quarta-feira, 24 de dezembro de 2025

Por que o abandono de filhotes fêmeas é tão comum?

 

Difícil é ser fêmea. E é irônico pensar nisso. Afinal, é a fêmea que carrega em seu ventre a semente da vida, que oferece alimento, abrigo e segurança ao novo ser. É ela quem sustenta o ciclo da sobrevivência, mesmo em um mundo hostil, onde muitas vezes a regra é dura: para que um viva, outro precisa morrer.

Mas, apesar de tudo isso, o valor da fêmea raramente é reconhecido. E não falo apenas da espécie humana.

Meu irmão, por exemplo, tem uma chácara na periferia. Um espaço que deveria ser de paz, mas que se transformou em refúgio forçado para dezenas de vidas abandonadas. Gatinhas, cachorrinhas, coelhinhas — todas fêmeas. Hoje, ele cuida de trinta gatas, dez cachorras e cinco coelhinhas, todas castradas. Um gesto de amor, mas também de resistência.

Você pode pensar: “Com um muro alto, o problema acabou.” Não. O abandono continua. Pessoas deixam filhotes em sacos amarrados, sem água, sem comida, sem chance. Filhotes são incapazes, dependem da mãe para aprender a caçar, para sobreviver. E, ainda assim, são descartados como se fossem objetos.

As denúncias aos órgãos competentes pouco resolvem. As ONGs, muitas vezes, pedem doações, mas não têm vagas ou voluntários. E então, meu irmão precisou tomar medidas drásticas: câmeras, placas iluminadas, avisos de que abandono é crime. Mas nem isso detém quem age com crueldade.

O mais revoltante é saber que a Prefeitura oferece castração gratuita três vezes ao ano. O problema não é a falta de recursos, mas a falta de responsabilidade. Cuidar de um animal recém-operado exige atenção, carinho, tempo. E muitos preferem se livrar do “incômodo” em vez de assumir o compromisso.

E aqui eu pergunto a você, leitor: até quando vamos fechar os olhos para essa realidade? Até quando o abandono será tratado como algo menor, quando na verdade é reflexo de uma sociedade que ainda não aprendeu a respeitar a vida em todas as suas formas?

sexta-feira, 19 de dezembro de 2025

Cidade Sem Hotel

 

Cheguei de ônibus a uma cidade que não me devia nada e à qual eu não devia explicações. Palestra. O nome soava antigo demais para uma cidade pequena, dessas que cabem numa tarde. Não lembrava por que tinha ido, nem quando decidira ir. Só estava lá — e isso parecia bastar ao mundo.

A rodoviária não se deixava encontrar. Caminhei como quem anda dentro de um pensamento confuso, dobrando esquinas que não levavam a lugar algum. Perguntava, mas as respostas vinham vagas, como se ninguém quisesse ser responsável pelo meu retorno. Hotel também não havia. Na cidade, aparentemente, ninguém dormia fora de casa. Ou ninguém descansava.

Era noite quando aceitei o abrigo. Não por confiança — por cansaço. A loja cheirava a coisa usada, a promessa velha. O casal falava baixo, como quem já decidiu tudo antes. Estenderam colchões no chão, com a naturalidade de quem já fez aquilo outras vezes. Dormiam ali. Viviam ali. Eu me encaixei como mais um objeto deslocado.

Deitei. E foi no instante em que o corpo começou a ceder que ouvi a verdade atravessar o ar.

O homem falava ao telefone como quem negocia mercadoria. Voz prática, sem hesitação. Um cliente, uma mulher, dinheiro. Sem camisinha. Sem rodeios. Sem alma. A mulher era eu — embora ele não tivesse dito meu nome. Não precisava. Em Palestra, mulheres perdidas não têm nome; têm utilidade.

O medo não veio em grito. Veio em silêncio. Um medo lúcido, desses que não paralisa — esclarece. Pensei em falar. Pensei em levantar. Pensei em fugir. Pensei em todas as vezes em que aceitei ficar porque era tarde demais para procurar saída.

Acordei antes do desfecho. Como quem escapa por um triz daquilo que já conhece bem demais.

Há sonhos que não inventam monstros. Apenas organizam os reais. Esse não falava de sexo, mas de atravessamentos. De lugares onde não há hotel porque descanso é um luxo. De cidades onde a hospitalidade cobra o corpo. De noites em que o perigo veste o disfarce da ajuda.

