terça-feira, 14 de setembro de 2021

Nonagenária em quarentena

 

             O vento do sul soprou  forte no  final do inverno de 2021. A frente fria  subiu a serra do mar, chegou à terra da garoa e com ela uma chuva mansa e contínua  que favorecia a  introspecção. – “Não basta   refletir, é preciso registrar os últimos acontecimentos para a posteridade, ” - suspirou a anciã solitária, enquanto  a mão  trêmula segurava a caneta que deixava  marcas azuis na alvura do papel.

As janelas foram fechadas  às pressas  e em pouco minutos  gotas de água tamborilavam nas vidraças. Rosalina  observava as formas abstratas nas vidraças e  não podia deixar de se preocupar com a falta de ventilação no interior da residência  porque propicia a proliferação de ácaros, fungos, mofos, estes velhos  intrusos já tão conhecidos dos brasileiros  que  não pedem  licença  para entrar e exigem  muito trabalho e determinação para serem exterminados;  para completar o clube dos intrusos, em meados do verão de 2020, desembarcou em terras brasileiras, com  visto de permanência definitivo, o coronavírus. O peso dos anos exauriram as suas forças e a  diarista fora dispensada logo no início da pandemia. Já ia para mais de um ano sem uma  faxina rigorosa, e agora,  com a combinação de frio, umidade e sem circulação do ar, correria o risco de contrair uma doença respiratória e covid-19,  pois a vacina não garante 100% de proteção. Não sabia ao certo como estava sua saúde porque seguiu a risca as orientações do governo e dos profissionais de saúde durante a quarentena: “fique em casa” e mesmo se estivesse liberada para sair, de nada adiantaria, os Postos de Saúde podem ser focos de disseminação de doenças. Acreditava ser  mais seguro permanecer  reclusa,  utilizando o serviço de delivery, a arriscar-se nas ruas  cruzando com pessoas irresponsáveis, que não tem amor a vida  e  não fazem uso da barreira de proteção física – a máscara- ao  transitar pela cidade. Uma mudança repentina de hábitos pode ocasionar problemas de saúde  inesperados, principalmente em pessoas como ela, que  tinha vida ativa antes da pandemia. Apesar da idade avançada, fazia hidroginástica duas vezes por semana,  frequentava bailes  vespertinos aos sábados, trabalhava como voluntária na Pastoral da Criança aos domingos e ainda tinha tempo e disposição para um café com as amigas,  fazer compras em liquidações e as tarefas obrigatórias como supermercado e feiras livres. À noite, ouvidos atento à novela enquanto as mãos ágeis  tricotavam  bonitas peças destinadas a presentear as crianças do Orfanato Mãe Amorosa. Era uma rotina  pesada,  despertava com os passarinhos e  recolhia  aos seus aposentos após a última novela da TV aberta e antes de entregar-se aos braços de morfeu, lia  duas páginas da Bíblica Sagrada. De repente tudo mudou. Ela se viu confinada em um apartamento  com vista para o muro de uma fábrica abandonada,  e  as palavras de ordem do governador a martelar em sua cabeça: “  fique em casa, use máscara,  lave as mãos,  use álcool em gel.”  O que ela podia fazer para aliviar a tensão diante de tantas incertezas? Agarrar-se às agulhas, tricotar e tricotar; levantava do sofá somente para  os cuidados com  a alimentação. Lá pelo 233º dia de quarentena, as agulhas já  eram as suas melhores amigas e  queixava-se do calor  intenso que sentia nas pernas, do formigamento que subia da perna a virilha, inchaço e manchas vermelhas na pele. Obviamente  o par de agulhas  trabalhava indiferente aos queixumes da dona  e ela concluiu que era necessário procurar um especialista.  Optou por  consultar um  angiologista  em uma clínica popular próximo a sua residência, o que evitaria ter que usar transporte público, onde o  risco de contaminação comunitária era grande em decorrência da aglomeração de pessoas oriundas de diversas partes da cidade, da falta de ventilação no  interior do veículo e, principalmente, da possibilidade de alguém   tossir  ou espirrar e o coronavírus furar o bloqueio e ir acomodar-se  justamente em suas narinas ou garganta, - sempre há o risco, pequeno, mas é uma possibilidade, refletia.

