O vento do sul soprou forte no final do inverno de
As janelas
foram fechadas às pressas e em pouco minutos gotas de água tamborilavam nas vidraças.
Rosalina observava as formas abstratas
nas vidraças e não podia deixar de se
preocupar com a falta de ventilação no interior da residência porque propicia a proliferação de ácaros,
fungos, mofos, estes velhos intrusos já
tão conhecidos dos brasileiros que não pedem
licença para entrar e exigem muito trabalho e determinação para serem
exterminados; para completar o clube dos
intrusos, em meados do verão de 2020, desembarcou em terras brasileiras,
com visto de permanência definitivo, o
coronavírus. O peso dos anos exauriram as suas forças e a diarista fora dispensada logo no início da
pandemia. Já ia para mais de um ano sem uma
faxina rigorosa, e agora, com a
combinação de frio, umidade e sem circulação do ar, correria o risco de contrair
uma doença respiratória e covid-19, pois
a vacina não garante 100% de proteção. Não sabia ao certo como estava sua saúde
porque seguiu a risca as orientações do governo e dos profissionais de saúde
durante a quarentena: “fique em casa” e mesmo se estivesse liberada para sair,
de nada adiantaria, os Postos de Saúde podem ser focos de disseminação de doenças.
Acreditava ser mais seguro
permanecer reclusa, utilizando o serviço de delivery, a
arriscar-se nas ruas cruzando com
pessoas irresponsáveis, que não tem amor a vida
e não fazem uso da barreira de
proteção física – a máscara- ao
transitar pela cidade. Uma mudança repentina de hábitos pode ocasionar
problemas de saúde inesperados,
principalmente em pessoas como ela, que
tinha vida ativa antes da pandemia. Apesar da idade avançada, fazia
hidroginástica duas vezes por semana,
frequentava bailes vespertinos
aos sábados, trabalhava como voluntária na Pastoral da Criança aos domingos e ainda
tinha tempo e disposição para um café com as amigas, fazer compras em liquidações e as tarefas
obrigatórias como supermercado e feiras livres. À noite, ouvidos atento à
novela enquanto as mãos ágeis
tricotavam bonitas peças
destinadas a presentear as crianças do Orfanato Mãe Amorosa. Era uma rotina pesada,
despertava com os passarinhos e
recolhia aos seus aposentos após
a última novela da TV aberta e antes de entregar-se aos braços de morfeu, lia duas páginas da Bíblica Sagrada. De repente
tudo mudou. Ela se viu confinada em um apartamento com vista para o muro de uma fábrica
abandonada, e as palavras de ordem do governador a martelar
em sua cabeça: “ fique em casa, use
máscara, lave as mãos, use álcool
Para a consulta médica, Rosalina preparou-se como um soldado quando ia para a trincheira, nos idos tempos em que a espada e braços fortes determinavam o vencedor de uma batalha, nenhum detalhe foi esquecido. Optou por usar um vestido de mangas longas para a proteção de seus braços, um sapato confortável, duas máscaras no rosto e mais duas de reserva e o álcool gel na bolsa. Deixou tudo preparado para a sua volta, sandálias na entrada, a porta do banheiro aberta, para que não fosse necessário tocar a maçaneta ao adentrar para lavar as mãos e tomar banho. Temerosa, porém resoluta, enfrentou seus medos e seguiu para a clínica; ficou satisfeita com a limpeza e organização. Não demorou nem dez minutos e foi chamada pela jovem médica, que parecia ter medo da paciente, a olhou dos pés a cabeça e prontamente diagnosticou–a: era luxação e que ela precisava repousar. Com mais de nove décadas de vida, a paciente percebeu que a profissional não tinha interesse em atendê-la, queria apenas o dinheiro da consulta e livrar-se dela o mais rápido possível. Nesta circunstância, ser educada é difícil, mas a anciã não se deu por vencida, sentou-se confortavelmente na cadeira, passou álcool gel nas mãos e pulsos, olhou firmemente nos olhos da doutora e disse bem séria: Se eu tivesse alguma suspeita de luxação, eu procuraria um ortopedista. Se a procurei é porque acredito que uma profissional com a sua especialidade possa investigar, diagnosticar e prescrever o tratamento adequado. Sem graça, a jovem seguiu o protocolo convencional de atendimento e completou: - para que a senhora fique tranquila, pedirei o exame, que é feito aqui. Em menos de uma hora, estava a nonagenária de volta ao consultório e finalmente, diagnosticada corretamente. Princípio de trombose, nada muito grave, medicação correta e exercícios físicos acompanhados por especialista, seria o ideal, mas na impossibilidade de arcar com os custos, uma caminhada diária será o suficiente concluiu a doutora. Um pouco desconfiada, mas com medo de contrair a Covid-19, frequentando vários consultórios médicos, passou em uma farmácia, comprou os medicamentos e retornou ao lar caminhando.
