quinta-feira, 11 de setembro de 2025

Terça-feira de Alerta e Desconfiança

 

Na noite da última terça-feira, 9 de setembro de 2025, uma moradora de um bairro residencial viveu momentos de tensão e inquietação ao se deparar com uma sequência de situações incomuns que levantaram suspeitas sobre sua segurança.

Por volta das 22h30, ao descer para descartar o lixo, a mulher avistou um homem parado na calçada, parcialmente oculto pela sombra de uma árvore. Sem dar muita atenção à figura, concentrou-se na paisagem iluminada pela lua. No instante em que retornava ao prédio, foi abordada por um motociclista que havia acabado de estacionar. Após retirar o capacete, o homem se aproximou e fez um alerta direto:

“Você conhece aquele homem? Ele está lhe vigiando. Tome cuidado. Hoje as coisas estão muito perigosas.”

Surpresa com a abordagem, a moradora agradeceu e confirmou que já havia sentido algo estranho, o que a fez entrar rapidamente no prédio. Após trancar o portão e a porta de seu apartamento, enviou um áudio à irmã, com quem havia combinado uma visita à casa da família na periferia — imóvel que permanece fechado e precisa ser monitorado para evitar invasões.

No dia seguinte, a irmã não apareceu conforme o combinado. À noite, ao confrontá-la, ouviu como resposta um simples “eu esqueci”, seguido da informação de que ela teria ido até o local, mas não chegou a entrar. A moradora, preocupada com sua segurança e refletindo sobre sua condição de solteira e sem herdeiros diretos, ironizou: “Pelo visto, vou ter que fazer meu testamento antes do previsto.”

Na quarta-feira, no mesmo horário da noite anterior, ela voltou a descer para colocar o lixo. Desta vez, encontrou um jovem sentado na calçada em frente ao prédio. Após depositar o lixo na lixeira e subir rapidamente, observou pela janela que o rapaz havia desaparecido. A coincidência a deixou ainda mais apreensiva.

A situação foi compartilhada com outra irmã, que reagiu com preocupação e alertou para um padrão comum em crimes urbanos:

“Os malfeitores costumam observar as vítimas em potencial por meses antes de cometerem o delito.”

Reflexão e Alerta

O episódio levanta questões sobre segurança em áreas residenciais sem sistemas de interfone ou vigilância, além de destacar a importância da rede de apoio familiar em momentos de vulnerabilidade. A moradora segue atenta, enquanto reflete sobre os riscos e a necessidade de medidas preventivas diante de comportamentos suspeitos.

 

domingo, 7 de setembro de 2025

Desfile cívico em 7 de Setembro de 2025 expõe crianças ao sol escaldante e ao descaso institucional

 


— O que deveria ser uma celebração do civismo e da independência nacional se transformou, neste domingo, em um retrato preocupante da negligência e da espetacularização infantil. O desfile cívico realizado na principal avenida da cidade expôs crianças — inclusive de creche — a condições insalubres, sob o sol forte da manhã, em um asfalto cuja temperatura ultrapassava os 35 °C.

A reportagem esteve presente e constatou que, enquanto autoridades discursavam por mais de 45 minutos em um palanque coberto e abastecido com água, crianças aguardavam em formação, muitas delas descalças, representando povos originários e transplantados. A cena, que deveria evocar respeito à diversidade cultural, acabou revelando um cenário de sofrimento físico e desatenção institucional.

Pais como espectadores e cinegrafistas

O comportamento dos pais também chamou atenção. Muitos invadiram o espaço reservado às escolas para filmar e fotografar seus filhos, ignorando protocolos e o próprio sentido do evento. O civismo deu lugar à vaidade digital, como se o único propósito fosse alimentar redes sociais com imagens da “cria”, em detrimento da segurança e do bem-estar dos pequenos.

 Educadores calçados, crianças descalças

Professores e organizadores, por sua vez, pareciam mais preocupados em exibir o resultado de seus ensaios do que em garantir condições adequadas para os participantes. Enquanto os adultos estavam devidamente calçados, as crianças marchavam sobre o asfalto quente, em trajes simbólicos, mas sem qualquer proteção para os pés — uma escolha pedagógica difícil de justificar.

