domingo, 31 de agosto de 2025

Agosto, o Silêncio que Respira

 


O último dia de agosto escorria pelas janelas como uma lágrima tímida. O céu, de um cinza pálido, parecia refletir o que havia dentro dela: um cansaço antigo, uma solidão que não sabia mais nomear.

Ela caminhava pela praça, onde as folhas secas dançavam ao vento como se zombassem da imobilidade dos seus dias. Sentou-se num banco de madeira gasto, e ali, como quem conversa com o tempo, murmurou:

— Agosto... mais um mês que termina sem que ninguém tenha notado minha existência.

Um senhor de chapéu, que lia um jornal ao lado, levantou os olhos por um instante. Ela tentou sorrir, mas ele apenas voltou à leitura, como se o mundo tivesse decidido que ela era invisível.

— Dizem que agosto é o mês do desgosto — ela continuou agora falando com o vento. — Mas para mim, todos os meses são iguais. A solidão não tem calendário.

Uma jovem passou com um grupo de amigos, rindo alto. Ela tentou se aproximar, puxar conversa:

— Que dia bonito, não é?

— Uhum — respondeu a moça, sem parar de andar.

Silêncio. Sempre o silêncio. Como se suas palavras fossem feitas de fumaça.

Ela voltou a olhar para o chão, onde uma formiga carregava um pedaço de folha maior que ela.

— Eu tento, sabe? Tento me encaixar. Não me visto melhor que ninguém, falo das mesmas coisas... mas parece que minha presença incomoda. Ou pior: não é sequer notada.

Um rapaz sentou-se ao seu lado. Ela respirou fundo. Talvez... talvez fosse diferente.

— Oi — disse ela, com um sorriso que carregava esperança.

— Oi — ele respondeu, olhando o celular. — Só esperando alguém.

Ela assentiu, tentando não parecer decepcionada. Mas ele se levantou antes que o tempo pudesse criar qualquer ponte.

— Toda mulher tem uma história de amor, não tem? — ela disse ao banco vazio. — Um homem que corre atrás, que insiste, que vê nela algo único. Mas comigo... no primeiro não, eles somem. Como se eu fosse feita de névoa.

O céu começou a escurecer. Agosto se despedia com um vento frio e um sussurro de folhas.

Ela se levantou, abraçando a si mesma.

— Talvez eu seja feita de silêncio. E o mundo, de barulho demais pra me ouvir.

E caminhou, como quem dança com a ausência, deixando atrás de si apenas o som leve dos passos e um perfume de saudade.

domingo, 24 de agosto de 2025

O Arco-Íris no Chão

 

Era pouco depois das sete da manhã quando a luz entrou — não invadindo, mas pedindo licença pelas frestas da persiana mal abaixada. No minúsculo apartamento do quarto andar, entre uma pilha de livros esquecidos e uma planta que ainda insistia em crescer, algo aconteceu. Um feixe de luz atravessou o copo de vidro deixado na mesa da noite anterior e se partiu em sete. Um arco-íris, tímido e pequeno, se desenhou no chão.

O morador do 7 — nome irrelevante para esta história — estava sozinho, como sempre. A solidão já era mobília antiga, mais presente que a geladeira ou o sofá manchado. Mas aquela manhã era diferente. O homem, em sua rotina exata de silêncio e café preto, parou. Havia um arco-íris no chão do seu apartamento.

Na física, sabemos: é apenas refração da luz. Mas no coração, era mais.

As três maiores religiões monoteístas também acreditam que arco-íris não são só fenômenos ópticos. No judaísmo, o arco-íris é pacto — o sinal de Deus a Noé de que nunca mais destruiria a Terra com um dilúvio. Um lembrete de que mesmo após o fim, há promessa de recomeço.

No cristianismo, é ponte entre o divino e o humano. Um céu que se dobra para tocar o chão, como se Deus quisesse lembrar ao homem que ainda está por perto, mesmo quando tudo parece em ruínas.

No Islã, embora o arco-íris não tenha a mesma centralidade, há a reverência às cores como manifestação da criação. O profeta Muhammad teria falado sobre os sinais de Allah em tudo — e quem vê um arco-íris sem sentir reverência talvez precise reaprender a olhar.

Entre os povos originários das Américas, o arco-íris também foi mais que cor. Para os maias, era ligado à deusa Ix Chel, senhora da lua, da fertilidade e dos ciclos da vida — um presságio de mudança. Para os incas, ponte para o mundo espiritual. E os astecas viam nele um sinal de comunicação entre os deuses e a terra. Um código secreto em cores.