Tanto tempo enclausurada, ao ser vista pelas vizinhas, não foi tão fácil assim, chegar em casa, todas queriam saber o que havia acontecido, tinha que ser grave, para ter-se arriscado em uma consulta e quando desvencilhava de uma, já tinha duas acenando e a última, foi Helena, que também conhecia a dor da perda do esposo e do único filho e as dificuldades de viver sozinha com idade avançada e com todas as mazelas características da ironicamente chamada de “ Melhor Idade”, que com certeza é uma invenção de algum jovem que desconhece o sofrimento que é conviver com a perda diária de vitalidade, já não se sente com intensidade os aromas e sabores, audição e visão cada dia mais fracas e as mãos já não conseguem perceber todas as texturas e ainda ter que suportar as dores ocasionadas pelo desgaste natural do corpo somados a isso, o peso das lembranças de magoas e arrependimentos do passado. Conversa vai, conversa vem, Helena chegou a sábia conclusão, que ambas eram um “peso morto” para a terra porque estavam somente usufruindo de seus frutos sem dar nada em troca, sem ter um descendente para continuar as tradições, lavrar a terra e ainda onerando os cofres públicos, com a aposentadoria, saúde, transporte e lazer. A lei natural é nascer, crescer, reproduzir, cuidar da prole, transmitir os conhecimentos adquiridos dos ancestrais e partir para “a cidade dos pés juntos”. Morrer é preciso, finalizou a amiga. Rosalina não queria despedir-se do mundo e não tinha pressa para ir ao encontro de seus bisavós, avós, pais, tios, primos, sobrinhos, marido, filho e amigos de infância, escola e trabalho. Estava só, reconhecia, mas ciente que um dia irá repousar eternamente em cova escura, adiar este momento é o mais prudente, assim acreditava. Por volta das 18 horas, finalmente conseguiu chegar, porém, não pode se jogar no sofá para descansar, havia um protocolo a seguir: Deixou os sapatos na entrada, lavou as mãos, desinfetou as maçanetas, bolsa, caixas de remédio e jogou no lixo a nota fiscal e sacolinha plástica. Tudo limpo era a vez dos cuidados corporais, tomou banho, lavou bem os cabelos; a roupa que usara e também as tolhas de rosto e banho foram direto para a lavadora e não economizou no sabão em pó e menos ainda no desinfetante.