 Autoridades em conforto, crianças em sofrimento

No palanque, autoridades locais discursavam longamente, ignorando o tempo excessivo de espera imposto aos jovens participantes. Em vez de uma cerimônia breve e simbólica — com agradecimentos, execução dos hinos e início imediato do desfile — o evento se arrastou, submetendo os menores a mais de duas horas sob calor intenso.

 Reflexão e responsabilidade

A pergunta que fica é: qual a mensagem que se pretende transmitir às novas gerações? Que o patriotismo se mede pelo sofrimento físico? Que o civismo é um espetáculo para adultos, enquanto crianças são figurantes descartáveis?

A denúncia está feita. Cabe agora à Secretaria Municipal de Educação avaliar os excessos e rever protocolos. O desfile cívico não pode ser palco de negligência. Se fossem seus filhos, descalços sob o sol, você aceitaria?

 

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Ipês amarelos e outras formas de resistência

 


Setembro começou mais fresco, como quem abre a janela devagar para não assustar a primavera que ainda espreguiça. O céu, meio encoberto, parecia indeciso — talvez se perguntando se vale a pena mesmo dar espaço para flores em tempos de tanta secura.

E, no entanto, ali estavam eles: os ipês amarelos. Em plena estiagem de mais de dois meses, florescem com insolência, como quem não lê manchetes nem boletins de meteorologia. Enquanto a grama murcha, eles vestem gala.

A cena é gratuita, democrática e, convenhamos, quase debochada. O cidadão sai para pagar contas — esse esporte nacional sem medalha — e dá de cara com um espetáculo que não pediu, não esperava e, ainda assim, melhora o dia. É como se a natureza, em um raro gesto de generosidade, oferecesse desconto à vista: paga-se em admiração, leva-se esperança no troco.

Os polinizadores agradecem a fartura, e as almas cansadas das desilusões cotidianas também. Basta levantar os olhos e encontrar uma copa dourada para lembrar que há formas discretas de renascer. Os ipês, afinal, não se dão ao trabalho de lamentar a seca. Eles florescem — e pronto.

Talvez esteja aí a maior lição que o calendário nos entrega sem protocolo oficial: em tempos de escassez, sempre haverá uma árvore lembrando que resistir, às vezes, é simplesmente florescer quando ninguém espera.

 

domingo, 31 de agosto de 2025

Agosto, o Silêncio que Respira

 


O último dia de agosto escorria pelas janelas como uma lágrima tímida. O céu, de um cinza pálido, parecia refletir o que havia dentro dela: um cansaço antigo, uma solidão que não sabia mais nomear.

Ela caminhava pela praça, onde as folhas secas dançavam ao vento como se zombassem da imobilidade dos seus dias. Sentou-se num banco de madeira gasto, e ali, como quem conversa com o tempo, murmurou:

— Agosto... mais um mês que termina sem que ninguém tenha notado minha existência.

Um senhor de chapéu, que lia um jornal ao lado, levantou os olhos por um instante. Ela tentou sorrir, mas ele apenas voltou à leitura, como se o mundo tivesse decidido que ela era invisível.

— Dizem que agosto é o mês do desgosto — ela continuou agora falando com o vento. — Mas para mim, todos os meses são iguais. A solidão não tem calendário.

Uma jovem passou com um grupo de amigos, rindo alto. Ela tentou se aproximar, puxar conversa:

— Que dia bonito, não é?

— Uhum — respondeu a moça, sem parar de andar.

Silêncio. Sempre o silêncio. Como se suas palavras fossem feitas de fumaça.

Ela voltou a olhar para o chão, onde uma formiga carregava um pedaço de folha maior que ela.

— Eu tento, sabe? Tento me encaixar. Não me visto melhor que ninguém, falo das mesmas coisas... mas parece que minha presença incomoda. Ou pior: não é sequer notada.

Um rapaz sentou-se ao seu lado. Ela respirou fundo. Talvez... talvez fosse diferente.

— Oi — disse ela, com um sorriso que carregava esperança.

