sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Desvios da Vida

 As mudanças que a vida impõe são como ventos inesperados, capazes de transformar paisagens inteiras. Um ano atrás, Clara vivia de maneira leve, quase etérea, deslizando pela existência sem grandes preocupações. Quando navegava na internet, era sempre em busca de eventos gratuitos, de encontros casuais que preenchessem suas horas vazias. Construía amizades frágeis, sustentadas apenas pelo desejo mútuo de fugir da solidão.

— Mas você é feliz? — perguntavam-lhe às vezes.

E ela hesitava antes de responder. Felicidade era um conceito escorregadio. Poderia dizer que sua vida era descomplicada, livre das amarras das responsabilidades familiares. Talvez isso bastasse.

Porém, o destino, com suas reviravoltas impiedosas, a trouxe de volta à cidade natal. O retorno não veio sozinho: trouxe consigo a dor, a responsabilidade, a angústia. O irmão, antes tão cheio de vida, jazia agora entre lençóis de hospital, vítima de um acidente de trânsito. O futuro dele se tornou uma incógnita cruel.

— Vou voltar a andar, não vou? — perguntou ele, certa noite, a voz carregada de medo.

Clara engoliu em seco, sentindo o peso de todas as incertezas do mundo. Como poderia responder?

— Claro que sim… — sussurrou, mas a própria voz soou hesitante, traindo a esperança que tentava transmitir.

Se antes deslizava pelas redes sociais em busca de diversão, agora sua navegação se restringia a pesquisas sobre produtos ortopédicos, tratamentos, alternativas. Suas saídas eram para hospitais, para resolver pendências familiares, para despedir-se de conhecidos que partiam.

— E você? Está feliz? — insistiu um velho amigo, ao encontrá-la depois de tanto tempo.

Clara desviou o olhar. Como poderia dizer que, mesmo servindo ao próximo, um vazio persistia dentro dela? Nunca encontrara alguém com quem pudesse compartilhar suas inquietações mais profundas. Sentia, dia após dia, que se doava mais do que recebia, que valorizava os outros mais do que era valorizada.

O irmão segurou sua mão com força inesperada.

— Obrigado por estar aqui — murmurou.

E naquele instante, Clara percebeu: talvez sua dor não fosse tão solitária. Talvez, na partilha do sofrimento, houvesse um eco de pertencimento. Mas felicidade? Não, essa ainda lhe escapava como um vento distante.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Ano da serpente de Madeira

 Sob a Luz da Serpente de Madeira

Feliz Ano Novo Chinês! Que a serpente de madeira deslize com sabedoria pelo caminho de sua vida, guiando suas escolhas com a luz dos ancestrais. Que sua jornada seja firmada no esforço próprio, tal como fez seu avô, enraizada no amor à pátria, ao trabalho e à linhagem que o antecede. Pois é na honra aos que vieram antes que encontramos as raízes que nos sustentam, e é no labor diário que moldamos o destino com as próprias mãos.

Que os ventos do tempo tragam, além da prosperidade, a clareza para compreender que a vida não é feita apenas de deveres, mas também de pausas. Pois conhecer-se é a mais alta arte da sabedoria, e equilibrar trabalho e descanso é um dom tão raro quanto precioso.

Se nos foram vedados os néctares que entorpecem a mente, é porque o destino nos reservou outro presente: a bênção do vigor e a chama da disposição para construir. Saúde e trabalho são os amigos mais leais; se temos ambos, o resto se ajeita, como o rio que encontra seu curso mesmo entre as pedras. Que assim seja, sob o olhar atento do destino, no ciclo incessante da vida.

sábado, 18 de janeiro de 2025

O Bolo na Pia


Não dá para acreditar. Passei semanas economizando, juntando moedas e cortando pequenos luxos, só para comprar um bolo de fubá para minha irmã. Nada extravagante, apenas um gesto simples para marcar seus 66 anos de vida. Vinte reais foi o que consegui gastar, o bastante para trazer um pouco de doçura ao dia dela.

Quando lhe entreguei o bolo, com um sorriso tímido, murmurei: "Sessenta e seis anos merecem um bolinho."

Ela olhou o bolo com um olhar vazio, quase de desprezo, e sem emoção disse apenas:

— Coloca lá na pia.

E virou-se, como se meu gesto fosse nada mais do que um incômodo qualquer. Não provou do bolo, não comentou, não sorriu. Apenas o bolo, esquecido na pia, enquanto eu segurava o peso de uma mágoa que crescia no peito.

Fiquei ali, imóvel, sentindo o bolo esfriar junto com meu ânimo. O cheiro doce de fubá parecia agora amargar no ar. Não era pelo bolo, claro, mas pela ausência de reconhecimento. Pela indiferença que doeu mais do que qualquer palavra ríspida.

Talvez o que mais magoa não seja a desfeita em si, mas perceber que gestos simples, vindos do coração, podem ser descartados tão facilmente. E ali, diante da pia, compreendi que nem todo carinho encontra abrigo.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

Herdeira de Palavras, Não de Ações


— Olha, Mariana, não era nada complicado. Era só avisar a inquilina do segundo andar que a mangueira do ar-condicionado caiu. Tá pingando na marquise, pode estragar tudo! — disse Cláudia, com os braços cruzados.

