segunda-feira, 21 de outubro de 2019

A agonia da vaca Rosa Branca



          Rosália nasceu  em uma fazenda às margens da Represa de Três Maria, MG, nos meados da década de 1950, filha de um tirador de leite. Isso mesmo!   Nas regiões de bacia leiteira, naqueles idos tempos, era uma profissão fundamental para o  funcionamento da fazenda e assim continua até hoje, mas com outro nome, já que as ordenhas são mecânicas. Seu pai,  embora fosse apenas um trabalhador rural, era muito respeito  na região por não faltar com a palavra  empenhada, e não  medir esforços para cumprir com as suas obrigações dentro dos  prazos estabelecidos, sem descuidar da família e  dos deveres para com a igreja. Além de trabalhador o  patriarca,  ciente de seus deveres com a esposa e a numerosa prole, também era temente a Deus e seguidor das tradições populares. Sua filha Rosália  admirava-o e dava a sua contribuição  na lida diária do campo que tem seu início às quatro horas da manhã, e termina somente quando a lua surge no horizonte, isto é, se não houver nenhum imprevisto, como uma vaca atolada no brejo, porcos fugindo do chiqueiro e os lobos rondando o galinheiro.
          Rosália, embora  trabalhasse duro no campo, fazendo serviço de adulto, tinha um coração sensível e era muito apegada aos animais da fazenda  e nunca entendeu a razão pela qual, seu pai não ordenou o tiro da misericórdia, para por fim ao sofrimento da vaca chamada carinhosamente de Rosa Branca. A rês,  caiu em uma vala e quebrou as pernas. Sem  poder levantar ficou abandonada no campo, sob o sol ardente das Gerais, com fome  e sede e o sofrimento foi ampliado quando as moscas varejeiras encontraram uma excelente hospedeira para a sua prole, depositaram os seus ovos e as lavas, nasceram e começaram a devorar os tecidos vivos da  vítima.  Naquela época, não  havia diálogo entre pais e filhos. Os pequenos apenas cumpriam as ordens de seus genitores, sem questionar a razão, e com o coração sangrando, durante a agonia da vaca Rosa Branca, Rosália era obrigada a  ir uma vez ao dia, até o local do acidente, apenas verificar se  ela já  havia morrido.  Executar esta tarefa era tão difícil que a jovem sequer conseguiu saber quantos dias duraram o martírio e  até o último dia de sua vida, esta imagem foi  uma companheira  inseparável.
          Durante os seus 60 anos de vida, Rosália fez de tudo para  apagar de sua memória a lenta agonia da vaca Rosa Branca e, quando a dor e o remorso dilaceravam o seu coração, ela pensava como não foi capaz de pensar em uma  maneira de acabar com o sofrimento da rês em segredo, sem ser descoberta pela  sua família e a do patrão. Rosa Branca era uma vaca gir, raça  de origem indiana. Segundo a literatura hinduísta, talvez seja a raça zebuína mais antiga da terra,  e  quando introduzida no país, se adaptou bem ao clima brasileiro e  também as necessidades dos pecuaristas porque fornece em abundância,  carne e leite.
  Para aliviar o seu coração corroído pela dor e remorso daquilo que poderia ter sido feito,  quando a imagem  da  vaca deitada, sem forças para levantar porque os ossos das pernas estavam em fratura expostas e  cujos  olhos, misteriosamente não demonstravam a intensidade da dor física, mas serenidade e resignação,  aparecia na mente de Rosália  com mais intensidade,  ela punha-se a filosofar rudemente sobre os últimos pensamentos  da  agonizante, caída próxima a suculentas plantações de capim, ouvindo o murmúrio  de um rio que corria próximo ao local do acidente e ela ali, abandonada sem piedade, morrendo lentamente de fome, sede e pela dor de estar sendo devorada viva, observando os abrutes sobrevoando  em voos rasantes a espera de seu último suspiro, porque  esta  espécie de ave, não costuma devorar animais vivos. Será que ela sonhava com outras pastagens e outras águas em campos floridos, algo semelhante ao paraíso bíblico? Talvez a indiferença ao sofrimento fosse oriunda de um exame de consciência dos erros  que cometera em vida de trabalhadora servil, que agora, ali no chão, representava apenas prejuízo ao  seu dono, já que sequer a sua carne seria aproveitava  para alimentar as pessoas. Rosa Branca tinha ciência que, na natureza, para que um ser viva, é preciso que outro morra é  a cadeia alimentar. Ou talvez  ela sonhasse com a  distante terra  natal de seus antepassados, porque é provável que em seus berros e mugidos, os bovinos narrem as histórias  de outras paisagens, quem poderá saber? Os cientistas pouco sabem da comunicação  entre  os animais.Talvez pela proximidade com os humanos, possa ter acreditado que era uma pecadora e que  merecia todo o sofrimento. Será que a pobre vaca, ao    pressentir a proximidade do fim, vasculhava a memória em busca de um pecado, como escoicear o bezerro, um pouco antes do tempo  da desmama, uns coices e algumas chifradas nos vaqueiros e em brigas  nas desavenças  com a  manada.  Talvez o  seu maior pecado fora o seu andar desatento que a fez cair na vala aberta acarretando prejuízo ao seu  proprietário, além de deixar órfã a sua ultima cria, que ainda  não sabia pastar. Tanto ainda havia para lhe ensinar,  rumina Rosa Branca, apreciando pela última vez o belo entardecer de outono, nas Minas Gerais. E ao amanhecer, ao cumprir a sua dolorosa rotina, Rosália  a encontrou rodeada de urubus que se deliciavam com o farto banquete.

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