Desde então, desconfio mais do abrigo fácil. E aprendi: quando não há rodoviária, não é porque o mapa falha — é porque alguém espera que você fique.

E ficar, às vezes, custa caro demais.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

Aparar ou arriscar um corte novo: o drama de milhares de mulheres

 

Você já reparou como algumas mulheres tratam seus cabelos quase como uma extensão da própria alma? Talvez você até conheça alguém assim — ou seja essa pessoa. Aquelas que carregam fios longos, pesados, às vezes até um pouco descuidados, mas que, ainda assim, defendem cada centímetro como se fosse patrimônio histórico. Quando finalmente são convencidas a aparar as pontas, chegam ao salão como quem enfrenta um tribunal, e a cabeleireira, coitada, precisa ter o coração forte para suportar o drama.

Do outro lado da tesoura, existem as destemidas. As que, a cada três meses, entram no salão como quem entra em um parque de diversões. Folheiam revistas, trocam ideias, arriscam cortes, cores, formatos. E, curiosamente, já até sabem o que vão ouvir depois: “Nossa, ficou ótimo! Você está uns cinco anos mais jovem, tem que manter assim.” É quase um mantra social, não é? Como se a mudança fosse mais celebrada do que o estilo em si.

Mas por que será que algumas mulheres resistem tanto a cortar o cabelo, enquanto outras o fazem com a leveza de quem troca de roupa? Psicólogos e psiquiatras talvez tenham boas respostas, mas, sinceramente, isso não deveria ser preocupação de ninguém além delas mesmas.

Porque, enquanto discutimos cortes, cores e centímetros, o mundo lá fora anda precisando de atenção em outras áreas. Crianças e adolescentes mergulhando cedo demais na violência, vidas sendo atravessadas por escolhas duras, famílias desestruturadas, comunidades fragilizadas. Há tanta coisa urgente pedindo cuidado que, convenhamos, o tamanho do cabelo de uma mulher deveria ser o menor dos problemas.

No fim das contas, talvez a pergunta mais importante seja outra: por que gastamos tanta energia julgando aparências, quando poderíamos estar investindo na construção de seres humanos mais empáticos, conscientes e comprometidos uns com os outros — e com a natureza que nos sustenta?

E você, leitor, leitora… já parou para pensar no que realmente merece sua atenção hoje?

 

A Dor como Companhia

 

Caro leitor,

o que poderia ser pior do que oferecer aos idosos pobres um momento gratuito de lazer — e, ainda assim, vê-lo recusado?

A proposta era simples e, confesso, feita com o cuidado de quem conhece a pobreza por dentro. Sou trabalhadora braçal, dessas que contam moedas no fim do mês para garantir o pão do dia seguinte. Talvez por isso tenha acreditado que um gesto pequeno pudesse ter algum valor. Consegui, com esforço, uma sala emprestada numa escola municipal e convidei alguns idosos para uma tarde de leitura coletiva. A ideia não era erudição nem fuga da realidade, mas socialização: polinizar conversas, trocar histórias, reconhecer-se no texto curto, simples, parecido com a vida de quem vive contando faltas.

Levei salgadinhos — não por gentileza, mas por lucidez. Quem vive com pouco sabe: sem comida, não há retorno. Estava tudo pronto. O espaço, as leituras, o tempo.

O que não veio foram as pessoas.

Convidei justamente aqueles que mais reclamam da falta de lazer gratuito, da solidão, do abandono, das dores do corpo e da ausência de medicamentos na farmácia do SUS. E ninguém apareceu. Sempre havia uma razão: um esquecimento, um compromisso surgido de última hora, uma justificativa vaga, dessas que não se confirmam.

Foi então que a decepção abriu espaço para a reflexão. Talvez — digo isso como leiga — não seja falta de oportunidade. Talvez seja escolha. Porque ir significaria sentir-se bem. E sentir-se bem exige abandonar, ainda que por algumas horas, a dor que já virou companhia antiga.

Se a reclamação vai embora, o que sobra?

Filhos mal criados? Netos distantes? Um celular que ocupa o lugar da conversa? Jogos eletrônicos que substituem o afeto? Não afirmo — questiono. O que percebo é que os compromissos sempre coincidem exatamente com o dia do encontro. E quem deseja, de verdade, costuma reorganizar a agenda.