            Para a consulta médica, Rosalina preparou-se como um soldado quando ia para a trincheira, nos idos tempos em que a espada e braços fortes determinavam o vencedor de uma batalha, nenhum detalhe foi esquecido. Optou por usar um vestido de mangas longas  para a proteção de seus braços,  um sapato confortável, duas máscaras  no rosto e mais duas de reserva  e o álcool gel na bolsa. Deixou tudo preparado para a sua volta,  sandálias na entrada, a porta do banheiro aberta,  para que não fosse necessário tocar a maçaneta ao adentrar para lavar as mãos e tomar banho. Temerosa, porém resoluta, enfrentou seus medos e  seguiu para a clínica; ficou satisfeita com a limpeza e organização. Não demorou nem dez minutos e foi chamada pela   jovem médica, que parecia  ter medo da paciente,   a olhou dos pés a cabeça e  prontamente   diagnosticou–a: era  luxação e  que ela precisava repousar. Com mais de nove décadas de vida,  a paciente  percebeu que a profissional não tinha  interesse em atendê-la, queria apenas o dinheiro da consulta e livrar-se dela o mais rápido possível.  Nesta circunstância, ser educada é difícil, mas a  anciã não se deu por vencida,  sentou-se confortavelmente na cadeira, passou álcool gel nas  mãos e pulsos, olhou firmemente  nos olhos da doutora e disse bem séria: Se eu tivesse alguma suspeita de  luxação, eu procuraria um ortopedista. Se a procurei é porque acredito que uma profissional com a sua especialidade possa   investigar, diagnosticar  e prescrever o tratamento adequado. Sem graça, a jovem seguiu o protocolo convencional de atendimento e completou: - para  que a  senhora fique tranquila, pedirei o exame, que é feito  aqui.  Em menos de uma hora, estava a nonagenária  de volta ao consultório e  finalmente, diagnosticada corretamente.  Princípio de trombose, nada muito grave, medicação correta e exercícios físicos acompanhados por especialista, seria o ideal, mas na impossibilidade de arcar com os custos,  uma caminhada diária será o suficiente  concluiu a doutora. Um pouco desconfiada, mas com medo de contrair a Covid-19, frequentando vários consultórios médicos, passou  em uma farmácia, comprou os medicamentos e retornou ao lar caminhando.

            Tanto tempo enclausurada,  ao ser  vista pelas vizinhas, não foi tão fácil assim, chegar em casa, todas queriam saber o que havia acontecido, tinha que ser grave, para ter-se arriscado em  uma consulta e quando desvencilhava de uma, já tinha duas acenando e a última, foi Helena,  que também conhecia a dor da perda do esposo e do único filho e as dificuldades de viver sozinha    com  idade avançada e  com todas as mazelas  características da  ironicamente chamada de    “ Melhor Idade”, que com certeza é uma invenção de algum jovem que desconhece  o sofrimento que é conviver com a perda diária de vitalidade, já não se sente com intensidade os aromas e sabores, audição e visão cada dia mais fracas  e as mãos já não conseguem perceber todas as texturas e ainda ter que suportar as dores ocasionadas pelo desgaste natural do corpo somados a isso, o peso das lembranças de magoas e arrependimentos do passado. Conversa vai, conversa vem, Helena chegou a sábia conclusão, que ambas eram um “peso morto” para a terra  porque estavam somente usufruindo de seus frutos sem dar nada  em troca, sem ter um descendente para  continuar  as tradições, lavrar a terra  e ainda  onerando os cofres públicos, com a aposentadoria, saúde, transporte e lazer. A lei natural é nascer, crescer, reproduzir, cuidar da prole, transmitir os conhecimentos adquiridos dos ancestrais e partir  para  “a cidade dos pés juntos”. Morrer é preciso, finalizou a amiga. Rosalina não queria despedir-se  do mundo e não tinha  pressa para ir ao encontro de seus bisavós, avós, pais, tios, primos, sobrinhos, marido, filho e amigos de infância, escola e trabalho. Estava só, reconhecia, mas ciente que um dia irá repousar eternamente em cova escura, adiar  este momento é o mais prudente, assim acreditava. Por volta das 18 horas, finalmente conseguiu chegar,  porém, não pode se jogar no sofá para descansar, havia um protocolo a seguir: Deixou os sapatos na entrada, lavou as mãos,  desinfetou  as maçanetas, bolsa, caixas de remédio e jogou no lixo a  nota fiscal e  sacolinha  plástica. Tudo limpo era a vez dos cuidados corporais,  tomou banho, lavou bem  os cabelos; a roupa que usara e  também as tolhas de rosto e banho  foram direto para a lavadora e não economizou no sabão em pó e menos ainda no desinfetante.

