terça-feira, 31 de dezembro de 2024

O Jardim das Promessas e das Rosas

 


O crepúsculo de 2024 despedia-se com um brilho melancólico. No horizonte, os últimos raios do sol tingiam o céu com matizes de ouro e rubi, refletindo-se nas lágrimas silenciosas que Maria derramava diante do altar em seu quarto. Ali, entre flores de papel desgastadas e velas semi-derretidas, repousavam imagens de Santa Terezinha das Rosas, Santo Expedito, São Longuinho, Nossa Senhora Desatadora de Nós e São Bento. Seus olhos buscavam no vazio o alívio de uma esperança às vezes tão distante quanto as estrelas que começavam a pontilhar o firmamento.

Foi um ano marcado pela perda e pela luta. A morte de familiares arrancara de Maria não apenas as presenças amadas, mas também a certeza de um futuro em que o legado da família seria uma ponte para dias menos sombrios. O espírito da justiça, tão frequentemente evocado, parecia brincar com ela, escondendo-se em meandros burocráticos e na lentidão do sistema, como se as engrenagens da lei estivessem lubrificadas com areia ao invés de óleo.

Os erros do passado, fruto de negligência administrativa nos negócios familiares, pareciam vultos a rondar sua mente. Cada dia era uma batalha contra o peso da memória e a dureza do presente. As novenas se sucediam como as batidas de um coração esperançoso, mas exaurido. Cada oração era uma rosa oferecida aos santos, uma promessa de que ela persistiria, mesmo quando a fadiga tornava o ar denso e os pensamentos nebulosos.

Maria acreditava na intercessão divina. As imagens dos santos não eram apenas esculturas de gesso ou pinturas desbotadas; eram âncoras para sua alma flutuante, janelas para um reino onde a justiça não era apenas uma palavra, mas um ato. E, apesar de sua fé, algo em seu coração dizia que 2024 precisava ser o fim daquela jornada de pedidos e novenas. Os santos haviam ouvido. Eles atendiam na linguagem dos sinais: um vento que balançava as cortinas em meio ao silêncio da noite, um perfume inexplicável de rosas que atravessava o ar, ou o simples alívio em uma noite de sono profundo.

Enquanto a lua subia no céu, Maria fez uma última oração. Desta vez, suas palavras não eram de súmula, mas de gratidão. A esperança pulsava em seu peito com a intensidade de um fogo renovado. 2025 seria diferente. Ela visualizava, com os olhos fechados, o momento em que o legado de seus pais, finalmente liberto das amarras da burocracia, lhe permitiria abandonar a vida de economia e miséria. O futuro prometia ser um jardim de abundância, onde ela poderia colher os frutos de tantos anos de lágrimas e orações.

Maria se deitou, e em seus sonhos, caminhou por um campo repleto de rosas. Cada flor representava um pedido, uma prece, uma espera. No centro do campo, uma luz suave emanava de uma árvore frondosa, sob a qual estavam sentados seus pais, sorrindo. Ao se aproximar, sentiu uma paz indescritível. Entendeu que o tempo não era um inimigo, mas um escultor, moldando com paciência os contornos de uma vida mais justa.

Quando a alvorada de 2025 chegou, Maria acordou com um sorriso. O jardim das promessas estava mais perto do que jamais estivera. Agora, era apenas questão de colher as rosas.

sábado, 28 de dezembro de 2024

Solitário Natal

 

Mais um Natal, e o vazio me fez sua confidente. Sentei-me diante de uma casa arrumada, silenciosa como um templo esquecido. Pela janela, os enfeites piscavam em fachadas alheias, mas aqui dentro, o brilho das luzes era apenas um eco de tempos idos.

Esperei. Quem sabe um convite inesperado, um telefonema afetuoso ou mesmo uma mensagem singela de um familiar, um amigo. O que chegou foi o silêncio. Silêncio pesado, cruel, que sussurra em cada canto da casa, lembrando-me da ausência de um mundo que seguiu adiante sem mim.

Sem outra opção, decidi almoçar fora, em busca de um simulacro de celebração. Escolhi um restaurante modesto, onde o óleo das frituras parecia compartilhar do meu esgotamento. As mesas à minha volta estavam cheias de risos e brindes. Na minha, apenas a presença pesada da solidão, que me acompanhava como uma velha companheira fiel. Nem a comida, áspera ao paladar, conseguiu preencher o buraco no peito.