Por isso lhe pergunto, caro leitor:
quantas vezes você mesmo tem se boicotado dos momentos simples e agradáveis por medo de perder a dor — essa velha companheira de longa data que, apesar de tudo, dá sentido às horas vazias?

domingo, 7 de dezembro de 2025

Entre Terços, Luzes e Memórias

 


A minha primeira percepção de Natal cabia inteira dentro de um terço. Era assim: noite de vinte e quatro, e também no dia eguinte, todos reunidos para rezar. Longas orações, daquelas que até meu pai, homem firme e impaciente, não conseguia escapar.
E havia o almoço especial: frango ensopado, simples e saboroso. Nada mais. Nenhum brilho, nenhum enfeite, tampouco Papai Noel. E sabe que eu nem sofria? Como sentir falta daquilo que nunca se viu? Eu vivia sem perceber a pobreza — cultural e financeira — que nos rodeava. Era o que era. E ponto.

Quando adolescente, mudei para a cidade e descobri um novo vocabulário natalino: missa do galo, decoração, luzes. Fui, claro, à famosa missa. E, veja só, o galo não cantou. Voltei frustrada. Também não havia dinheiro para decorar a casa, nem para aquela tal ceia que eu apenas ouvira falar. Mas, como antes, eu não sentia falta: desconhecimento também é uma forma de anestesia.

No início da vida profissional, porém, meu repertório natalino ganhou aromas e sabores. A empresa onde trabalhava oferecia uma ceia farta aos funcionários do turno noturno. Eu amava — sem culpa! Trabalhava feliz, e sejamos honestos: era, sobretudo, pela comida diferente e deliciosa. Reclamava quando a regra interna me impedia de trabalhar dois feriados seguidos, porque eu queria repetir a dose. Jovem é assim: sincera até a raiz.

Mais tarde, em outro emprego, desta vez diurno, fui obrigada a pesquisar sobre o Natal. A partir desse estudo, compreendi a grandiosidade dessa festa que, ao que tudo indica, é um dos maiores exemplos de sincretismo religioso e de pluralidade cultural do mundo ocidental.
E, se você me permite, leitor, vou testar aqui a memória e revisitar os muitos elementos que compõem esse mosaico natalino.

Jesus de Nazaré — o aniversariante — nasceu, viveu e morreu como judeu, num tempo em que os judeus sequer tinham o costume de comemorar aniversários natalícios. Celebrar o nascimento de alguém é hábito antigo, mas veio de outras bandas. No Egito, o aniversário do faraó marcava sua transformação em divindade; na Grécia, acendiam-se velas em bolos oferecidos à deusa Ártemis. Os romanos, guerreiros e práticos que são, instituíram as comemorações de aniversários das pessoas comuns.

Do norte gelado da Europa, durante o solstício de inverno, vem outra peça importante desse quebra-cabeça: Odin, o deus nórdico, que percorria o céu montado em seu cavalo de oito patas. As crianças deixavam comida para o animal em suas botinhas — e ganhavam presentes em troca.

Com o avanço do cristianismo e a proibição das festas pagãs, Odin foi aos poucos se transmutando em outra figura: Papai Noel. A generosidade do bispo Nicolau de Mirra ajudou a dar forma ao bom velhinho, que trocou o cavalo por renas, as botas por meias e entrou pelas chaminés como o bispo que lançara dotes pela janela para ajudar três jovens pobres.
Nos Estados Unidos, a Coca-Cola completou o serviço, fixando a imagem que conhecemos hoje.

A árvore de Natal e a guirlanda também são elementos pagãos que foram abraçados pela tradição cristã. E que beleza elas emprestam às ruas, não?
Já o presépio, esse sim, veio pela mão sensível de São Francisco de Assis. E os Reis Magos? Sua origem é incerta, mas a tradição aponta para a Pérsia. Trouxeram ouro para reconhecer o rei, incenso para honrar o divino e mirra para lembrar a humanidade — símbolos que continuam tocando a imaginação até hoje.

E então chegamos ao presente, onde o Natal costuma ser acusado de excessivamente comercial. Mas, se olharmos com calma, veremos que ele também é profundamente inclusivo. É a festa que gera trabalho durante o ano inteiro: da extração da matéria-prima à confecção dos enfeites, do cuidado com os animais ao preparo das bebidas e pratos natalinos. Para muitos, é oportunidade de renda, dignidade e esperança.

As igrejas, por sua vez, oferecem o espaço para o ritual, para o mergulho espiritual e para a mensagem central do Menino Deus: a fraternidade. E as prefeituras que decoram os espaços públicos merecem aplauso, pois o ser humano precisa do belo — e não apenas por capricho.