— Oi — ele respondeu, olhando o celular. — Só esperando alguém.

Ela assentiu, tentando não parecer decepcionada. Mas ele se levantou antes que o tempo pudesse criar qualquer ponte.

— Toda mulher tem uma história de amor, não tem? — ela disse ao banco vazio. — Um homem que corre atrás, que insiste, que vê nela algo único. Mas comigo... no primeiro não, eles somem. Como se eu fosse feita de névoa.

O céu começou a escurecer. Agosto se despedia com um vento frio e um sussurro de folhas.

Ela se levantou, abraçando a si mesma.

— Talvez eu seja feita de silêncio. E o mundo, de barulho demais pra me ouvir.

E caminhou, como quem dança com a ausência, deixando atrás de si apenas o som leve dos passos e um perfume de saudade.

domingo, 24 de agosto de 2025

O Arco-Íris no Chão

 

Era pouco depois das sete da manhã quando a luz entrou — não invadindo, mas pedindo licença pelas frestas da persiana mal abaixada. No minúsculo apartamento do quarto andar, entre uma pilha de livros esquecidos e uma planta que ainda insistia em crescer, algo aconteceu. Um feixe de luz atravessou o copo de vidro deixado na mesa da noite anterior e se partiu em sete. Um arco-íris, tímido e pequeno, se desenhou no chão.

O morador do 7 — nome irrelevante para esta história — estava sozinho, como sempre. A solidão já era mobília antiga, mais presente que a geladeira ou o sofá manchado. Mas aquela manhã era diferente. O homem, em sua rotina exata de silêncio e café preto, parou. Havia um arco-íris no chão do seu apartamento.

Na física, sabemos: é apenas refração da luz. Mas no coração, era mais.

As três maiores religiões monoteístas também acreditam que arco-íris não são só fenômenos ópticos. No judaísmo, o arco-íris é pacto — o sinal de Deus a Noé de que nunca mais destruiria a Terra com um dilúvio. Um lembrete de que mesmo após o fim, há promessa de recomeço.

No cristianismo, é ponte entre o divino e o humano. Um céu que se dobra para tocar o chão, como se Deus quisesse lembrar ao homem que ainda está por perto, mesmo quando tudo parece em ruínas.

No Islã, embora o arco-íris não tenha a mesma centralidade, há a reverência às cores como manifestação da criação. O profeta Muhammad teria falado sobre os sinais de Allah em tudo — e quem vê um arco-íris sem sentir reverência talvez precise reaprender a olhar.

Entre os povos originários das Américas, o arco-íris também foi mais que cor. Para os maias, era ligado à deusa Ix Chel, senhora da lua, da fertilidade e dos ciclos da vida — um presságio de mudança. Para os incas, ponte para o mundo espiritual. E os astecas viam nele um sinal de comunicação entre os deuses e a terra. Um código secreto em cores.

Deitado no chão, com os olhos fixos naquele fragmento de luz colorida, o homem não pensava em tudo isso — mas talvez sentisse. A beleza sem motivo, a aparição breve, a lembrança de que algo fora do comum ainda pode acontecer, mesmo num espaço de 28 metros quadrados.

Quando o sol girou e o arco-íris se desfez, ele permaneceu ali mais um tempo. Sabia que não voltaria amanhã, ou talvez nunca mais. Mas bastou um. Um arco-íris no chão. Um instante de paz. Um pacto silencioso com algo maior — fosse Deus, fosse a luz, fosse ele mesmo.

domingo, 17 de agosto de 2025

Minha mãe, minha prisão

Mãe, Minha Prisão

Dizia-se, nos velórios da cidade, que a morte de uma mãe era o maior pesadelo que podia atingir um filho. E, quando pequenos, isso parecia incontestável: mãe era colo contra os trovões, era leite que curava febres, era oração contra o escuro. Mas a vida, com sua ironia secreta, ensinava que havia presenças mais sufocantes que ausências.

Lia sempre acreditara que os filhos lhe pertenciam. Dois meninos, tão dela quanto os anéis herdados da avó. Desde cedo, aprendeu a enredá-los em torno de si. A psicologia daria nome: síndrome de enredamento familiar. Os vizinhos, porém, chamavam apenas de zelo.