Mariana suspirou, ajeitando os papéis sobre a mesa.

— Eu ia ligar, Cláudia, mas apareceu tanta coisa... E, sinceramente, isso não era prioridade.

— Prioridade? Mariana, você não fez nem o básico. Nem avisou a ex-companheira do teu pai que ela não pode mais receber os aluguéis. Isso era sua obrigação! — Cláudia elevou o tom, a impaciência crescendo.

Mariana rebateu, com a voz mansa, mas firme:

— Eu só acho injusto. Ela ficou com meu pai por anos. Você queria que eu simplesmente jogasse isso na cara dela?

Cláudia respirou fundo, conteve-se.

— Mariana, isso não é questão de justiça. É a lei. Esses bens foram adquiridos antes da tal união estável. Ela não tem direito.

Mariana desviou o olhar, mexendo distraidamente no celular.

— E quanto aos inquilinos com aluguéis atrasados? Também não era prioridade?

— Eu não gosto de cobranças. As pessoas estão passando por momentos difíceis.

Cláudia deu uma risada curta, sem humor.

— Difícil está sendo pra nós manter isso aqui funcionando! E ainda tem o advogado. Você fica discutindo com ele como se fosse especialista.

Mariana se levantou, irritada.

— Ele é lerdo! Não faz como eu peço!

— Ele faz como a lei manda, Mariana! Não como você quer.

O silêncio pairou por um instante. Mariana, cabisbaixa, murmurou:

— Eu não pedi pra cuidar disso tudo.

Cláudia suavizou o tom.

— Não pediu, mas aceitou. Então faz direito. Ou entrega pra quem sabe.

Mariana permaneceu quieta, olhando pela janela. A mangueira do ar-condicionado continuava pingando, lenta e constante, como um lembrete silencioso de tudo o que ainda precisava ser feito.

domingo, 12 de janeiro de 2025

Gildinho: O Eterno Monarca da Tradição Gaúcha


No compasso da gaita e na firmeza do violão, Gildinho fez ecoar pelos campos e serras a alma do povo gaúcho. Do Sul ao Sudeste, suas canções atravessaram fronteiras, levando consigo a essência de um povo guapo, forjado no calor dos galpões e nas frias madrugadas de mate e prosa.

Para nós, do Sudeste, suas melodias foram como vento minuano que sopra forte, trazendo o cheiro da terra molhada e o som dos cascos que riscam o chão. Gildinho não apenas cantou o Rio Grande do Sul — ele o apresentou ao Brasil com respeito, orgulho e verdade.

Os Monarcas, sob seu comando, tornaram-se ponte entre culturas, nos ensinando a valorizar o trote cadenciado de um cavalo crioulo, a dança leve da chula e a poesia das milongas. Cada acorde, cada verso, foi uma janela aberta para a beleza rude e sincera do pampa.

Hoje, o silêncio de sua gaita deixa saudade, mas a gratidão ecoa mais alto. Obrigado, Gildinho, por semear no coração de cada brasileiro o amor pela tradição gaúcha. Seu legado permanece, vibrante como um fandango de galpão, eterno como a história que você ajudou a construir.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

Homenagem Pecuraista

 

Se ainda estivesse caminhando sob o céu largo e azul da terra que tanto amou, guiando com a calma de quem entende os ritmos da natureza o seu rebanho de gado Gir, ele completaria, neste 6 de janeiro de 2025, noventa anos de vida. Foram sessenta e cinco desses anos mergulhados no labor silencioso e constante com o gado leiteiro, onde cada amanhecer trazia a promessa de um novo dia de trabalho e cada entardecer carregava o peso doce do dever cumprido.

Lá, no pedaço de chão que escolheu para plantar suas raízes, ele ergueu com firmeza a bandeira do aprimoramento da raça. Do seu esforço, brotou mais do que leite e carne: brotou sustento, brotou vida. Alimentou a própria família e, sem saber, também colocou alimento na mesa de tantas outras, gente simples que talvez nunca ouviu seu nome, mas se nutriu da dedicação silenciosa que ele depositava em cada jornada.

Benditos sejam esses bovinos de olhar sereno e passos lentos, que oferecem ao homem tudo o que têm. Em vida, o leite que fortifica; depois, a carne que sacia, o couro que protege, e até os pequenos detalhes que passam despercebidos, mas que acompanham a vida: a bolsa que guarda segredos, o calçado que conhece caminhos, o botão que prende e enfeita.

Benditos, também, sejam os criadores. Gente que, como ele, entrega a própria existência à terra e aos animais, guardiões fiéis de um ciclo sagrado que une o campo à mesa, a natureza ao lar. Homens e mulheres de mãos calejadas e corações firmes, que continuam a mover o mundo em silêncios respeitosos e gestos seguros.

E assim ele segue vivo. Nos cantos da memória de quem o conheceu, no leite que escorre nas canecas, na carne que perfuma a cozinha, ele permanece. Como as raízes de uma árvore que, mesmo invisível aos olhos, segue forte, sustentando o solo, alimentando a vida.