domingo, 17 de agosto de 2025

Minha mãe, minha prisão

Mãe, Minha Prisão

Dizia-se, nos velórios da cidade, que a morte de uma mãe era o maior pesadelo que podia atingir um filho. E, quando pequenos, isso parecia incontestável: mãe era colo contra os trovões, era leite que curava febres, era oração contra o escuro. Mas a vida, com sua ironia secreta, ensinava que havia presenças mais sufocantes que ausências.

Lia sempre acreditara que os filhos lhe pertenciam. Dois meninos, tão dela quanto os anéis herdados da avó. Desde cedo, aprendeu a enredá-los em torno de si. A psicologia daria nome: síndrome de enredamento familiar. Os vizinhos, porém, chamavam apenas de zelo.

Na infância, o mais velho não podia brincar no quintal sem que a mãe vigiasse da janela. O caçula nunca pôde dormir na casa de um amigo. “Mãe é o mundo inteiro”, dizia Lia, enquanto lhes afagava os cabelos. Eles acreditavam. E, assim, aprenderam que desejar algo além dela era quase pecado.

Certa vez, aos onze anos, o caçula ousou pedir:
— Mãe, posso ir ao acampamento da escola?
Lia ergueu os olhos da costura.
— E deixar sua mãe sozinha? Deus me livre! Você não precisa dessas coisas para ser feliz.
— Mas todos vão... — insistiu ele, num fio de voz.
Ela suspirou fundo, como quem carrega o peso do mundo.
— Então vá. Se quiser me ver morta de tristeza, vá.

O menino calou. E naquela noite aprendeu que seus sonhos tinham o poder de feri-la. Mais tarde descobriria, nos livros de psicologia, que aquilo era chamado de culpa introjetada. Na vida real, chamava-se silêncio.

Os anos passaram. O mais velho mudou-se para outro estado, mas nunca cortou o cordão. Ligava diariamente, como se respirasse pelo pulmão da mãe. O caçula ficou, guardando passaportes sem carimbos e diplomas não usados. Quando recebeu uma proposta de trabalho no exterior, vacilou dias até revelar.

— Mãe, eu recebi uma oportunidade fora do país... — murmurou, com medo da própria coragem.
Lia ajeitou o lenço no pescoço e ergueu a voz.
— Você vai me abandonar, é isso?

Ele tentou argumentar:
— Não é abandono, mãe. É vida. A minha vida...

Mas o silêncio dela, carregado de lágrimas calculadas, foi sentença.

Numa ligação, o irmão tentou consolá-lo:
— Aguente firme, mano. Você sabe como a mãe é... sempre precisou de nós para existir.
O caçula respondeu, com amargura:
— Precisar não é viver. É aprisionar. Ela nunca nos viu como filhos, mas como extensão dela mesma.
Do outro lado, o mais velho suspirou.
— Talvez seja isso. Nunca cortamos o cordão.

Lia, que ouvira a conversa por trás da porta, irrompeu furiosa:
— E quem disse que pedi para nascerem? Já que vieram, o mínimo é ficarem comigo!

Era a velha dinâmica da dependência narcísica: a mãe que não sabia existir sem se abastecer dos filhos. E eles, reféns da culpa, aceitavam.

O acidente de Lia — quedas, ossos frágeis, visão turva — apenas consolidou as correntes. Agora, além da culpa, havia cadeira de rodas, remédios, exames. “Não quero estranhos me tocando”, repetia, recusando cuidadores. “Vocês são meus braços, meus olhos, minha vida.”

Eram frases de amor ou de cárcere? Os filhos nunca souberam responder.

Quando a morte finalmente se aproximou, não veio como pesadelo, mas como alívio. A vizinhança dizia: “Que filhos dedicados!”. Poucos percebiam que a dedicação era grilhão, não escolha. No velório, o caçula chorava, mas seu peito, em segredo, respirava. A psicologia chamaria de luto ambivalente: dor e liberdade no mesmo sopro.

— Ela se foi... — murmurou o irmão mais velho.
— Ela se foi, mas continua aqui dentro, como corrente, — respondeu o caçula, tocando o peito. — Será que um dia a gente vai conseguir existir sem medo?

Na velhice, já homens cansados, conversavam sobre o passado.
— A gente nunca viveu de verdade, — disse o caçula, olhando a chuva pela janela.
— Vivemos sim, mas dentro da vida dela, — replicou o mais velho.

E foi nesse instante que compreenderam, enfim, o diagnóstico tardio: nunca haviam sido donos de si mesmos.

