domingo, 19 de outubro de 2025

O Filho que Não Pode Crescer

 

Se na primeira crônica falamos do filho como investimento, hoje tratamos do filho como ativo de longo prazo. E como todo bom ativo, ele precisa ser mantido — não educado, não emancipado, mas mantido. Crescer demais pode ser perigoso. Trabalhar, então, é quase um ato de rebeldia.

A nova estratégia é simples: manter o filho em estado de estudante crônico. Não importa se ele aprende, importa se está matriculado. Faculdade? Sim, desde que seja aquela que não exige presença. Curso técnico? Claro, desde que não interfira nos horários de sono. O importante é o certificado de matrícula, aquele papel mágico que prolonga a pensão até os 25 anos. É o novo RG da dependência.

A mãe, gestora desse fundo de pensão emocional, sabe que estimular o filho a trabalhar pode ser um tiro no pé. Afinal, um filho com salário é um filho com autonomia. E autonomia, nesse contexto, é prejuízo. Melhor mantê-lo em casa, com Wi-Fi, videogame e um discurso pronto: “Estou focado nos estudos”. Estudo esse que, curiosamente, nunca termina.

O pai, por sua vez, paga. Paga porque ama, paga porque a lei manda, paga porque não quer brigar. E o filho, esse eterno adolescente de barba feita, vive entre a creche emocional e o cofre judicial. Não precisa trabalhar, não precisa se formar, não precisa sair de casa. Basta existir — e estar matriculado. O custo da imaturidade planejada
O resultado? Uma geração que chega aos 30 sem saber o que é um contracheque, sem entender o valor de um esforço, sem ter enfrentado a vida sem rede de proteção. São adultos com corpo de homem e alma de dependente. E tudo isso em nome de uma pensão que, ironicamente, deveria ser ponte — e virou prisão.

A reflexão que incomoda
Estamos criando filhos ou dependentes? Educando cidadãos ou cultivando pensionistas? Porque no fim, o que parece proteção pode ser sabotagem. E o amor, quando confundido com controle, deixa de ser afeto e vira estratégia.

 Boa leitura e boa digestão. Porque domingo também é dia de encarar verdades que ninguém quer imprimir.

 

 

O Pequeno Investimento de Longo Prazo

 

Era uma vez, em um país tropical abençoado por Deus e bonito por natureza, onde o amor sempre teve um quê de estratégia e o romantismo, um leve aroma de contrato social. Casar por amor? Claro, desde que o amor venha com escritura, pensão e, quem sabe, um carro quitado.

Nos tempos de nossas avós, o plano era simples e eficaz: engravidar solteira. Bastava um deslize calculado e pronto — o pai da moça, armado de honra e espingarda, resolvia tudo no altar. O futuro da jovem estava garantido, com sobrenome novo e um marido que, mesmo relutante, agora era patrimônio consolidado. O bebê? Um bônus. A barriga era o boleto, o casamento, o pagamento.

Com o passar dos anos, a legislação evoluiu e, com ela, a criatividade. Veio o divórcio, a pensão alimentícia e o novo mantra: “filho é investimento”. Engravidar virou estratégia de carreira. E por que parar em um pai, se o mercado oferece vários? Multiplicaram-se os genitores, cada um contribuindo mensalmente com seu quinhão. Três criança, três pensões. É o milagre da multiplicação — não dos pães, mas dos boletos pagos.

E agora, em tempos de afetividade líquida e vínculos flexíveis, surge o pai afetivo. Aquele que não gerou, mas amou. E amar, como sabemos, tem consequências jurídicas. O afeto virou débito automático. Some-se a isso o Bolsa Família e temos o combo perfeito: uma criança que rende mais que poupança. Biológico, afetivo e governo — três fontes de renda para um único CPF mirim.

Enquanto isso, o pequeno herdeiro passa os dias na creche, financiada pelo município, e os fins de semana são divididos entre os pais. A mãe? Livre para empreender, estudar ou simplesmente descansar. Afinal, criar filhos nunca foi tão fácil — desde que se saiba jogar com as regras do sistema.

Mas antes que alguém se ofenda, vale lembrar: esta crônica não é sobre todas as mulheres, nem sobre todas as mães. É sobre um fenômeno social que escancara as brechas de um sistema que, em nome da proteção, virou palco para estratégias de sobrevivência — e, por vezes, de oportunismo.

A pergunta que fica é: quando o afeto virou moeda? E o que acontece com a criança quando ela deixa de ser investimento e vira adulto — sem pensão, sem creche, sem bônus?

Porque no fim, o que parece vantajoso hoje pode ser apenas mais uma conta a vencer amanhã.

