levasse o sumário de alta ao posto de saúde para que Rosália recebesse visitas domiciliares de médicos e enfermeiros, pois além do estado crítico, era hipertensa.
A tia, com um olhar mais maduro e talvez resignado, acreditava que, naquele ponto, o que restava era deixar o tempo correr e permitir que o filho caçula, até então inexperiente, se tornasse homem diante das circunstâncias. Apesar de sua jovem união estável, ele ainda vivia da pensão do pai, sem trabalhar ou estudar. Agora, sob a pressão do momento, teria que amadurecer. Se não foi pelo amor, seria pela dor.
A escolha de Rosália de permanecer sob os cuidados do filho e da nora trouxe consigo incertezas e receios. O futuro era uma incógnita: essa decisão poderia resultar em amadurecimento para todos, tornando-os pessoas melhores, ou poderia levar a desfechos trágicos. As exigências eram muitas — fisioterapia pulmonar e ortopédica, medicação rigorosa e avaliações médicas frequentes. A negligência, tanto da paciente quanto dos cuidadores, poderia ter consequências graves.
No fim, o tempo seria o juiz.
domingo, 1 de setembro de 2024
O Ipê e a Alma
No coração de um inverno que teima em permanecer, quando o frio cobre a terra com seu manto gélido, o ipê amarelo se destaca na paisagem árida, anunciando um novo ciclo. Seus galhos, despidos de folhas, parecem desamparados, mas é nesse despojamento que reside sua força, sua promessa de renovação.
Assim
como o ipê, a vida humana passa por seus invernos, momentos em que tudo parece
estéril, sem cor, sem vida. Mas é preciso entender que o inverno é apenas um
estágio, uma preparação silenciosa para o que está por vir. As dificuldades e
perdas, que nos fazem desfolhar, são apenas o prenúncio de uma nova florada, de
uma nova primavera.
As flores
do ipê, douradas como o sol nascente, surgem em meio ao aparente vazio,
enchendo o ar de uma beleza que atrai tanto os pequenos insetos quanto os
majestosos pássaros. Eles vêm, atraídos pela promessa de vida que as flores
carregam, e em troca, ajudam a perpetuar o ciclo, espalhando as sementes que
darão origem a novas árvores.
Da mesma
forma, os momentos de esplendor e alegria na vida humana são efêmeros, mas
intensos, e neles se encontra a verdadeira essência da existência. Esses
momentos atraem para nós o que há de melhor, nos conectam com os outros,
espalhando a semente do afeto e da compreensão, que frutificará em novos
relacionamentos, em novas experiências.
Mas,
assim como as flores do ipê caem, tapetando o chão com sua beleza efêmera, os
momentos de glória na vida humana também passam. E quando as flores se vão, é
hora de preparar o solo, de acolher as sementes que virão. O ciclo continua, e
a vida segue seu curso, em um eterno retorno de desfolhar e florescer.
E assim,
o ipê nos ensina que, embora a vida seja marcada por ciclos de perdas e
renovações, cada inverno traz consigo a promessa de uma nova primavera, e cada folha
caída é a preparação para uma florada ainda mais bela. A alma humana, como o
ipê, precisa desfolhar para florescer, precisa aceitar o fim para acolher o
começo, e precisa, acima de tudo, entender que o ciclo da vida é perpétuo, e
que em cada fim há sempre um novo começo.