A neurociência e a psicologia ambiental já comprovaram que lugares cuidados, iluminados e visualmente harmoniosos diminuem indicadores de tristeza e violência, além de aumentar o senso de pertencimento e bem-estar.
O belo nos humaniza. O feio nos endurece. Talvez por isso tantas cidades floresçam em dezembro — e com elas, nós também.

No fim das contas, percebo que o Natal é, acima de tudo, uma celebração inclusiva. Honra um judeu com elementos de culturas diversas, incorpora tradições antigas sem perder a essência da mensagem original: comunhão. Jesus também ceou com seus apóstolos; não é à toa que a ceia se tornou símbolo dessa noite.

O Natal não é apenas espiritualidade: é reflexão, é memória, é adaptação ao tempo presente. E, curiosamente, é também um lembrete do princípio bíblico de ajudar o próximo — porque poucas formas de ajuda são tão dignas quanto oferecer trabalho. O trabalho, afinal, dignifica o homem.

E você, leitor?
Que memórias de Natal lhe visitam quando as luzes se acendem?
Talvez, como eu, você descubra que, no fundo, o Natal sempre esteve menos nas coisas e mais naquilo que elas despertam em nós.

sábado, 6 de dezembro de 2025

O Mistério por Trás do Desejo: Por que Queremos as Coisas dos Outros?

 


Você já sentiu um fascínio repentino por algo que nem sabia que desejava? Pois sente aqui comigo, leitor, que hoje a conversa é sobre esses pequenos magnetismos do cotidiano — e sobre como um pedaço de renda puída ou uma cadeira aparentemente comum podem despertar emoções improváveis.

Era dia de reencontro com minhas amigas veteranas da escola primária. Eu, a “cinquentinha”, era a caçula do grupo — e a única ainda na ativa no mercado de trabalho. Não quis inventar moda: escolhi uma blusa de renda de bilro comprada numa viagem ao Nordeste. Já estava gasta, pedindo aposentadoria, mas decidi dar a ela um último passeio.

Assim que entrei no salão, uma das colegas quase teve um arrebatamento místico. Tocou na minha blusa como quem toca num relicário e disse sentir uma felicidade “inexplicável”, dessas que não cabem nas palavras. Para ela, era a blusa mais linda que já tinha visto. Expliquei que era velha, já puída, mas que poderia dá-la, se quisesse. Ela aceitou com a mesma rapidez com que quem encontra um tesouro aceita a sorte. “Não precisa lavar, eu mesma lavo”, disse. Fiquei chocada — e, confesso, curiosa. A blusa, aquela mesma que nunca arrancou um elogio, nem pela raridade nem pelo preço alto, de repente se transformava em objeto de desejo absoluto.

Entreguei a blusa dias depois, lavada e passada. Achei que o episódio morreria ali. Mas o mundo tem um senso de humor peculiar.

Fui visitar uma amiga enlutada e, sem pensar muito, sentei numa cadeira de madeira ao lado do sofá. Era confortável como abraço de avó. Comentei isso em voz alta. O marido dela, sem hesitar, disse: “Leva. Mandei fazer para a minha sogra. Como ela não está mais entre nós, não faz sentido deixarmos aqui. A cadeira praticamente nem foi usada.” Aceitei, surpresa. Paguei caro pelo carreto. E agora, leitor, olha só a ironia: virei a colega encantada com a blusa. A cadeira me enfeitiçou. Além do conforto, parece carregar uma energia mansa — como se quem senta nela se conectasse a algo antigo, silencioso, bom.

E então chegamos à pergunta inevitável: mistério do mundo ou ciência?

A psicologia comportamental tem uma resposta interessante: o que chamamos de “cobiça” ou “desejo pelo objeto do outro” não nasce apenas do objeto em si. Pesquisas sobre viés de valor atribuído mostram que tendemos a considerar mais valioso aquilo que percebemos como valioso para outra pessoa. É um reflexo social, quase primitivo, estudado por nomes como Robert Cialdini, que descreve como a validação pelo outro aumenta instantaneamente a percepção de qualidade.

Além disso, a neurociência explica que objetos carregam significados emocionais — o chamado efeito halo emocional. Quando vemos alguém demonstrar afeto, entusiasmo ou apego por algo, nossos neurônios-espelho ativam a sensação de que aquele objeto também é especial. Não desejamos a coisa; desejamos a experiência que imaginamos estar vinculada à coisa.