Deitado no chão, com os olhos fixos naquele fragmento de luz colorida, o homem não pensava em tudo isso — mas talvez sentisse. A beleza sem motivo, a aparição breve, a lembrança de que algo fora do comum ainda pode acontecer, mesmo num espaço de 28 metros quadrados.

Quando o sol girou e o arco-íris se desfez, ele permaneceu ali mais um tempo. Sabia que não voltaria amanhã, ou talvez nunca mais. Mas bastou um. Um arco-íris no chão. Um instante de paz. Um pacto silencioso com algo maior — fosse Deus, fosse a luz, fosse ele mesmo.

domingo, 17 de agosto de 2025

Minha mãe, minha prisão

Mãe, Minha Prisão

Dizia-se, nos velórios da cidade, que a morte de uma mãe era o maior pesadelo que podia atingir um filho. E, quando pequenos, isso parecia incontestável: mãe era colo contra os trovões, era leite que curava febres, era oração contra o escuro. Mas a vida, com sua ironia secreta, ensinava que havia presenças mais sufocantes que ausências.

Lia sempre acreditara que os filhos lhe pertenciam. Dois meninos, tão dela quanto os anéis herdados da avó. Desde cedo, aprendeu a enredá-los em torno de si. A psicologia daria nome: síndrome de enredamento familiar. Os vizinhos, porém, chamavam apenas de zelo.

Na infância, o mais velho não podia brincar no quintal sem que a mãe vigiasse da janela. O caçula nunca pôde dormir na casa de um amigo. “Mãe é o mundo inteiro”, dizia Lia, enquanto lhes afagava os cabelos. Eles acreditavam. E, assim, aprenderam que desejar algo além dela era quase pecado.

Certa vez, aos onze anos, o caçula ousou pedir:
— Mãe, posso ir ao acampamento da escola?
Lia ergueu os olhos da costura.
— E deixar sua mãe sozinha? Deus me livre! Você não precisa dessas coisas para ser feliz.
— Mas todos vão... — insistiu ele, num fio de voz.
Ela suspirou fundo, como quem carrega o peso do mundo.
— Então vá. Se quiser me ver morta de tristeza, vá.

O menino calou. E naquela noite aprendeu que seus sonhos tinham o poder de feri-la. Mais tarde descobriria, nos livros de psicologia, que aquilo era chamado de culpa introjetada. Na vida real, chamava-se silêncio.

Os anos passaram. O mais velho mudou-se para outro estado, mas nunca cortou o cordão. Ligava diariamente, como se respirasse pelo pulmão da mãe. O caçula ficou, guardando passaportes sem carimbos e diplomas não usados. Quando recebeu uma proposta de trabalho no exterior, vacilou dias até revelar.

— Mãe, eu recebi uma oportunidade fora do país... — murmurou, com medo da própria coragem.
Lia ajeitou o lenço no pescoço e ergueu a voz.
— Você vai me abandonar, é isso?

Ele tentou argumentar:
— Não é abandono, mãe. É vida. A minha vida...

Mas o silêncio dela, carregado de lágrimas calculadas, foi sentença.

Numa ligação, o irmão tentou consolá-lo:
— Aguente firme, mano. Você sabe como a mãe é... sempre precisou de nós para existir.
O caçula respondeu, com amargura:
— Precisar não é viver. É aprisionar. Ela nunca nos viu como filhos, mas como extensão dela mesma.
Do outro lado, o mais velho suspirou.
— Talvez seja isso. Nunca cortamos o cordão.

Lia, que ouvira a conversa por trás da porta, irrompeu furiosa:
— E quem disse que pedi para nascerem? Já que vieram, o mínimo é ficarem comigo!

Era a velha dinâmica da dependência narcísica: a mãe que não sabia existir sem se abastecer dos filhos. E eles, reféns da culpa, aceitavam.

O acidente de Lia — quedas, ossos frágeis, visão turva — apenas consolidou as correntes. Agora, além da culpa, havia cadeira de rodas, remédios, exames. “Não quero estranhos me tocando”, repetia, recusando cuidadores. “Vocês são meus braços, meus olhos, minha vida.”

Eram frases de amor ou de cárcere? Os filhos nunca souberam responder.

