segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Dia de vacinar

           A amizade entre   Samira e Nádia teve  início quando ambas, recém-casadas,  mudaram-se para um condomínio popular. Pareciam duas  irmãs gêmeas, de tão unidas que eram, uma apoiando a outra com a criação dos filhos,  compartilharam o orgulho de vê-los crescer, a apreensão  de  quando deixaram o ninho  para constituírem suas próprias famílias, e também as dores do luto, quando ficaram viúvas. Ambas já beiravam os noventa anos, e o preço que se paga pelo privilégio de uma vida longa é a solidão. Sim, a solidão!  Os ascendentes já partiram para a “terra dos pés juntos” e com eles, os primos, amigos de infância,  escola e a maioria dos colegas de trabalho.  Com amizade nova não  é prudente  confiar em demasia; é até difícil engatilhar uma boa conversa porque não  compartilharam as mesmas  experiências no  passado e quanto aos descendentes, é sabido que comunicam com os mais velhos somente  por redes sociais e nunca estão disponíveis  em  situação de urgência. A  dura realidade as unia cada dia mais. Eram ativas e  felizes até  a chegada do coronavírus.  O período de isolamento social foi difícil, mas elas enfrentaram de cabeça erguida, não esmoreceram e depositaram todas as suas esperanças na vacina apesar da imensa campanha de fake news que questionava a sua eficácia.  Determinadas a vencer o inimigo invisível,  não permitiram que o medo dos efeitos colaterais as impedissem de se protegerem. Apesar da pouca diferença de idade entre elas,  no cronograma de vacinação do governo, os dias seriam diferentes e elas ficaram bem contentes, assim, uma cuidaria da outra, caso tivesse alguma das reações   previstas na bula. Iriam juntas e  registrariam o momento para a posteridade.

          Samira  seria  a primeira a ser vacinada, estava ansiosa; após tanto  tempo em quarentena, respirar novos ares era uma alegria indescritível; optou pelo horário das  oito horas da manhã, no posto de vacinação, da avenida principal de sua cidade; queria ser a primeira a chegar, porém, todos os idosos pensaram a mesma coisa e encontrar um local para estacionar foi mais difícil do  que ela podia imaginar. Tiveram que  utilizar o estacionamento de uma loja e não  notaram um rapaz sentado na porta do estabelecimento, com uma faca na mão. Desceram com a  dificuldade inerente à idade e só então perceberam o perigo a que estavam expostas e com  uma calma aparente que só o medo extremo é capaz de proporcionar,  Nádia cumprimentou o  jovem e pediu que ele  olhasse o veículo pois na volta, lhe dariam “um trocado”.

          Esperaram na fila, aproximadamente  uma hora, e já  imunizada, precisavam retornar ao estacionamento. Nádia sugeriu que  Samira  buscasse o veículo sozinha e ela esperaria em frente ao  Posto de vacinação, e si, em 15  minutos ela não regressasse, chamaria a  Polícia.  Nada do que as frágeis anciãs temiam aconteceu e felizes, retornaram ao condomínio. Na despedida, Nádia reforçou que estaria a disposição, para o que precisasse, a qualquer hora. A noite foi difícil para Samira. Dor no peito e no braço, não a permitiu dormir, mas como já  sofrera dois infartos, optou por não pedir socorro com medo de ser levada ao  hospital e contrair Covid-19, não queria correr o risco de   ficar entubada a mercê de tratamento experimental, e menos ainda, ser enterrada em caixão lacrado, sem a presença dos parentes   a lamentar a sua passagem, que demorara tanto, e agora, teriam pouco tempo para desfrutar da herança.

          Assustada com a experiência  do estacionamento, Nádia  escolheu outro  posto de vacinação, e desta vez, iriam às doze horas, comércio aberto, mais fácil para pedir ajuda, em caso de  outro encontro inesperado e Samira, que a levaria de carro,  aplaudiu  a  decisão da amiga. Foram obrigadas a estacionar na rua, uns três quarteirões do local. Caminhavam felizes, observando  os jardins das casas quando Nádia notou que Samira estava sem a máscara,  que provavelmente ficara no carro, já que na bolsa, não estava.  Caminhavam sem pressa, e  quando estavam a  uns 20 metros do veículo, foram abordadas por uma simpática senhora que  indagou se elas  estavam procurando a chave do carro e antes mesmo que as perplexas senhoras respondessem que não, entregou-lhes o chaveiro e seguiu o seu  caminho sem  esperar agradecimento.

- Proteção divina!  Retornamos  pela máscara e encontramos a chave perdida, sem mesmo dar-nos conta que a havia perdido.  Exclamou Nádia.

- Meu anjo da guarda nem piscou hoje, o que faríamos distantes de casa, sem dinheiro e cartão?  Realmente foi a  divina providência! Aleluia! Exclamou Samira.  Talvez pelo  horário, não enfrentaram  fila e na volta para casa, ultrapassaram a velocidade permitida; foram paradas e repreendidas por um guarda de trânsito, que aconselhou-as a  utilizarem os serviços de táxi, seria bem mais seguro. Esquecimento ou misericórdia, não se sabe, fato é que não foram multadas.. Samira agradeceu a orientações  e seguiu o seu caminho.

          Ao contrário de Samira, que apenas sentiu fortes dores no peito, Nádia  teve várias reações à vacina: cansaço, calafrio, enjoo, tosse, dor de garganta e febre de 38º, sofreu sozinha, durante dois dias.  Ao responder as mensagens da amiga, negava  com veemência  qualquer mal estar, com medo de ser levada ao hospital e  receber um falso diagnóstico de Covid-19 e  tratamento inadequado  que a levaria a óbito. – É preferível uma morte solitária a ser lembrada pelos descendentes como a parente que  faleceu de Covid-19, durante a pandemia do coronavírus, nos anos de 2020/2021, suspirava resignada. Esquecidas as  aventuras, as duas amigas   passaram a dedicar   o tempo em que estavam juntas a planejarem um roteiro de  passeio, no dia da dose de reforço – A  pandemia já estará controlada!  Quiçá possamos ir sem máscaras. Sobreviveremos à pandemia e sorriam satisfeitas.

         

 

         

 

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