- Engole o choro – dizia irada, minha mãe. – É melhor fechar essa matraca. Um nó se formava em minha garganta, minhas faces ficavam vermelhas qual uma lua de sangue e meus olhos fixavam à terra, e eu desejava ser tragada por ela para que nenhuma palavra escapasse de minha boca e nem lágrimas de meus olhos. – Você tem que agradecer de ter uma mãe que se preocupa com você – esta era a justificativa para o ato brutal. Em minha infância, sofri violência física e psicológica. À época, era normal que os responsáveis pelos menores, infringissem castigos físicos; diziam as mulheres mais velhas que “ que pecado de criança não é absolvido pelo padre, mas pela varinha de bambu”. Todos os adultos de meu convívio eram adeptos desta teoria e os assuntos nas escolas, principalmente às segundas-feiras, era prioritariamente as surras de finais de semana.
É difícil dizer qual foi a pior surra que levei, eram tantas, com tanta frequência e por motivo fútil, e na maioria das vezes, injustamente, por uma mentira de meu irmão, o “queridinho da mamãe”, que aos olhos maternos, sempre tinha razão; ela nunca ouviu a minha versão dos fatos e o estalido do chicote podia ser ouvido em toda à casa, porém, ninguém, nunca veio em meu auxílio. Minha pele estava sempre marcada pelas chicotadas, antes mesmo que os vergões da última desaparecessem, era açoitada novamente. Com o distanciamento dos anos e com o olhar de adulta, acredito que eu era o saco de pancadas de minha mãe, onde ela descarregava toda as mágoas, frustrações e a sua covardia, de não ter a coragem para exigir de meu pai, a qualidade de vida que ela desejava e acreditava que ele tinha condições de proporcionar. Até os meados do século XX, era assim que as crianças aprendiam as regras sociais, e com exceção dos “queridinhos da mamãe”, que havia em todos os lares, os demais filhos eram açoitados impiedosamente, por aqueles que no altar, prometeram cuidar dos filhos que Deus lhe confiasse.
Eu não tenho memória de uma surra justa, por uma falta grave como por exemplo, por fogo na casa propositalmente, abrir a porteira do curral para soltar o gado, bater em meus irmãos menores, maltratar animais domésticos, pisotear os canteiros da horta, no momento em que as sementes estavam germinando, simplesmente porque eu nunca fiz isto, sempre fui uma boa filha, na mais tenra idade, cumpria com as minhas obrigações, aquém de minhas forças, estava sempre cansada, razão pela qual carrego até hoje, a alcunha de preguiçosa. Era açoitada por coisas insignificantes como não ouvir ao ser chamada, derramar água do balde enquanto enchia o pote de água ou sentar-me para descansar por uns minutos, e claro, fofocas do meu irmão, que acreditava que eu era a sua escrava e estava na casa, somente para servi-lo.
Com o correr dos anos acabei desenvolvendo a capacidade de tornar-me uma pessoa invisível. Procurava acordar com o cantar do galo e executar as tarefas domésticas, a mim destinadas, para que quando minha mãe levantasse, sequer lembrasse que eu existia, assim, eu podia fazer as outras tarefas, relacionadas ao trato com os animais e plantações, sem as dores no corpo, oriundas de chicotadas. A invisibilidade era o meu porto seguro, o que me mantinha longe da fúria materna. Os reflexos de meu esforço para não ser vista deixou-me traumas profundos que influenciarem em meus relacionais pessoais e profissionais.
Apanhar, engolir o choro e seguir com as tarefas como se nada tivesse acontecido, me transformou em uma pessoa servil, sem coragem de expor os seus pontos de vista, optando sempre pelo silêncio, mesmo tendo algo interessante a dizer ou até mesmo importante, que ajudasse a resolver o problema que estava em discussão. Das muitas sequelas que carrego da violência sofrida na infância são predominantes: no âmbito pessoal, nunca consegui aprofundar uma amizade, temia reviver a situação de exploração dos tempos de crianças, sempre a desconfiar das pessoas, sequer consegui levar um namoro por mais de seis meses e com todo o investimento em cursos de capacitação profissional, nunca fui promovida, pois repetia nas empresas em que colaborei, a minha habilidade em ser invisível, executava em silêncio, dentro do prazo previsto, todas as minhas tarefas, sem esquecer nada e também, sem inovar, isto do primeiro dia de trabalho até a aposentadoria.
Sempre digo a mim mesma que em toda a minha vida, eu tive apenas duas grandes alegrias que levarei para o túmulo: O dia que consegui o meu primeiro emprego e o que assinei a aposentadoria e neste último, ingenuamente, acreditei que finalmente, eu estava livre para ser feliz, já que a luta diária pelo pagamento no final do mês estava garantida, mudei para outro estado, sem informar familiares e conhecido, e eles nem perceberam. Eu estava determinada a sair da invisibilidade, tornar-se uma pessoa agradável rodeada de pessoas interessantes, porém, amigos não caem do céu e é preciso encontrá-los e conquistá-los. Pessoas de bem são encontradas nas igrejas, nas academias, bibliotecas, casas de espetáculos, espaços culturais, cursos livres e pizzarias. A estratégia deu certo! Já na primeira celebração que assisti, na hora dos avisos, tradicionais em finais de missas, foi anunciado um curso grátis, para formação de mulheres para ampliação e fortalecimento do conhecimento de seus direitos. Vi no anúncio a oportunidade para “encontrar a minha turma”, sequer procurei saber a matriz curricular do curso, anotei somente os dados para inscrição e no dia da aula inaugural, eu fui a primeira a chegar e a primeira a sair.
A voz predominante na aula inaugural foi de uma professora universitária que discorreu a dura jornada da mulher para ingressar no mercado e a discriminação que ainda sofre, em plena Era da Comunicação e Tecnologia. Fiquei chocada! Neste dia, percebi que a discriminação e exploração da mulher não era um privilégio das pessoas antigas e rudes de minha aldeia, que ainda está arraigado na sociedade brasileira e o mais triste, ainda existe exploração da mão de obra infantil, a qual eu também fui vítima. E o curso seguiu com aulas interessantes, palestrantes explanando sobre a legislação brasileira, nossos direitos e como acessá-los. A mudança de comportamento é lenta e
dolorosa e nem mesmo a rede de mulheres que estava sendo
formada com o intuito de ajuda mútua não conseguiu com que eu
deixasse o hábito da invisibilidade. Entrava muda, sentava-me na
última carteira, permanecia em silêncio, mesmo quando aberta a palavra aos
participantes para esclarecimento de dúvidas. Finda a aula, era a
primeira a sair e calada, como sempre, sem coragem para abrir a boca
até para pedir uma carona até o ponto de ônibus, em dias
chuvosos, quiçá, iniciar um diálogo sobre a questão da mulher na sociedade
contemporânea. Neste curso, o objetivo inicial de formar
um círculo de amizades não foi alcançado, porém, tive a consciência de como são
fortes os impactos dos traumas infantis e que, sem a ajuda de um profissional
competente, perduraram até o final dos dias da vítima.
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