Ainda assim, havia esperança. O caçula começou a escrever memórias, não como vingança, mas como testemunho. Queria que outras famílias reconhecessem os sinais, que outros filhos entendessem a diferença entre cuidado e prisão.

No caderno, rabiscou uma frase que parecia síntese e súplica:

“Amar não é deixar de existir por alguém.”

E naquela frase havia, pela primeira vez, a libertação que nunca vivera em vida.


O Cordão Invisível


Dizia-se, nos velórios da cidade, que a morte de uma mãe era o maior pesadelo que podia atingir um filho. E, quando pequenos, isso parecia incontestável: mãe era abrigo contra os trovões, era o leite e o beijo que curavam febres. Mas a vida, com sua ironia, mostrava que havia presenças mais asfixiantes que ausências.

Lia sempre acreditara que os filhos lhe pertenciam. Desde o berço, tratava-os como prolongamento de si mesma. Ao mais velho, não deixava brincar sozinho no quintal. Ao mais novo, não permitia que dormisse fora de casa, nem mesmo nas festas de aniversário dos colegas. “Mãe é o mundo inteiro”, dizia, enquanto acariciava os cabelos dos meninos.

Na infância, eles acreditaram. Mas, com o tempo, o afeto começou a se confundir com peso. A psicologia chamaria isso de dependência emocional, de invasão dos limites da individualidade. Para os vizinhos, era apenas “zelo de mãe”.

— Mãe, posso ir ao acampamento da escola? — perguntou o caçula, certa vez, aos onze anos, os olhos brilhando de expectativa.
Lia, sem levantar os olhos da costura, retrucou:
— E deixar sua mãe sozinha? Deus me livre! Você não precisa dessas coisas para ser feliz.
Ele insistiu:
— Mas todos vão...
Ela suspirou fundo, como se carregasse o peso do mundo.
— Então vá. Se quiser me ver morta de tristeza, vá.

O menino desistiu, engolindo o choro. Naquele instante, aprendeu que seus desejos eram perigosos, porque podiam ferir quem ele mais amava.

Anos depois, já adulto, recebeu a notícia de uma proposta de trabalho no exterior. Guardou o papel dentro da gaveta, como quem esconde um pecado. Até que, numa tarde cinzenta, não resistiu.

— Mãe, eu recebi uma proposta de trabalho fora do país... — disse, hesitante.

Lia ajeitou o lenço no pescoço, a voz carregada de drama.
— Você vai me abandonar, é isso?

Ele fechou os olhos. O que lia nos livros sobre individuação — o processo psicológico de se tornar quem se é — parecia inalcançável diante dela.
— Não é abandono, mãe. É vida. A minha vida...

O silêncio que se seguiu era mais eloquente que qualquer resposta.

Enquanto isso, o irmão mais velho, já morando em outro estado, continuava fiel ao ritual diário de telefonar para a mãe. Uma vez, ao telefone, aconselhou o caçula:
— Aguente firme, mano. Você sabe como a mãe é... sempre precisou de nós para existir.
— Precisar não é viver, é aprisionar, — replicou o caçula, exasperado. — Ela nunca nos viu como filhos, mas como extensão dela mesma.

Do outro lado da linha, veio apenas um suspiro.
— Talvez seja isso. Nunca cortamos o cordão.

Lia, ouvindo atrás da porta — como tantas vezes fizera —, irrompeu na conversa.
— E quem disse que eu pedi para nascerem? Já que vieram, o mínimo é ficarem comigo.

O peso dessas palavras caiu como uma sentença. A psicologia chamaria de inversão de papéis: quando os filhos se tornam pais da própria mãe, carregando responsabilidades emocionais que nunca deveriam ser suas.

O acidente de Lia — quedas, ossos frágeis, visão turva — apenas consolidou o enredo. Agora, além da culpa, havia a cadeira de rodas, os remédios, os exames. A vizinhança elogiava: “Que filhos dedicados!”. Poucos percebiam que a dedicação era grilhão, não escolha.

E os anos seguiram, entre o amor e a prisão, entre a piedade e o desejo de fuga.

Numa noite de insônia, diante do espelho, o caçula murmurou:
— Amar não é deixar de existir por alguém.

E naquela frase havia, pela primeira vez, um sopro de libertação.


segunda-feira, 11 de agosto de 2025

A Casa das Vozes Baixas

 

Na curva esquecida da estrada, havia uma casa que só cantava à noite. Não era canto de gente — era o sussurro das memórias, o ranger das saudades, o eco dos passos que já não voltam.