            Após a profilaxia de chegada da rua, enfim, pode  retomar o seu tricô e mal iniciou o diálogo com as agulhas, suas  inseparáveis parceiras   de trabalho, sentiu um incômodo  na garganta  e na sequência, a primeira tosse seca, além de incontáveis espirros. Em outros tempos,  isto não a teria preocupado, culparia o ar condicionado  da clínica e a friagem  característica do entardecer  de inverno; um chá de alho bem quente resolveria o problema. - Estou  com Covid-19, gritou desesperada! O que fazer? Não há remédios  com eficácia cientificamente comprovada, tentar  a medicina popular poderá camuflar sintomas mais graves. Só tenho como alternativa, melhorar a imunidade à moda antiga pensou.  Foi dormir pensando em uma estratégia para evitar uma entubação, pouco provável, mas possível, mesmo tendo tomado as duas doses da vacina. Acordou exausta, tossindo e com febre. Desesperada, pegou o telefone e fez o pedido de remédio para vermes intestinais e   multivitamínico sênior. Precisava também, enriquecer a alimentação, assim, açougue, varejão, padaria, supermercados e casa de produtos naturais receberam  pedidos, mas  a quantidade de entregas chamou a atenção do porteiro,  que comunicou o  fato ao síndico, um jovem eficiente e prestativo.  A pobre anciã levou mais de três horas para higienizar  e guardar todas as compras e ao término da tarefa, já lhe doía todo o corpo e ela achou prudente tomar um banho quente e repousar, só que acabou cochilando. Lá pelas dezenove horas, a campainha tocou. Rosalina  acordou assustada, esqueceu que já estava de pijama e atendeu a porta. Era o síndico e sua solícita esposa. Ambos concluíram que ela não estava bem e decidiram levá-la  a UPA. A tosse,  os espirros e a dificuldade de movimentar-se, em decorrência do excesso de  trabalho, contradizia o que ela tentava explicar, que não tinha nada, acreditava ser apenas um  forte resfriado. Ao  passar pela triagem, a enfermeira concluiu que era sintoma de  Covid-19 e a encaminhou para o atendimento especializado. Sem esperar o resultado do exame, o médico diagnosticou com firmeza: é Covid. A pobre senhora retornou ao lar com  o kit-covid e a firme promessa de que  um funcionário do prédio iria pontualmente  levar-lhe a medicação, que ela deveria ficar em isolamento durante quinze dias  e qualquer coisa que precisasse, era só interfonar na portaria, que ele, síndico ou a esposa, iriam atendê-la o mais rápido possível, para que nada mal lhe acontecesse. Que ficasse tranquila, eles cuidariam dela, concluiu o síndico e a desesperada senhora,  não teve outra alternativa, a não ser agradecer tamanha generosidade e resignada, a pobre senhora se viu obrigada a  aceitar que estava com covid-19, apesar de sua longa experiência de vida dizer-lhe que era apenas um forte resfriado.

            Foram dias difíceis! A pontualidade britânica do funcionário  não lhe permitia sequer tricotar, - a senhora precisa repousar, dizia com firmeza  enquanto a acomodava em sua cama. Assim, Rosalina, a única descendente viva de Pedro Raizeiro, o melhor curandeiro da  região, foi submetida a um  rigoroso tratamento desnecessário, exposta  a curiosidade  pública, todos os conhecidos, pelo WhatsApp, indagavam sobre os sintomas e nunca ofereciam ajuda, visitas estavam proibidas, mas um regalo, para quebrar a monotonia até que iria bem, pensava a anciã, que se sentia como uma criança, a mercê das decisões dos adultos. Mas tudo passa e findo os quinze dias  de isolamento social, ela foi  aparentemente esquecida e não ficou triste, precisava retomar o seu tricô, e principalmente a sua cozinha, já estava cansada  do tempero da  comida da esposa do síndico.

            Aos poucos a vida voltava ao normal e com a flexibilização decretada pelo governador, Rosalina, que já estava incomodada com a sujeira do apartamento, decidiu entrar em contato com  a faxineira para que esta retornasse ao trabalho, acertaria uma vez ao mês, ambas com máscara e  assim estariam protegidas. Contatar a profissional não foi fácil, o número  do telefone já pertencia  a outra pessoa  e  ela foi obrigada  revirar gavetas em busca de agendas antigas, após horas de  busca incansável, encontrou o telefone  de uma vizinha, que a informou que a sua prestadora  de serviço havia  sido uma das centenas de milhares de  vítimas da Covid-19, fazia aproximadamente uns seis meses, toda a família fora contaminada mas somente ela chegou a óbito. Perplexa, deixou cair o telefone e recostou-se no sofá. Não podia acreditar! A senhora Penha, era uma mulher jovem, apenas 40 anos de idade, forte, trabalhadora. Se havia partido há seis meses, por que os familiares não a comunicaram? Rosalina precisou de um tempo para  ordenar as ideias e os sentimentos. Após  uma xícara de chá de  melissa e valeriana, com o coração mais tranquilo, recordou a última conversa que tivera com a falecida,  uns dias antes do início do  primeiro lockdown na cidade, quando a dispensou temporariamente, e para garantir a prioridade no dia da semana em que limpava o  apartamento, quando a vida voltasse ao normal, 30% do valor  da diária seria  depositado mensalmente na conta  corrente de seu esposo,  no quinto dia útil do mês, porém, na realidade, a verdade era outra, Rosalina previa as dificuldades que a profissional autônoma enfrentaria durante o período da quarentena, mas não queria  humilhá-la  com doações em dinheiro, em consideração aos anos de bons serviços prestados e  fez uso de  um argumento convincente para que ela aceitasse o trato –“Então, a verdade é uma só, o viúvo não  comunicou o falecimento para que eu continuasse  a efetuar o pagamento,  concluiu com tristeza.”

