A amizade entre Samira e Nádia teve início quando ambas, recém-casadas, mudaram-se para um condomínio popular. Pareciam duas irmãs gêmeas, de tão unidas que eram, uma apoiando a outra com a criação dos filhos, compartilharam o orgulho de vê-los crescer, a apreensão de quando deixaram o ninho para constituírem suas próprias famílias, e também as dores do luto, quando ficaram viúvas. Ambas já beiravam os noventa anos, e o preço que se paga pelo privilégio de uma vida longa é a solidão. Sim, a solidão! Os ascendentes já partiram para a “terra dos pés juntos” e com eles, os primos, amigos de infância, escola e a maioria dos colegas de trabalho. Com amizade nova não é prudente confiar em demasia; é até difícil engatilhar uma boa conversa porque não compartilharam as mesmas experiências no passado e quanto aos descendentes, é sabido que comunicam com os mais velhos somente por redes sociais e nunca estão disponíveis em situação de urgência. A dura realidade as unia cada dia mais. Eram ativas e felizes até a chegada do coronavírus. O período de isolamento social foi difícil, mas elas enfrentaram de cabeça erguida, não esmoreceram e depositaram todas as suas esperanças na vacina apesar da imensa campanha de fake news que questionava a sua eficácia. Determinadas a vencer o inimigo invisível, não permitiram que o medo dos efeitos colaterais as impedissem de se protegerem. Apesar da pouca diferença de idade entre elas, no cronograma de vacinação do governo, os dias seriam diferentes e elas ficaram bem contentes, assim, uma cuidaria da outra, caso tivesse alguma das reações previstas na bula. Iriam juntas e registrariam o momento para a posteridade.
Samira
seria a primeira a ser vacinada,
estava ansiosa; após tanto tempo em
quarentena, respirar novos ares era uma alegria indescritível; optou pelo
horário das oito horas da manhã, no
posto de vacinação, da avenida principal de sua cidade; queria ser a primeira a
chegar, porém, todos os idosos pensaram a mesma coisa e encontrar um local para
estacionar foi mais difícil do que ela podia
imaginar. Tiveram que utilizar o
estacionamento de uma loja e não notaram
um rapaz sentado na porta do estabelecimento, com uma faca na mão. Desceram com
a dificuldade inerente à idade e só
então perceberam o perigo a que estavam expostas e com uma calma aparente que só o medo extremo é
capaz de proporcionar, Nádia
cumprimentou o jovem e pediu que
ele olhasse o veículo pois na volta, lhe
dariam “um trocado”.
Esperaram na fila,
aproximadamente uma hora, e já imunizada, precisavam retornar ao
estacionamento. Nádia sugeriu que Samira buscasse o veículo sozinha e ela esperaria em
frente ao Posto de vacinação, e si, em
15 minutos ela não regressasse, chamaria
a Polícia. Nada do que as frágeis anciãs temiam
aconteceu e felizes, retornaram ao condomínio. Na despedida, Nádia reforçou que
estaria a disposição, para o que precisasse, a qualquer hora. A noite foi
difícil para Samira. Dor no peito e no braço, não a permitiu dormir, mas como
já sofrera dois infartos, optou por não
pedir socorro com medo de ser levada ao
hospital e contrair Covid-19, não queria correr o risco de ficar entubada a mercê de tratamento
experimental, e menos ainda, ser enterrada em caixão lacrado, sem a presença
dos parentes a lamentar a sua passagem,
que demorara tanto, e agora, teriam pouco tempo para desfrutar da herança.
Assustada com a experiência do estacionamento, Nádia escolheu outro posto de vacinação, e desta vez, iriam às
doze horas, comércio aberto, mais fácil para pedir ajuda, em caso de outro encontro inesperado e Samira, que a
levaria de carro, aplaudiu a
decisão da amiga. Foram obrigadas a estacionar na rua, uns três
quarteirões do local. Caminhavam felizes, observando os jardins das casas quando Nádia notou que
Samira estava sem a máscara, que provavelmente
ficara no carro, já que na bolsa, não estava.
Caminhavam sem pressa, e quando
estavam a uns
-
Proteção divina! Retornamos pela máscara e encontramos a chave perdida,
sem mesmo dar-nos conta que a havia perdido.
Exclamou Nádia.
-
Meu anjo da guarda nem piscou hoje, o que faríamos distantes de casa, sem
dinheiro e cartão? Realmente foi a divina providência! Aleluia! Exclamou Samira.
Talvez pelo horário, não enfrentaram fila e na volta para casa, ultrapassaram a
velocidade permitida; foram paradas e repreendidas por um guarda de trânsito,
que aconselhou-as a utilizarem os
serviços de táxi, seria bem mais seguro. Esquecimento ou misericórdia, não se
sabe, fato é que não foram multadas.. Samira agradeceu a orientações e seguiu o seu caminho.
Ao contrário de Samira, que apenas
sentiu fortes dores no peito, Nádia teve
várias reações à vacina: cansaço, calafrio, enjoo, tosse, dor de garganta e
febre de 38º, sofreu sozinha, durante dois dias. Ao responder as mensagens da amiga, negava com veemência
qualquer mal estar, com medo de ser levada ao hospital e receber um falso diagnóstico de Covid-19 e tratamento inadequado que a levaria a óbito. – É preferível uma
morte solitária a ser lembrada pelos descendentes como a parente que faleceu de Covid-19, durante a pandemia do
coronavírus, nos anos de 2020/2021, suspirava resignada. Esquecidas as aventuras, as duas amigas passaram a dedicar o tempo em que estavam juntas a planejarem
um roteiro de passeio, no dia da dose de
reforço – A pandemia já estará
controlada! Quiçá possamos ir sem máscaras.
Sobreviveremos à pandemia e sorriam satisfeitas.
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