Voltei para casa. Ali, rodeada pelas paredes que guardam minhas memórias, decidi limpar o chão. Em cada esfregada no piso, parecia que tentava lavar as dores impregnadas na alma. Uma faxina útil, pensei, ao menos para esconder por algumas horas a sujeira invisível do abandono. Ações mecânicas, como um rito de exorcismo contra as sombras que me habitam.

Ao longo dos anos, corri atrás de amizades, investi em laços que sempre se desfizeram com o tempo, como fios de uma trama que nunca se completava. Gente vinha, gente ia, e eu ficava. Solidão, percebi, é o meu destino. Melhor aceitá-la, pensei, como se aceita a própria pele: não há como fugir.

Porém, ao aceitar, o peso não diminui. É uma cruz que carrego, feita não de madeira, mas de ausências, de momentos que nunca vieram, de vozes que nunca chamaram meu nome. Mais um Natal se foi, deixando-me com a certeza de que valorizo as pessoas mais do que elas a mim. E, quem sabe, esta seja a ironia de viver: querer ser importante em um mundo que nos ensina, dia após dia, o peso da nossa própria insignificância.

E assim, a vida segue, entre dias vazios e noites longas, com a esperança cada vez mais tímida de que, talvez, um dia, o silêncio seja interrompido por algo mais doce que a solidão.

terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Acompanhada, porem, sózinha

 

Era uma manhã comum, dessas que carregam no ar a promessa de mais uma batalha cotidiana. Acordei cedo, como de costume, com a mente já tomada pelas tarefas do dia. Entre um gole de café apressado e o barulho distante da rua, lembrei da conta de luz vencida — um detalhe minúsculo que, naquele momento, parecia uma montanha intransponível.

Resolvi pedir ajuda à minha irmã, aquela que, pelo menos teoricamente, deveria ser um apoio nas horas difíceis. Expliquei a situação com a simplicidade de quem espera um mínimo de solidariedade. Mas a resposta veio seca, impiedosa: "Olha os recibos anteriores e vê se já completou o tempo de vencimento. É de três em três meses, não é?"

Senti um nó na garganta. Não era apenas a conta de luz, era o peso de sempre ter que resolver tudo sozinha. Trabalho fora o dia inteiro, corro de um lado para outro tentando manter o equilíbrio frágil das minhas responsabilidades. E ela... Ela não arruma a casa, não faz comida, toma café na padaria e almoça fora. Vive dando ordens, como se a vida fosse um jogo onde só ela pode descansar.

Revolvi gavetas, procurei recibos, remexi papéis antigos com mãos trêmulas e coração pesado. Cada pedaço de papel encontrado era um lembrete de quantas vezes me virei sozinha, mesmo tendo irmãos. A solidão, naquele momento, não era apenas física, mas existencial. Ter uma família numerosa e, ainda assim, sentir-se abandonada é uma dor que se instala como uma sombra persistente.

Engoli as lágrimas. Não há espaço para fraqueza quando a vida exige tanto. Mas, no fundo, a ausência de pequenas ajudas dói mais que grandes tragédias. É o silêncio das mãos que não se estendem, dos olhos que desviam, dos gestos que nunca vêm.

Continuei meu dia, com a conta de luz resolvida e o coração mais uma vez remendado. A esperança, teimosa, ainda sussurra que talvez um dia essa distância se desfaça. Mas até lá, sigo, forte e só, como quem carrega o mundo nos ombros sem jamais soltar uma queixa audível.

domingo, 8 de dezembro de 2024

Vergonha e Escombros

 

Na vastidão dos tempos, onde outrora vigoravam a honra e o respeito, fui lançada ao mundo como descendente de pais de retidão cristalina, tão imaculados quanto as lousas celestes dos sermões de Vieira. Eram honrados, admirados e respeitados — adjetivos que hoje soam como sinos rachados em igrejas abandonadas.

Porém, desgraça maior recaiu sobre mim e meus irmãos: herdamos bens de raiz, robustos na aparência, mas frágeis na alma, tal qual edifícios de orgulho corroídos pelo tempo. Com mãos incapazes de lavrar ou cuidar, reduzimos a solidez ao pó das ruínas. As paredes que já ouviram preces de prosperidade hoje testemunham murmúrios de desventura.