             A cada nova aurora, Rosalina parecia estar mais incomodada com  o pó acumulado e sem coragem para contratar outra profissional de limpeza,  com medo de  ser contaminada com a  variante “Delta”decidiu fazer o serviço. Tinha ciência que  levaria  no mínimo três dias, faltava-lhe o vigor dos quarenta anos e o  melhor seria começar pelos mais difíceis e  num piscar de olhos, elaborou a escala de serviço. Primeiro dia, cozinha e área de serviço, segundo dia, banheiro  e terceiro dia, quartos e sala, porém,  a empolgação não lhe permitiu recordar a forte alergia a ácaro. Enfrentou o trabalho pesado com a mesma alegria que uma criança desfruta    de um brinquedo novo. O cansaço  e as dores no corpo não  minaram o seu entusiasmo durante os dois primeiros dias, porém,  quando começou a limpar  guarda-roupa e estante,   percebeu que precisava  tomar um antialérgico,  mas eles estavam vencidos, ir até a farmácia atrasaria o serviço, pedir por delivery  era uma boa opção, porém, poderia  chamar a atenção do porteiro e correria o risco de  ser levada a UPA sem necessidade, assim, não viu outra alternativa a não ser continuar a tarefa, apesar do mal estar, mas esta, não foi uma boa opção!

            Rosalina acordou  com os olhos lacrimejantes,  dor na  garganta, tosse e falta de ar,  um pouco de febre,  dores generalizadas pelo corpo, em virtude do excesso de trabalho dos dias anteriores, mas isto não a preocupou, sabia que precisa  apenas da medicação rotineira e repouso. Tomou café da manhã e decidiu ir à farmácia, na volta passaria pelo varejão, compraria algumas frutas para que não levantasse suspeita de que não estava bem.  Assim pensou, assim o fez, porém, ao passar pela portaria, tropeçou, caiu e bateu com a cabeça no degrau  da escada, nada grave, não chegou a sangrar, mas ficou um pouco tonta e com confusão mental; o síndico foi chamado e a levou ao hospital mais próximo. Ao vê-la gemendo de dor, com dificuldade para respirar e tossindo muito e  tosse  seca,   o enfermeiro da sala de triagem,  encaminhou-a para a ala de Covid-19. Ela tentou explicar o ocorrido, mas não foi levada a sério pelos médicos, talvez  pela idade avançada,  eles  devem ter concluído que  paciente  estava  com alzheimer. Internaram-na em um quarto coletivo e mais uma vez a pobre senhora foi submetida ao tratamento para Covid-19. Implorou que lhe dessem um antialérgico, mas o pedido não foi atendido. Foram cinco dias de martírio e finalmente saiu  o resultado do teste, “negativo”, e ela recebeu alta. O retorno ao lar foi tranquilo. Saciada a curiosidade da vizinhança, ela pensou que enfim, retomaria a sua rotina, mas não foi bem assim.

 Rosalina acordou cansada, sentia que o ar lhe faltava,    a tosse seca a incomodava e tinha um pouco de febre. Reuniu forças e foi preparar o café da manhã e então percebeu que não sentia o cheiro e nem os sabores dos alimentos, desta vez sim, ela  havia contraído Covid-19, durante o período de internação.  Revoltada com as experiências anteriores,  decidiu não procurar ajuda médica, deixaria a natureza completar o ciclo nascimento/morte, já tinha sido abençoada por Deus com noventa anos de vida e bem vividos. Quando o seu corpo, em estado avançado decomposição, incomodasse os vizinhos, eles que tomassem  providências, porém, não morreria sem lutar. Lutaria à moda antiga:  água, comida, repouso e práticas medicinais  tradicionais. Não tinha descendentes,   a partilha de seus bens já estava em testamento, mas a experiência traumática com o coronavírus  e diagnósticos precipitados precisavam ser registrados  para a posteridade. Ela sentia  que tinha pouco tempo e suplicava ao Criador que  lhe permitisse a glória de colocar o ponto final em seu relato.  Gotas de chuva tamborilavam na janela criando   enigmáticas formas abstratas   indiferentes às dores  humanas

 

           

           

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