Na infância, o mais velho não podia brincar no quintal sem que a mãe vigiasse da janela. O caçula nunca pôde dormir na casa de um amigo. “Mãe é o mundo inteiro”, dizia Lia, enquanto lhes afagava os cabelos. Eles acreditavam. E, assim, aprenderam que desejar algo além dela era quase pecado.

Certa vez, aos onze anos, o caçula ousou pedir:
— Mãe, posso ir ao acampamento da escola?
Lia ergueu os olhos da costura.
— E deixar sua mãe sozinha? Deus me livre! Você não precisa dessas coisas para ser feliz.
— Mas todos vão... — insistiu ele, num fio de voz.
Ela suspirou fundo, como quem carrega o peso do mundo.
— Então vá. Se quiser me ver morta de tristeza, vá.

O menino calou. E naquela noite aprendeu que seus sonhos tinham o poder de feri-la. Mais tarde descobriria, nos livros de psicologia, que aquilo era chamado de culpa introjetada. Na vida real, chamava-se silêncio.

Os anos passaram. O mais velho mudou-se para outro estado, mas nunca cortou o cordão. Ligava diariamente, como se respirasse pelo pulmão da mãe. O caçula ficou, guardando passaportes sem carimbos e diplomas não usados. Quando recebeu uma proposta de trabalho no exterior, vacilou dias até revelar.

— Mãe, eu recebi uma oportunidade fora do país... — murmurou, com medo da própria coragem.
Lia ajeitou o lenço no pescoço e ergueu a voz.
— Você vai me abandonar, é isso?

Ele tentou argumentar:
— Não é abandono, mãe. É vida. A minha vida...

Mas o silêncio dela, carregado de lágrimas calculadas, foi sentença.

Numa ligação, o irmão tentou consolá-lo:
— Aguente firme, mano. Você sabe como a mãe é... sempre precisou de nós para existir.
O caçula respondeu, com amargura:
— Precisar não é viver. É aprisionar. Ela nunca nos viu como filhos, mas como extensão dela mesma.
Do outro lado, o mais velho suspirou.
— Talvez seja isso. Nunca cortamos o cordão.

Lia, que ouvira a conversa por trás da porta, irrompeu furiosa:
— E quem disse que pedi para nascerem? Já que vieram, o mínimo é ficarem comigo!

Era a velha dinâmica da dependência narcísica: a mãe que não sabia existir sem se abastecer dos filhos. E eles, reféns da culpa, aceitavam.

O acidente de Lia — quedas, ossos frágeis, visão turva — apenas consolidou as correntes. Agora, além da culpa, havia cadeira de rodas, remédios, exames. “Não quero estranhos me tocando”, repetia, recusando cuidadores. “Vocês são meus braços, meus olhos, minha vida.”

Eram frases de amor ou de cárcere? Os filhos nunca souberam responder.

Quando a morte finalmente se aproximou, não veio como pesadelo, mas como alívio. A vizinhança dizia: “Que filhos dedicados!”. Poucos percebiam que a dedicação era grilhão, não escolha. No velório, o caçula chorava, mas seu peito, em segredo, respirava. A psicologia chamaria de luto ambivalente: dor e liberdade no mesmo sopro.

— Ela se foi... — murmurou o irmão mais velho.
— Ela se foi, mas continua aqui dentro, como corrente, — respondeu o caçula, tocando o peito. — Será que um dia a gente vai conseguir existir sem medo?

Na velhice, já homens cansados, conversavam sobre o passado.
— A gente nunca viveu de verdade, — disse o caçula, olhando a chuva pela janela.
— Vivemos sim, mas dentro da vida dela, — replicou o mais velho.

E foi nesse instante que compreenderam, enfim, o diagnóstico tardio: nunca haviam sido donos de si mesmos.

Ainda assim, havia esperança. O caçula começou a escrever memórias, não como vingança, mas como testemunho. Queria que outras famílias reconhecessem os sinais, que outros filhos entendessem a diferença entre cuidado e prisão.