Mas o mais cruel foi o que nos foi negado — o respeito. Ah, esse tesouro invisível que não se herda por testamento! Amigos e conhecidos afastaram-se como se nossas desgraças fossem contagiosas. Até mesmo a Polícia Militar, que se supõe guardiã da ordem, nos brindou com a indiferença de quem vê mais uma pedra no caminho.

Foi assim que nossa propriedade, destituída de inquilinos e sorte, tornou-se refúgio de almas errantes: drogados, andarilhos e espíritos perdidos. Ali depositaram seus pertences como quem marca território em terras sem lei.

Chamei as autoridades com a expectativa de justiça. Vieram como inquisidores cansados, mas sem vontade de acender fogueiras. Recusaram-se a registrar o boletim, sugerindo que eu mesma tocasse fogo nos pertences — que proposta mais divina e sutil! Fosse eu senhora de engenho, talvez aceitasse o conselho inflamável.

Porém, ciente de que o mundo do crime não perdoa ofensas nem incêndios, preferi um ato mais cristão: recolhi cada objeto e o dispus cuidadosamente na rua, como oferenda aos deuses da sobrevivência. Devolvi-lhes tudo, não por misericórdia, mas para proteger o pouco que ainda me restava: a prudência e o desejo de evitar mais tragédias.

E assim sigo, herdeira de ruínas e desprezo, à espera de um milagre barroco que restaure não só as paredes desmoronadas, mas também o respeito perdido — esse bem mais raro que qualquer pedra preciosa escondida sob a terra infértil da desilusão.

terça-feira, 3 de dezembro de 2024

O Testamento das Almas Ausentes

 


Nas sombras de um entardecer opaco, quando a brisa trazia ecos de palavras não ditas, Sofia sentava-se diante da escrivaninha antiga. O móvel, herdado junto aos imóveis alugados, parecia carregar em suas fibras a essência de seus pais. Ela e os irmãos haviam se reunido no mesmo espaço dias antes, lendo o testamento que não deixava dúvidas sobre o legado material, mas lançava sombras sobre o que nunca fora dito: o respeito que tanto buscavam.

Dois meses haviam passado desde o adeus aos progenitores, e os ecos das vozes dos inquilinos soavam como notas dissonantes em um réquiem. Primeiro veio o silêncio de um contrato ignorado, o vazio de um aluguel que não chegava. Depois, dois outros se arrastavam em um ritmo insuportável, com pagamentos que chegavam tarde, como um suspiro ao fim de uma longa asfixia.

Sofia contemplava a luz pálida do abajur, onde os insetos dançavam em espirais insanas. Não era apenas o dinheiro que a corroía, mas a confirmação cruel de uma suspeita antiga: ela e seus irmãos eram invisíveis, sombras de uma herança sem raízes. Entre amigos e familiares, o nome da família havia sido grande, mas sua geração não passava de um eco frágil.

Na mente de Sofia, os imóveis eram fantasmas, erguidos com suor, lágrimas e talvez um pouco de arrogância. Os pais, em vida, haviam comandado respeito e admiração, mas não haviam transferido esse legado imaterial aos filhos. O que significava, afinal, a propriedade, se ela era apenas uma concha vazia de autoridade?

Na penumbra do quarto, Sofia fechou os olhos e sentiu uma dor profunda, como se a própria casa em que estava lhe sussurrasse verdades incômodas. Eles não haviam herdado o respeito, e as paredes sabiam disso.

Enquanto a noite se tornava densa, Sofia sentiu que não era apenas o legado que lhes faltava. Era como se, na luta por serem vistos, eles tivessem deixado escapar a essência do que os conectava. O respeito não se herda em testamentos; é tecido em olhares e atos, em palavras ditas no momento certo.

Sofia olhou para a lua, que surgia como um olho prateado no céu, julgando-a. Naquele momento, percebeu que o respeito era como a luz da lua: só refletia aquilo que era capaz de iluminar. E talvez, só talvez, ela e seus irmãos precisassem encontrar sua própria luz, mesmo que a dor da ausência fosse insuportável.