Rosália nasceu em uma fazenda às margens da Represa de Três
Maria, MG, nos meados da década de 1950, filha de um tirador de leite. Isso
mesmo! Nas regiões de bacia leiteira,
naqueles idos tempos, era uma profissão fundamental para o funcionamento da fazenda e assim continua até
hoje, mas com outro nome, já que as ordenhas são mecânicas. Seu pai, embora fosse apenas um trabalhador rural, era
muito respeito na região por não faltar
com a palavra empenhada, e não medir esforços para cumprir com as suas
obrigações dentro dos prazos
estabelecidos, sem descuidar da família e
dos deveres para com a igreja. Além de trabalhador o patriarca, ciente de seus deveres com a esposa e a
numerosa prole, também era temente a Deus e seguidor das tradições populares.
Sua filha Rosália admirava-o e dava a
sua contribuição na lida diária do campo
que tem seu início às quatro horas da manhã, e termina somente quando a lua
surge no horizonte, isto é, se não houver nenhum imprevisto, como uma vaca
atolada no brejo, porcos fugindo do chiqueiro e os lobos rondando o galinheiro.
Rosália, embora trabalhasse duro no campo, fazendo serviço de
adulto, tinha um coração sensível e era muito apegada aos animais da
fazenda e nunca entendeu a razão pela
qual, seu pai não ordenou o tiro da misericórdia, para por fim ao sofrimento da
vaca chamada carinhosamente de Rosa Branca. A rês, caiu em uma vala e quebrou as pernas. Sem poder levantar ficou abandonada no campo, sob
o sol ardente das Gerais, com fome e
sede e o sofrimento foi ampliado quando as moscas varejeiras encontraram uma
excelente hospedeira para a sua prole, depositaram os seus ovos e as lavas,
nasceram e começaram a devorar os tecidos vivos da vítima. Naquela época, não havia diálogo entre pais e filhos. Os
pequenos apenas cumpriam as ordens de seus genitores, sem questionar a razão, e
com o coração sangrando, durante a agonia da vaca Rosa Branca, Rosália era
obrigada a ir uma vez ao dia, até o
local do acidente, apenas verificar se
ela já havia morrido. Executar esta tarefa era tão difícil que a
jovem sequer conseguiu saber quantos dias duraram o martírio e até o último dia de sua vida, esta imagem foi uma companheira inseparável.
Durante os seus 60 anos de vida,
Rosália fez de tudo para apagar de sua
memória a lenta agonia da vaca Rosa Branca e, quando a dor e o remorso
dilaceravam o seu coração, ela pensava como não foi capaz de pensar em uma maneira de acabar com o sofrimento da rês em
segredo, sem ser descoberta pela sua
família e a do patrão. Rosa Branca era uma vaca gir, raça de origem indiana. Segundo a literatura
hinduísta, talvez seja a raça zebuína mais antiga da terra, e quando
introduzida no país, se adaptou bem ao clima brasileiro e também as necessidades dos pecuaristas porque
fornece em abundância, carne e leite.
Para aliviar o seu coração
corroído pela dor e remorso daquilo que poderia ter sido feito, quando a imagem da
vaca deitada, sem forças para levantar porque os ossos das pernas
estavam em fratura expostas e cujos olhos, misteriosamente não demonstravam a
intensidade da dor física, mas serenidade e resignação, aparecia na mente de Rosália com mais intensidade, ela punha-se a filosofar rudemente sobre os
últimos pensamentos da agonizante, caída próxima a suculentas
plantações de capim, ouvindo o murmúrio
de um rio que corria próximo ao local do acidente e ela ali, abandonada
sem piedade, morrendo lentamente de fome, sede e pela dor de estar sendo
devorada viva, observando os abrutes sobrevoando em voos rasantes a espera de seu último
suspiro, porque esta espécie de ave, não costuma devorar animais
vivos. Será que ela sonhava com outras pastagens e outras águas em campos
floridos, algo semelhante ao paraíso bíblico? Talvez a indiferença ao
sofrimento fosse oriunda de um exame de consciência dos erros que cometera em vida de trabalhadora servil,
que agora, ali no chão, representava apenas prejuízo ao seu dono, já que sequer a sua carne seria
aproveitava para alimentar as pessoas.
Rosa Branca tinha ciência que, na natureza, para que um ser viva, é preciso que
outro morra é a cadeia alimentar. Ou
talvez ela sonhasse com a distante terra natal de seus antepassados, porque é provável
que em seus berros e mugidos, os bovinos narrem as histórias de outras paisagens, quem poderá saber? Os
cientistas pouco sabem da comunicação
entre os animais.Talvez pela
proximidade com os humanos, possa ter acreditado que era uma pecadora e
que merecia todo o sofrimento. Será que
a pobre vaca, ao pressentir a proximidade
do fim, vasculhava a memória em busca de um pecado, como escoicear o bezerro, um
pouco antes do tempo da desmama, uns
coices e algumas chifradas nos vaqueiros e em brigas nas desavenças com a manada. Talvez o
seu maior pecado fora o seu andar desatento que a fez cair na vala
aberta acarretando prejuízo ao seu
proprietário, além de deixar órfã a sua ultima cria, que ainda não sabia pastar. Tanto ainda havia para lhe
ensinar, rumina Rosa Branca, apreciando
pela última vez o belo entardecer de outono, nas Minas Gerais. E ao amanhecer,
ao cumprir a sua dolorosa rotina, Rosália
a encontrou rodeada de urubus que se deliciavam com o farto banquete.
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