Quando a morte finalmente se aproximou, não veio como pesadelo, mas como alívio. A vizinhança dizia: “Que filhos dedicados!”. Poucos percebiam que a dedicação era grilhão, não escolha. No velório, o caçula chorava, mas seu peito, em segredo, respirava. A psicologia chamaria de luto ambivalente: dor e liberdade no mesmo sopro.

— Ela se foi... — murmurou o irmão mais velho.
— Ela se foi, mas continua aqui dentro, como corrente, — respondeu o caçula, tocando o peito. — Será que um dia a gente vai conseguir existir sem medo?

Na velhice, já homens cansados, conversavam sobre o passado.
— A gente nunca viveu de verdade, — disse o caçula, olhando a chuva pela janela.
— Vivemos sim, mas dentro da vida dela, — replicou o mais velho.

E foi nesse instante que compreenderam, enfim, o diagnóstico tardio: nunca haviam sido donos de si mesmos.

Ainda assim, havia esperança. O caçula começou a escrever memórias, não como vingança, mas como testemunho. Queria que outras famílias reconhecessem os sinais, que outros filhos entendessem a diferença entre cuidado e prisão.

No caderno, rabiscou uma frase que parecia síntese e súplica:

“Amar não é deixar de existir por alguém.”

E naquela frase havia, pela primeira vez, a libertação que nunca vivera em vida.


O Cordão Invisível


Dizia-se, nos velórios da cidade, que a morte de uma mãe era o maior pesadelo que podia atingir um filho. E, quando pequenos, isso parecia incontestável: mãe era abrigo contra os trovões, era o leite e o beijo que curavam febres. Mas a vida, com sua ironia, mostrava que havia presenças mais asfixiantes que ausências.

Lia sempre acreditara que os filhos lhe pertenciam. Desde o berço, tratava-os como prolongamento de si mesma. Ao mais velho, não deixava brincar sozinho no quintal. Ao mais novo, não permitia que dormisse fora de casa, nem mesmo nas festas de aniversário dos colegas. “Mãe é o mundo inteiro”, dizia, enquanto acariciava os cabelos dos meninos.

Na infância, eles acreditaram. Mas, com o tempo, o afeto começou a se confundir com peso. A psicologia chamaria isso de dependência emocional, de invasão dos limites da individualidade. Para os vizinhos, era apenas “zelo de mãe”.

— Mãe, posso ir ao acampamento da escola? — perguntou o caçula, certa vez, aos onze anos, os olhos brilhando de expectativa.
Lia, sem levantar os olhos da costura, retrucou:
— E deixar sua mãe sozinha? Deus me livre! Você não precisa dessas coisas para ser feliz.
Ele insistiu:
— Mas todos vão...
Ela suspirou fundo, como se carregasse o peso do mundo.
— Então vá. Se quiser me ver morta de tristeza, vá.

O menino desistiu, engolindo o choro. Naquele instante, aprendeu que seus desejos eram perigosos, porque podiam ferir quem ele mais amava.

Anos depois, já adulto, recebeu a notícia de uma proposta de trabalho no exterior. Guardou o papel dentro da gaveta, como quem esconde um pecado. Até que, numa tarde cinzenta, não resistiu.

— Mãe, eu recebi uma proposta de trabalho fora do país... — disse, hesitante.

Lia ajeitou o lenço no pescoço, a voz carregada de drama.
— Você vai me abandonar, é isso?

Ele fechou os olhos. O que lia nos livros sobre individuação — o processo psicológico de se tornar quem se é — parecia inalcançável diante dela.
— Não é abandono, mãe. É vida. A minha vida...

O silêncio que se seguiu era mais eloquente que qualquer resposta.

Enquanto isso, o irmão mais velho, já morando em outro estado, continuava fiel ao ritual diário de telefonar para a mãe. Uma vez, ao telefone, aconselhou o caçula:
— Aguente firme, mano. Você sabe como a mãe é... sempre precisou de nós para existir.
— Precisar não é viver, é aprisionar, — replicou o caçula, exasperado. — Ela nunca nos viu como filhos, mas como extensão dela mesma.

Do outro lado da linha, veio apenas um suspiro.
— Talvez seja isso. Nunca cortamos o cordão.

Lia, ouvindo atrás da porta — como tantas vezes fizera —, irrompeu na conversa.
— E quem disse que eu pedi para nascerem? Já que vieram, o mínimo é ficarem comigo.

O peso dessas palavras caiu como uma sentença. A psicologia chamaria de inversão de papéis: quando os filhos se tornam pais da própria mãe, carregando responsabilidades emocionais que nunca deveriam ser suas.