Boa leitura e boa reflexão. Porque domingo também é dia de pensar.

quarta-feira, 15 de outubro de 2025

O segredo da bolsa

 Um frio súbito percorreu-lhe a espinha quando Ana pisou na antiga estação de trem — palco onde, décadas antes de seu nascimento, seu avô partira para nunca mais regressar.

O vento parecia sussurrar segredos que o tempo não ousara apagar.

Avistou, ao longe, a casa materna — outrora viva em risos e perfumes, agora muda, cansada de esperar.
A mãe, outrora atriz de palcos luminosos, terminara seus dias como sombra de si mesma, esquecida pela crítica e pelo público, mas fiel às próprias ilusões.
Vivendo de lembranças, encenava para as paredes o que o mundo negara aplaudir.

— A chave está embaixo do tapete! — bradou o vizinho, fechando o portão como quem fecha um coração.

Ao girar a fechadura, um hálito de pó e maquiagem antiga subiu-lhe às narinas. O ar estava saturado de perfumes vencidos, lágrimas secas e aplausos imaginários.
— Mãe... onde você está?

Nenhuma resposta. Apenas o eco dos próprios passos.
No quarto, sobre a penteadeira descascada, repousava uma pequena urna improvisada. A inscrição tremida dizia:
Beatriz de Alencastro — 1942–2024.
Ao vê-la, o peso do abandono caiu sobre Mirela como um pano de veludo negro.

— Perdão, mãe, por tê-la deixado sozinha na última cena — murmurou.

Com mãos trêmulas, retirou os brincos e o colar, cortou os cabelos e vestiu-se de luto. Cumpriria o ritual do esquecimento, como quem apaga os refletores de um teatro.
Entre caixas de figurinos e roteiros amarelados, encontrou uma bolsa de couro gasto, costurada à mão, objeto que sempre acompanhara a mãe nas turnês e que agora guardava o mistério de um passado não ensaiado.

Passou os dedos pela superfície ressecada, mas a bolsa, velha de tantas viagens, rasgou-se ao toque.
De dentro, como relíquia do acaso, surgiu uma pequena bota infantil e um colar de ouro, guardado entre panos finos.

— Mãe... o que mais escondias de mim?

Dentro da bota havia uma carta, dobrada com precisão de atriz que sabe o valor da última fala. Ana a desdobrou, e a letra trêmula de Beatriz ressuscitou no papel:

“Minha filha,
Quando te encontrei à porta do camarim, envolta em panos, o mundo desabava sobre mim. Eu, que perdera o papel principal e a esperança, ganhei de súbito o sentido da vida.
Foste entregue a mim como bilhete do destino.
Talvez desejes buscar tua origem — que seja, mas leva contigo este colar, talismã de sorte e de perdão.
Se o teatro é mentira, o amor é a única verdade que resta.
Tua mãe, Beatriz.”

Ana levou o colar ao peito, sentindo que a joia pulsava como um coração exilado.
As lágrimas lhe turvaram a visão quando um toque à porta a trouxe de volta ao mundo.

— Procuro Beatriz de Alencastro — disse um homem grisalho, de voz grave.
— Ela se foi. Restam apenas lembranças.
— E a filha dela, Ana?
— Sou eu.

— Vim buscar a bolsa que lhe deixei anos atrás. —
Hesitante, ela mostrou o objeto rasgado. O homem tocou o couro, como quem acaricia um passado que já doeu demais.

— Dentro dela costurei um segredo. — Retirou um pequeno papel, escondido no forro, e leu em voz embargada:

“Sou músico errante. Minha esposa morreu no parto.
Peço à atriz Beatriz que crie minha filha, até que o destino me permita reencontrá-la.”

O silêncio que se seguiu foi denso como cortina prestes a cair.
O homem ergueu os olhos marejados:
— Cumpri minha pena e minha promessa. Vim buscá-la, Ana.

Ela o fitou em espanto. Tudo o que sabia sobre si mesma desfez-se como cenário de teatro ao fim do espetáculo.
Entre a luz e a sombra, o som e o silêncio, compreendeu-se filha de duas ruínas e de uma redenção.

terça-feira, 7 de outubro de 2025

Desabafo de uma inicialmente


Humilhação. Eis aí uma palavra que deveria vir estampada na capa de qualquer manual de sobrevivência artística. Se você sonha em ser escritor, prepare-se: não é só o coração que vai sofrer, é o pulso também — tendinite é praticamente um troféu da profissão.