Desde que Clara partiu, a casa ficou mais cheia. Cheia de ausência. Os móveis se encolheram, as janelas choravam com a chuva, e o relógio, coitado, parou de contar o tempo. Como se dissesse: “Não há mais depois.”

João, o viúvo, andava pela casa como quem pisa em vidro. Cada canto guardava um pedaço dela — o riso preso na cortina, o perfume esquecido na almofada, a xícara que ainda esperava café. Ele falava com o silêncio, e o silêncio respondia com lembranças.

Às vezes, ele jurava que ouvia Clara chamando seu nome. Não com voz, mas com vento. O vento que entrava pela fresta da porta e bagunçava os papéis da escrivaninha. “João…” dizia o vento. E ele respondia com lágrimas.

O luto era um animal manso e cruel. Dormia ao lado dele, com olhos abertos. Alimentava-se de fotografias e datas. Crescia com o tempo, mas nunca envelhecia.

Numa noite de agosto, João acendeu todas as luzes da casa. Queria espantar a escuridão, mas ela morava dentro. Sentou-se na poltrona onde Clara lia seus romances tristes e, pela primeira vez, falou em voz alta:

“Você ainda está aqui?”

A casa suspirou. As paredes tremeram. E uma brisa morna tocou seu rosto — como um beijo de despedida.

Na manhã seguinte, João abriu as janelas. O sol entrou tímido, como quem pede licença. E a casa, pela primeira vez em meses, ficou em silêncio. Não o silêncio da dor, mas o da paz.

Entre Muitos, Nenhum"

 

No meio da multidão, ela caminhava devagar. Risos estalavam ao redor, luzes piscavam, músicas vibravam. Mas dentro dela, o silêncio era absoluto. Sentou-se no canto mais escuro da praça, observando rostos que não a viam. Era como estar num palco sem papel, num espetáculo onde sua ausência passava despercebida. Voltou para casa antes do fim, sem que ninguém notasse que havia chegado

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Entre Julho e Agosto: a Travessia dos Fortes


Julho, mês de silêncios doces e tardes que parecem não terminar, vai se despedindo devagar, como quem sabe que deixou marcas sutis. O frio fez morada no peito da casa, as xícaras fumegaram confidências, e as mantas guardaram segredos nos pés da cama. Foi um mês de recolhimento, de ouvir o tempo passar pelos galhos secos e confiar que a raiz ainda pulsa, mesmo quando nada floresce à vista.

Obrigada, julho, pelos abraços que demoraram um pouco mais, pelo cheiro de bolo no forno, pelas memórias que vieram visitar à mesa do café. Obrigada pelos dias curtos que ensinaram a importância de cada raio de sol. Por nos lembrar que o calor também vive na lembrança.

E então chega agosto, com sua alma de vento e promessas. O mês que carrega no peito a figura do pai — essa fortaleza silenciosa que nem sempre sabe dizer o amor, mas que constrói caminhos com as próprias mãos.

Agosto é o tempo dos que sustentam — os que não fogem do peso, os que enfrentam a vida como quem segura o teto do mundo para que os outros possam dormir em paz. É tempo de honrar aqueles que amam em silêncio, que protegem mesmo quando a voz falha, que ensinam a firmeza mesmo com o olhar cansado. Pais de sangue, de alma ou de caminhada.

Que venha agosto, com seus dias compridos e seu céu aberto, trazendo a coragem dos que não desistem. Que nos inspire a levantar com mais firmeza, a abraçar com mais intenção, e a agradecer com mais constância.

Porque agosto não é só o mês dos pais. É o mês da força que sustenta, do amor que constrói, da presença que acalma.


quinta-feira, 24 de julho de 2025

A Justiça Segundo Ela


Dona Lúcia — não era esse o nome de batismo, mas foi esse que adotou para o mundo — sempre teve um dom inato: convencer. Convencia com a voz mansa, com o olhar calculado, com o silêncio ensaiado nos momentos exatos. Era o tipo de mulher que dizia "eu só quero o que é justo", enquanto distribuía cartas marcadas na mesa da vida.

Quando conheceu Henrique, ele vinha com passado — dois filhos do primeiro casamento, uma ex-mulher que ainda mandava notícias pelos cadernos escolares e uma herança emocional que ele carregava no bolso como quem leva um retrato amassado. Lúcia não se incomodou. Pelo contrário: olhou para tudo aquilo como quem olha um terreno mal cuidado. Bastava um pouco de paciência e poda estratégica para se tornar propriedade sua.