O acidente de Lia — quedas, ossos frágeis, visão turva — apenas consolidou o enredo. Agora, além da culpa, havia a cadeira de rodas, os remédios, os exames. A vizinhança elogiava: “Que filhos dedicados!”. Poucos percebiam que a dedicação era grilhão, não escolha.

E os anos seguiram, entre o amor e a prisão, entre a piedade e o desejo de fuga.

Numa noite de insônia, diante do espelho, o caçula murmurou:
— Amar não é deixar de existir por alguém.

E naquela frase havia, pela primeira vez, um sopro de libertação.


segunda-feira, 11 de agosto de 2025

A Casa das Vozes Baixas

 

Na curva esquecida da estrada, havia uma casa que só cantava à noite. Não era canto de gente — era o sussurro das memórias, o ranger das saudades, o eco dos passos que já não voltam.

Desde que Clara partiu, a casa ficou mais cheia. Cheia de ausência. Os móveis se encolheram, as janelas choravam com a chuva, e o relógio, coitado, parou de contar o tempo. Como se dissesse: “Não há mais depois.”

João, o viúvo, andava pela casa como quem pisa em vidro. Cada canto guardava um pedaço dela — o riso preso na cortina, o perfume esquecido na almofada, a xícara que ainda esperava café. Ele falava com o silêncio, e o silêncio respondia com lembranças.

Às vezes, ele jurava que ouvia Clara chamando seu nome. Não com voz, mas com vento. O vento que entrava pela fresta da porta e bagunçava os papéis da escrivaninha. “João…” dizia o vento. E ele respondia com lágrimas.

O luto era um animal manso e cruel. Dormia ao lado dele, com olhos abertos. Alimentava-se de fotografias e datas. Crescia com o tempo, mas nunca envelhecia.

Numa noite de agosto, João acendeu todas as luzes da casa. Queria espantar a escuridão, mas ela morava dentro. Sentou-se na poltrona onde Clara lia seus romances tristes e, pela primeira vez, falou em voz alta:

“Você ainda está aqui?”

A casa suspirou. As paredes tremeram. E uma brisa morna tocou seu rosto — como um beijo de despedida.

Na manhã seguinte, João abriu as janelas. O sol entrou tímido, como quem pede licença. E a casa, pela primeira vez em meses, ficou em silêncio. Não o silêncio da dor, mas o da paz.

Entre Muitos, Nenhum"

 

No meio da multidão, ela caminhava devagar. Risos estalavam ao redor, luzes piscavam, músicas vibravam. Mas dentro dela, o silêncio era absoluto. Sentou-se no canto mais escuro da praça, observando rostos que não a viam. Era como estar num palco sem papel, num espetáculo onde sua ausência passava despercebida. Voltou para casa antes do fim, sem que ninguém notasse que havia chegado

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Entre Julho e Agosto: a Travessia dos Fortes


Julho, mês de silêncios doces e tardes que parecem não terminar, vai se despedindo devagar, como quem sabe que deixou marcas sutis. O frio fez morada no peito da casa, as xícaras fumegaram confidências, e as mantas guardaram segredos nos pés da cama. Foi um mês de recolhimento, de ouvir o tempo passar pelos galhos secos e confiar que a raiz ainda pulsa, mesmo quando nada floresce à vista.

Obrigada, julho, pelos abraços que demoraram um pouco mais, pelo cheiro de bolo no forno, pelas memórias que vieram visitar à mesa do café. Obrigada pelos dias curtos que ensinaram a importância de cada raio de sol. Por nos lembrar que o calor também vive na lembrança.

E então chega agosto, com sua alma de vento e promessas. O mês que carrega no peito a figura do pai — essa fortaleza silenciosa que nem sempre sabe dizer o amor, mas que constrói caminhos com as próprias mãos.

Agosto é o tempo dos que sustentam — os que não fogem do peso, os que enfrentam a vida como quem segura o teto do mundo para que os outros possam dormir em paz. É tempo de honrar aqueles que amam em silêncio, que protegem mesmo quando a voz falha, que ensinam a firmeza mesmo com o olhar cansado. Pais de sangue, de alma ou de caminhada.

Que venha agosto, com seus dias compridos e seu céu aberto, trazendo a coragem dos que não desistem. Que nos inspire a levantar com mais firmeza, a abraçar com mais intenção, e a agradecer com mais constância.

Porque agosto não é só o mês dos pais. É o mês da força que sustenta, do amor que constrói, da presença que acalma.