A vida do aspirante a escritor é uma mistura de fé cega com masoquismo refinado. A gente passa horas em frente ao computador, escrevendo com a mesma dedicação de quem está salvando o mundo, só que sem o reconhecimento, sem o salário, e sem o mundo salvo. No máximo, salva-se um arquivo em .docx.

E quando finalmente se termina um livro — aquele filho literário que você gerou com dor, suor e café — vem a parte mais cruel: ninguém quer comprar. Nem de graça. Distribuir é um ato de generosidade que beira o desespero. E mesmo assim, o leitor olha a capa, vira o nariz e pergunta: “Mas esse autor é famoso?” Não, meu querido, não sou. Mas o texto é bom. Só que no Brasil, talento sem fama é como Wi-Fi sem senha: ninguém acredita que existe.

A saída? Concursos literários. Antologias. A esperança de ser selecionado e, com sorte, poder comprar o próprio livro. Sim, você leu certo: comprar o próprio livro. Porque ser publicado não significa que você vai receber um exemplar. É tipo ser convidado pra festa e ainda ter que levar o bolo.

Pois bem, fui selecionada. Assinei o contrato com a empolgação de quem acha que agora vai. Dois dias depois, recebo um e-mail da editora. “Relendo seu texto, percebemos que ele não se encaixa no tema do concurso. Poderia enviar outro?” Claro, com todo prazer. Só que não.

Agora estou aqui, encarando o cursor piscando como se fosse um desafio pessoal. A vontade é de não mandar nada. De fingir que não vi o e-mail. De mudar de nome e começar uma carreira como vendedora de tapetes. Mas como sou iniciante, não posso me dar ao luxo de me indispor com quem ainda dá oportunidade aos desconhecidos.

E é nesse momento que entendo por que escritores consagrados se tornam difíceis de lidar. Não é arrogância. É vingança. Vingança por cada texto ignorado, por cada “não se encaixa no tema”, por cada livro que ninguém quis ler — nem de graça.

domingo, 5 de outubro de 2025

Carta aberta sobre o Velho Antero e a crueldade disfarçada de cuidado

 


Aconteceu ontem, aqui mesmo, na nossa cidade. O Velho Antero, de 95 anos, foi retirado de sua casa e internado em um asilo como quem se livra de um móvel antigo. Sem aviso, sem processo, sem respeito. Morava com a sobrinha caçula, Dona Filomena, que, mesmo enfrentando as sequelas de um câncer de mama e vivendo de dietas restritivas, cuidava do tio com dignidade e afeto.

A casa era simples, mas cheia de história. Lá também vivia o irmão mais velho, acometido por um câncer de estômago. Era uma família lutando junta, como tantas outras. Até que, misteriosamente, uma assistente social apareceu e, num estalar de dedos, decidiu que Filomena não podia mais cuidar do tio. Antero foi levado no mesmo dia. Sem tempo para despedidas, sem chance de defesa.

A sobrinha chorou como quem perde um pedaço da alma. E eu, que conheço todos os envolvidos, não consigo tirar da cabeça que essa denúncia partiu de alguém muito próximo. Alguém que se faz de amiga, mas vive às custas dos outros. Alguém que almoça aos domingos, visita na hora do café, e se oferece como ombro amigo quando há comida envolvida. Sim, estou falando da Lívia.

Em tempos de escassez, ela é abundante em oportunismo. E tenho por mim que essa denúncia foi feita com um único objetivo: fragilizar Filomena, para que ela se torne dependente emocional — e assim, mais fácil de explorar. Porque Lívia não convive com pessoas, convive com benefícios. E quando não há mais o que sugar, ela descarta. Como fazemos com o lixo.

O que fizeram com  Antero foi mais do que uma transferência. Foi um ato de violência emocional. Tiraram um idoso do seu mundo, dos seus afetos, e o colocaram entre estranhos. E tudo isso com uma rapidez que não se vê nem quando alguém realmente precisa de uma vaga em um asilo.

Essa carta é um grito. Um alerta. Um pedido de consciência. Que não deixemos que o cuidado seja usado como desculpa para a crueldade. Que não permitamos que os nossos idosos  sejam tratados como objetos. E que, acima de tudo, saibamos reconhecer os parasitas emocionais que se alimentam da dor alheia.

Assinado:
Alguém que viu, sentiu e não vai se calar.

 

O Despacho do Velho Antero

 

 Na cidade onde até os pardais parecem cochichar segredos, aconteceu um episódio digno de novela mexicana — daquelas que passam depois do almoço, quando o calor faz a gente duvidar da própria sanidade. O protagonista? Velho Antero, 95 anos de pele marcada pelo tempo e pelo câncer, que foi despachado para um asilo como quem manda um sofá velho para o depósito da prefeitura.