O casamento durou o suficiente. O bastante para ter dois filhos, para assinar alguns papéis, para reformar a casa e colocar seu nome em tudo o que antes era dele. E quando ela pediu o divórcio, foi com a precisão de um cirurgião: fria, limpa, certeira. Levou os bens mais valiosos e, de quebra, arrancou do homem um pedaço da alma que ele já mal reconhecia no espelho.

Mas não foi só o patrimônio. Lúcia ensinou os próprios filhos — ainda de dentes de leite — a olharem os meio-irmãos como intrusos. Dizia que o pai sempre deu mais a "eles", que a vida era uma disputa, e que quem não tomasse, ficava com migalhas. Aos poucos, os meninos aprenderam a roubar sem tocar: roubavam espaço, afeto, memória. Faziam do silêncio um gesto de posse. Os filhos do primeiro casamento foram sendo excluídos das conversas, das fotos, das datas. Quando restou apenas a frieza dos papéis, Lúcia fez deles escudo e espada.

Anos depois, quando os pais dela morreram, Lúcia ressurgiu como a filha injustiçada. A herança era modesta, mas o discurso era grandioso. “É uma questão de justiça!”, gritava nas reuniões de família. Esquecida de tudo que tomou, agora cobrava centavo por centavo. Enviava e-mails inflamados, citava passagens bíblicas com a destreza de uma profeta do próprio interesse. Era como se, de repente, a moral tivesse descido do céu diretamente sobre seus ombros.

Na mesa da partilha, chorou. Não pelas perdas. Mas pela parte. E quando um dos irmãos ousou lembrá-la de antigos episódios — da forma como tratara os filhos do primeiro casamento de Henrique, da maneira como saíra do divórcio com muito mais do que trouxera — ela se ofendeu. Disse que não era hora de julgamentos. “Isso tudo é passado.”

Lúcia acreditava na justiça — desde que fosse a sua. Desde que lhe rendesse lucro. Desde que confirmasse a narrativa que construiu à base de meias verdades e silêncios convenientes.

Hoje, vive bem. Não rica, mas satisfeita. Os filhos repetem suas frases como mantras: “a vida não dá nada pra quem não toma”. E ela os observa com orgulho, como quem assiste ao resultado de uma obra bem feita.

Mas, às vezes, quando pensa que ninguém está olhando, Lúcia encara o espelho com certo incômodo. Porque a justiça que ela tanto clama ainda não descobriu como premiar quem rouba de forma tão limpa.


sexta-feira, 4 de julho de 2025

A voz de minha mãe


Havia um silêncio bordado de lembranças naquela tarde em que o vento soprou diferente. Não era apenas o balançar das árvores ou o farfalhar das folhas secas na calçada. Havia algo ali — algo delicado, quase imperceptível — que me chamava sem urgência, como quem sussurra segredos antigos aos ouvidos do tempo.

Foi então que eu ouvi.

Uma voz no vento. Suave, distante, feita de bruma e melodia. Ela vinha como um sopro vindo do mar, carregando histórias que nunca foram ditas, mas que sempre habitaram dentro de mim. Era uma canção sem letra, um murmúrio que lembrava infância e ausência, uma ternura que não se explicava — só se sentia.

Lembrei-me de quando minha mãe cantarolava distraída na cozinha, sem saber que sua voz trançava afetos no ar. As janelas abertas, o sol desenhando sombras nas paredes, o rádio tocando Leila Pinheiro com aquela suavidade que parecia conversar com o vento. Era como se a própria casa respirasse a música, como se cada canto soubesse guardar os ecos de um amor que ainda não tinha nome.

Hoje, tantos anos depois, essa mesma voz volta com o vento. Não sei se é lembrança, imaginação ou presença. Talvez seja tudo isso junto. Uma saudade que não dói, mas embriaga. Uma memória que não pede explicações — apenas companhia.

A música falava de silêncio, de ausências que não se explicam, de espaços deixados por alguém que partiu, mas não foi embora de verdade. E naquele momento, entendi: certas vozes nunca desaparecem. Elas se escondem no som das conchas, no assobio das esquinas, na brisa que vem ao entardecer. Elas voltam sempre que o coração se abre ao sutil.

Fechei os olhos, e por um instante, fui outra vez aquela criança encostada na varanda, ouvindo o mundo como quem escuta uma promessa. A voz continuava ali, dançando entre as folhas, misturada ao cheiro da terra molhada, ao tempo que passou devagar.

Era ela. Era sempre ela.

Uma voz no vento. Um amor que nunca partiu. Uma canção feita de silêncio, espera e eternidade.