Após a profilaxia de chegada da rua, enfim, pode retomar o seu tricô e mal iniciou o diálogo com as agulhas, suas inseparáveis parceiras de trabalho, sentiu um incômodo na garganta e na sequência, a primeira tosse seca, além de incontáveis espirros. Em outros tempos, isto não a teria preocupado, culparia o ar condicionado da clínica e a friagem característica do entardecer de inverno; um chá de alho bem quente resolveria o problema. - Estou com Covid-19, gritou desesperada! O que fazer? Não há remédios com eficácia cientificamente comprovada, tentar a medicina popular poderá camuflar sintomas mais graves. Só tenho como alternativa, melhorar a imunidade à moda antiga pensou. Foi dormir pensando em uma estratégia para evitar uma entubação, pouco provável, mas possível, mesmo tendo tomado as duas doses da vacina. Acordou exausta, tossindo e com febre. Desesperada, pegou o telefone e fez o pedido de remédio para vermes intestinais e multivitamínico sênior. Precisava também, enriquecer a alimentação, assim, açougue, varejão, padaria, supermercados e casa de produtos naturais receberam pedidos, mas a quantidade de entregas chamou a atenção do porteiro, que comunicou o fato ao síndico, um jovem eficiente e prestativo. A pobre anciã levou mais de três horas para higienizar e guardar todas as compras e ao término da tarefa, já lhe doía todo o corpo e ela achou prudente tomar um banho quente e repousar, só que acabou cochilando. Lá pelas dezenove horas, a campainha tocou. Rosalina acordou assustada, esqueceu que já estava de pijama e atendeu a porta. Era o síndico e sua solícita esposa. Ambos concluíram que ela não estava bem e decidiram levá-la a UPA. A tosse, os espirros e a dificuldade de movimentar-se, em decorrência do excesso de trabalho, contradizia o que ela tentava explicar, que não tinha nada, acreditava ser apenas um forte resfriado. Ao passar pela triagem, a enfermeira concluiu que era sintoma de Covid-19 e a encaminhou para o atendimento especializado. Sem esperar o resultado do exame, o médico diagnosticou com firmeza: é Covid. A pobre senhora retornou ao lar com o kit-covid e a firme promessa de que um funcionário do prédio iria pontualmente levar-lhe a medicação, que ela deveria ficar em isolamento durante quinze dias e qualquer coisa que precisasse, era só interfonar na portaria, que ele, síndico ou a esposa, iriam atendê-la o mais rápido possível, para que nada mal lhe acontecesse. Que ficasse tranquila, eles cuidariam dela, concluiu o síndico e a desesperada senhora, não teve outra alternativa, a não ser agradecer tamanha generosidade e resignada, a pobre senhora se viu obrigada a aceitar que estava com covid-19, apesar de sua longa experiência de vida dizer-lhe que era apenas um forte resfriado.
Foram dias difíceis! A pontualidade britânica do funcionário não lhe permitia sequer tricotar, - a senhora precisa repousar, dizia com firmeza enquanto a acomodava em sua cama. Assim, Rosalina, a única descendente viva de Pedro Raizeiro, o melhor curandeiro da região, foi submetida a um rigoroso tratamento desnecessário, exposta a curiosidade pública, todos os conhecidos, pelo WhatsApp, indagavam sobre os sintomas e nunca ofereciam ajuda, visitas estavam proibidas, mas um regalo, para quebrar a monotonia até que iria bem, pensava a anciã, que se sentia como uma criança, a mercê das decisões dos adultos. Mas tudo passa e findo os quinze dias de isolamento social, ela foi aparentemente esquecida e não ficou triste, precisava retomar o seu tricô, e principalmente a sua cozinha, já estava cansada do tempero da comida da esposa do síndico.
Aos poucos a vida voltava ao normal e com a flexibilização decretada pelo governador, Rosalina, que já estava incomodada com a sujeira do apartamento, decidiu entrar em contato com a faxineira para que esta retornasse ao trabalho, acertaria uma vez ao mês, ambas com máscara e assim estariam protegidas. Contatar a profissional não foi fácil, o número do telefone já pertencia a outra pessoa e ela foi obrigada revirar gavetas em busca de agendas antigas, após horas de busca incansável, encontrou o telefone de uma vizinha, que a informou que a sua prestadora de serviço havia sido uma das centenas de milhares de vítimas da Covid-19, fazia aproximadamente uns seis meses, toda a família fora contaminada mas somente ela chegou a óbito. Perplexa, deixou cair o telefone e recostou-se no sofá. Não podia acreditar! A senhora Penha, era uma mulher jovem, apenas 40 anos de idade, forte, trabalhadora. Se havia partido há seis meses, por que os familiares não a comunicaram? Rosalina precisou de um tempo para ordenar as ideias e os sentimentos. Após uma xícara de chá de melissa e valeriana, com o coração mais tranquilo, recordou a última conversa que tivera com a falecida, uns dias antes do início do primeiro lockdown na cidade, quando a dispensou temporariamente, e para garantir a prioridade no dia da semana em que limpava o apartamento, quando a vida voltasse ao normal, 30% do valor da diária seria depositado mensalmente na conta corrente de seu esposo, no quinto dia útil do mês, porém, na realidade, a verdade era outra, Rosalina previa as dificuldades que a profissional autônoma enfrentaria durante o período da quarentena, mas não queria humilhá-la com doações em dinheiro, em consideração aos anos de bons serviços prestados e fez uso de um argumento convincente para que ela aceitasse o trato –“Então, a verdade é uma só, o viúvo não comunicou o falecimento para que eu continuasse a efetuar o pagamento, concluiu com tristeza.”