No caderno, rabiscou uma frase que parecia síntese e súplica:

“Amar não é deixar de existir por alguém.”

E naquela frase havia, pela primeira vez, a libertação que nunca vivera em vida.


O Cordão Invisível


Dizia-se, nos velórios da cidade, que a morte de uma mãe era o maior pesadelo que podia atingir um filho. E, quando pequenos, isso parecia incontestável: mãe era abrigo contra os trovões, era o leite e o beijo que curavam febres. Mas a vida, com sua ironia, mostrava que havia presenças mais asfixiantes que ausências.

Lia sempre acreditara que os filhos lhe pertenciam. Desde o berço, tratava-os como prolongamento de si mesma. Ao mais velho, não deixava brincar sozinho no quintal. Ao mais novo, não permitia que dormisse fora de casa, nem mesmo nas festas de aniversário dos colegas. “Mãe é o mundo inteiro”, dizia, enquanto acariciava os cabelos dos meninos.

Na infância, eles acreditaram. Mas, com o tempo, o afeto começou a se confundir com peso. A psicologia chamaria isso de dependência emocional, de invasão dos limites da individualidade. Para os vizinhos, era apenas “zelo de mãe”.

— Mãe, posso ir ao acampamento da escola? — perguntou o caçula, certa vez, aos onze anos, os olhos brilhando de expectativa.
Lia, sem levantar os olhos da costura, retrucou:
— E deixar sua mãe sozinha? Deus me livre! Você não precisa dessas coisas para ser feliz.
Ele insistiu:
— Mas todos vão...
Ela suspirou fundo, como se carregasse o peso do mundo.
— Então vá. Se quiser me ver morta de tristeza, vá.

O menino desistiu, engolindo o choro. Naquele instante, aprendeu que seus desejos eram perigosos, porque podiam ferir quem ele mais amava.

Anos depois, já adulto, recebeu a notícia de uma proposta de trabalho no exterior. Guardou o papel dentro da gaveta, como quem esconde um pecado. Até que, numa tarde cinzenta, não resistiu.

— Mãe, eu recebi uma proposta de trabalho fora do país... — disse, hesitante.

Lia ajeitou o lenço no pescoço, a voz carregada de drama.
— Você vai me abandonar, é isso?

Ele fechou os olhos. O que lia nos livros sobre individuação — o processo psicológico de se tornar quem se é — parecia inalcançável diante dela.
— Não é abandono, mãe. É vida. A minha vida...

O silêncio que se seguiu era mais eloquente que qualquer resposta.

Enquanto isso, o irmão mais velho, já morando em outro estado, continuava fiel ao ritual diário de telefonar para a mãe. Uma vez, ao telefone, aconselhou o caçula:
— Aguente firme, mano. Você sabe como a mãe é... sempre precisou de nós para existir.
— Precisar não é viver, é aprisionar, — replicou o caçula, exasperado. — Ela nunca nos viu como filhos, mas como extensão dela mesma.

Do outro lado da linha, veio apenas um suspiro.
— Talvez seja isso. Nunca cortamos o cordão.

Lia, ouvindo atrás da porta — como tantas vezes fizera —, irrompeu na conversa.
— E quem disse que eu pedi para nascerem? Já que vieram, o mínimo é ficarem comigo.

O peso dessas palavras caiu como uma sentença. A psicologia chamaria de inversão de papéis: quando os filhos se tornam pais da própria mãe, carregando responsabilidades emocionais que nunca deveriam ser suas.

O acidente de Lia — quedas, ossos frágeis, visão turva — apenas consolidou o enredo. Agora, além da culpa, havia a cadeira de rodas, os remédios, os exames. A vizinhança elogiava: “Que filhos dedicados!”. Poucos percebiam que a dedicação era grilhão, não escolha.

E os anos seguiram, entre o amor e a prisão, entre a piedade e o desejo de fuga.

Numa noite de insônia, diante do espelho, o caçula murmurou:
— Amar não é deixar de existir por alguém.

E naquela frase havia, pela primeira vez, um sopro de libertação.