Antero morava com a sobrinha caçula, Dona Filomena, mulher de fibra, magra como uma promessa de dieta milagrosa, lutando contra as sequelas de um câncer de mama e contra a inflação que transforma o arroz em artigo de luxo. Filomena cuidava do tio com o que tinha — e, principalmente, com o que não tinha. Ainda assim, mantinha o velho em casa, entre os cheiros familiares e os barulhos conhecidos, como quem protege um pedaço da própria história.

Mas eis que, num dia qualquer, surge uma assistente social. Sim, do nada. Como quem aparece para fiscalizar o uso do sal na feijoada de domingo. E, com uma autoridade que beira o divino, decide que Filomena não pode mais cuidar do tio. Sem aviso, sem conversa, sem café. Antero foi levado para o asilo no mesmo dia. Rápido como quem cancela assinatura de streaming.

Filomena chorou como se tivessem enterrado o tio. E, de certa forma, enterraram mesmo — não o corpo, mas a rotina, os afetos, o direito de envelhecer entre os seus. A notícia chegou até mim pela Lívia, minha vizinha. Ah, Lívia... Se eu fosse dar um apelido, seria “parasita gourmet”. Ela não suga sangue, suga refeições. Almoça aos domingos na casa da Filomena, visita no meio da semana na hora do café, e ainda se faz de amiga quando o cardápio é bom. Já fui vítima. E não fui o único.

Em tempos de carne com preço de joia e pão que parece feito de ouro, Lívia não se constrange. Economiza no mercado e gasta na cara de pau. E foi aí que a pulga atrás da minha orelha começou a coçar. A rapidez com que Antero foi internado, a ausência de processo, a vaga que apareceu como milagre... Tudo muito conveniente. Principalmente para quem gosta de se fazer necessária.

Tenho cá minhas suspeitas — e elas têm nome: Lívia. Aposto que foi ela quem fez a denúncia anônima. Talvez tenha dito que Filomena alimentava o tio com ração de gato. Ou que ele dormia no forno. Não sei. Mas sei que ela é capaz. E mais: capaz de provocar a depressão da amiga só para se oferecer como ombro amigo — desde que o ombro venha com café e bolo.

Crueldade tem muitas formas. Algumas usam salto alto e batom nude. Lívia convive com quem lhe rende algo. Se não rende, ela descarta. Como fazemos com o lixo. E Antero, que viveu quase um século, foi tratado como entulho emocional. Tirado do mundo que conhecia, jogado entre estranhos, como se o afeto fosse um luxo que não cabe no orçamento.

E assim seguimos, numa sociedade onde o velho é peso, a amizade é moeda, e a solidariedade tem prazo de validade — geralmente até a sobremesa acabar.

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

Presentes que brotam


Sem espaço para plantar, uma moradora de apartamento encontrou uma forma criativa e eficaz de contribuir com o meio ambiente: presentear amigos e familiares, que possuem espaço para plantar, com mudas de árvores frutíferas e sementes de hortaliças e flores. A iniciativa, que começou em maio de 2025, tem como objetivo estimular o cultivo doméstico e resgatar tradições alimentares esquecidas.

Durante uma visita ao afilhado, a moradora levou três mudas: laranja vermelha, laranja lima e limão siciliano — este último conhecido pelo sabor marcante e alto valor comercial. Junto às mudas, ela misturou sementes de almeirão japonês à terra, hortaliça resistente e nutritiva que se espalha facilmente pelo vento, mas que nunca é encontrada nos supermercados.

“A população desaprendeu a plantar. Hoje, todo mundo quer comprar, até cebolinha. Se houvesse fartura nas hortas caseiras como antigamente, talvez reclamassem menos”, afirma. Para ela, cultivar alimentos é mais do que uma prática sustentável — é um gesto de autonomia e resistência diante da cultura do consumo.

A ação se estendeu a outros encontros. Em visita à prima, ela levou uma muda de laranja vermelha e sementes de jiló e margaridas. Em uma reunião com idosas, presenteou três participantes com sementes de capuchinha, planta comestível e ornamental. Ao longo do ano, decidiu doar exclusivamente mudas de laranjeiras, como forma de acompanhar o cuidado e o resultado de seu gesto. “São espécies que não se encontram no comércio. Se em 2026 estiverem produzindo, saberei quem cuidou”, explica.

Mesmo sem terra para plantar, a moradora planeja adquirir sementes raras pela internet e produzir mudas em casa. Seu objetivo é claro: resgatar, silenciosamente, a tradição de cultivar alimentos e espalhar raízes de consciência por onde passa.