A cada nova aurora, Rosalina parecia estar mais incomodada com o pó acumulado e sem coragem para contratar outra profissional de limpeza, com medo de ser contaminada com a variante “Delta”decidiu fazer o serviço. Tinha ciência que levaria no mínimo três dias, faltava-lhe o vigor dos quarenta anos e o melhor seria começar pelos mais difíceis e num piscar de olhos, elaborou a escala de serviço. Primeiro dia, cozinha e área de serviço, segundo dia, banheiro e terceiro dia, quartos e sala, porém, a empolgação não lhe permitiu recordar a forte alergia a ácaro. Enfrentou o trabalho pesado com a mesma alegria que uma criança desfruta de um brinquedo novo. O cansaço e as dores no corpo não minaram o seu entusiasmo durante os dois primeiros dias, porém, quando começou a limpar guarda-roupa e estante, percebeu que precisava tomar um antialérgico, mas eles estavam vencidos, ir até a farmácia atrasaria o serviço, pedir por delivery era uma boa opção, porém, poderia chamar a atenção do porteiro e correria o risco de ser levada a UPA sem necessidade, assim, não viu outra alternativa a não ser continuar a tarefa, apesar do mal estar, mas esta, não foi uma boa opção!
Rosalina acordou com os olhos lacrimejantes, dor na garganta, tosse e falta de ar, um pouco de febre, dores generalizadas pelo corpo, em virtude do excesso de trabalho dos dias anteriores, mas isto não a preocupou, sabia que precisa apenas da medicação rotineira e repouso. Tomou café da manhã e decidiu ir à farmácia, na volta passaria pelo varejão, compraria algumas frutas para que não levantasse suspeita de que não estava bem. Assim pensou, assim o fez, porém, ao passar pela portaria, tropeçou, caiu e bateu com a cabeça no degrau da escada, nada grave, não chegou a sangrar, mas ficou um pouco tonta e com confusão mental; o síndico foi chamado e a levou ao hospital mais próximo. Ao vê-la gemendo de dor, com dificuldade para respirar e tossindo muito e tosse seca, o enfermeiro da sala de triagem, encaminhou-a para a ala de Covid-19. Ela tentou explicar o ocorrido, mas não foi levada a sério pelos médicos, talvez pela idade avançada, eles devem ter concluído que paciente estava com alzheimer. Internaram-na em um quarto coletivo e mais uma vez a pobre senhora foi submetida ao tratamento para Covid-19. Implorou que lhe dessem um antialérgico, mas o pedido não foi atendido. Foram cinco dias de martírio e finalmente saiu o resultado do teste, “negativo”, e ela recebeu alta. O retorno ao lar foi tranquilo. Saciada a curiosidade da vizinhança, ela pensou que enfim, retomaria a sua rotina, mas não foi bem assim.
Rosalina acordou cansada, sentia que o ar lhe faltava, a tosse seca a incomodava e tinha um pouco de febre. Reuniu forças e foi preparar o café da manhã e então percebeu que não sentia o cheiro e nem os sabores dos alimentos, desta vez sim, ela havia contraído Covid-19, durante o período de internação. Revoltada com as experiências anteriores, decidiu não procurar ajuda médica, deixaria a natureza completar o ciclo nascimento/morte, já tinha sido abençoada por Deus com noventa anos de vida e bem vividos. Quando o seu corpo, em estado avançado decomposição, incomodasse os vizinhos, eles que tomassem providências, porém, não morreria sem lutar. Lutaria à moda antiga: água, comida, repouso e práticas medicinais tradicionais. Não tinha descendentes, a partilha de seus bens já estava em testamento, mas a experiência traumática com o coronavírus e diagnósticos precipitados precisavam ser registrados para a posteridade. Ela sentia que tinha pouco tempo e suplicava ao Criador que lhe permitisse a glória de colocar o ponto final em seu relato. Gotas de chuva tamborilavam na janela criando enigmáticas formas abstratas indiferentes às dores humanas
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