Talvez por isso minha colega tenha sentido “felicidade inexplicável” ao ver uma blusa velha. E talvez por isso eu mesma tenha sentido uma energia diferente ao sentar na cadeira herdada. A ciência chama de viés, ativação cerebral, transferência emocional. A gente, na vida prática, chama de mistério — e gosta de acreditar que objetos guardam histórias invisíveis.

No fim das contas, talvez os dois estejam certos. Porque se há algo que a ciência não explica totalmente — e que a vida insiste em provar — é que algumas coisas chegam às nossas mãos exatamente quando precisam chegar.

E você, leitor, qual foi o último objeto que o escolheu?

 

 

terça-feira, 2 de dezembro de 2025

O Natal e seus símbolos

 

Hoje me pego pensando na complexidade — e na beleza — dos festejos natalinos. É curioso como uma data que celebra o nascimento de Jesus Cristo, um homem judeu que viveu há mais de dois mil anos na Palestina, acabou se transformando numa das maiores festas da humanidade. E, como quase tudo no calendário, o Natal é menos uma criação isolada e mais um mosaico de tradições que o tempo insistiu em costurar.

Celebrar aniversários, por exemplo, não nasceu no presépio. Os egípcios antigos já festejavam o nascimento dos faraós como se celebrassem a chegada de uma divindade. Os gregos, sempre poéticos, ofereciam à deusa Ártemis um bolo redondo adornado com velas — símbolo da luz que ascendia ao céu. Os romanos, práticos como eram, decidiram que não só os deuses, mas também os mortais mereciam a honra de ter seu dia lembrado.

E aí chegamos ao Natal. Mas não antes de fazer uma parada enigmática na figura que mais brilha nos shopping centers: Papai Noel. Antes de vestir o traje vermelho e abraçar a carreira de porta-voz da Coca-Cola, ele foi outra coisa.

Muito antes do “Ho, ho, ho”, havia Odin, o deus nórdico que cavalgava pelos céus durante o solstício de inverno montado em Sleipnir, seu cavalo de oito patas. As crianças deixavam alimentos em suas botas para alimentar o animal. Mas veio o avanço do cristianismo na Europa, e com ele a proibição das festividades pagãs. A solução? Substituir Odin por um santo mais palatável: Nicolau de Mira, o bispo generoso que ajudava os pobres e, segundo a lenda, jogou moedas pela chaminé de uma casa para garantir o dote de três jovens. O gesto deu origem ao costume dos presentes que descem pelos telhados.

Séculos depois, já nos anos 1930, a Coca-Cola desenhou o bom velhinho de roupa vermelha, bochechas rosadas e sorriso de propaganda. Assim se consolidou o Papai Noel que hoje conhecemos — um híbrido improvável de um deus nórdico, um bispo turco e uma campanha publicitária norte-americana.

Mas o Natal vai muito além desses cruzamentos culturais. Ele se expressa também nos símbolos que ocupam nossas casas, cada qual carregando uma história que persiste:

  • A árvore de Natal, sempre-verde, lembra a vida que resiste ao inverno e a esperança que insiste em ficar.
  • A estrela, no topo, aponta o caminho — como a Estrela de Belém guiou os Magos.
  • As velas representam a luz divina que rompe as trevas.
  • Os anjos, mensageiros, reforçam a proteção.
  • Os sinos anunciam alegria.
  • A guirlanda na porta simboliza boas-vindas e continuidade.
  • A ceia reafirma a comunhão.
  • A Missa do Galo, tradição que remonta à Idade Média, marca a passagem simbólica da noite para o nascimento da luz — e celebra o encontro da fé com a madrugada.

·         O conjunto do presépio

·         Representa a humildade do nascimento de Jesus e a ideia de que o sagrado pode nascer nos lugares mais simples. É um símbolo de paz, acolhimento e humanidade.

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Nada disso aconteceu de uma vez. Foram milênios de histórias, crenças e ressignificações que se empilharam até formar aquilo que hoje chamamos simplesmente de “Natal”.

E é assim que dezembro se torna um mês paradoxal: religioso para uns, cultural para outros; turístico para cidades que investem em luzes; econômico para quem depende de vendas; afetivo para quem reencontra família; reflexivo para quem revisita memórias.

No fim das contas, celebrar o Natal é abrir espaço para tudo isso ao mesmo tempo — e aceitar que a festa que homenageia um menino judeu nascido no Oriente acabou se tornando um espetáculo global, multicolorido, e talvez por isso mesmo tão humano.